Licença para matar

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 07/03/2020)

Coisas estranhas estão a acontecer.

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A primeira vítima do pânico coletivo é a racionalidade. A Austrália tem, no momento em que escrevo, 41 casos de Covid-19 diagnosticados. A Austrália tem 24,6 milhões de pessoas. A Austrália, um país avançado e civilizado, desatou a açambarcar papel higiénico. Nos supermercados, o papel higiénico foi racionado e quando chegava dos fornecedores era logo arrebanhado. Quando uma cadeia de notícias tentou perguntar às pessoas uma razão específica para a escolha do papel higiénico, alguém respondeu: se calhar, uma pessoa começou a comprar muitos rolos de papel higiénico e as outras foram atrás. Também compraram latas de conserva e pasta de dentes, mas por uma razão decerto metafísica, ontológica, o papel higiénico tornou-se um bem precioso.

Este o comportamento que esperamos de povos ditos primitivos. Em crises de pânico, são os povos avançados que se portam mal. Nas vidas confortáveis, o medo torna-se uma incógnita maligna e uma autorização para o disparate, incluindo a xenofobia, a desconfiança, o proselitismo, a mentira, a acusação, o linchamento, o açambarcamento. Uma estudante de Hong Kong foi tratada como uma leprosa em Itália. As pessoas afastaram-se dela, disseram-lhe para se colocar imediatamente em quarentena, deixar de aparecer em público, usar máscara e, de um modo geral, ir morrer longe. Por causa de uns olhos asiáticos. Veio a coisa descrita no “NY Times”. A estudante ficou desapontada com a Itália.

Uma das formas primitivas de atacar esta crise é apontar o dedo aos media. Os jornais sérios, dizem alguns. Nos últimos dias, com olhar reprovador, disseram que a culpa era nossa. Os media criaram esta histeria, os media são responsáveis, os media não têm padrões de comportamento, os media massacram as pessoas, os media propagam o vírus. Só falta dizer que os media foram os responsáveis pela criação do vírus em laboratório. Algures na China.

Compare-se esta crítica com a oposta. Na China, os media não reportaram a verdade, o regime comunista censurou as notícias, controlou a narrativa, não podemos acreditar em nada do que dizem os chineses. Ou o Irão, onde está em vigor uma censura oficial de todas as notícias respeitantes ao vírus. Se os media reportam em liberdade, são histéricos. Se omitem, são censurados ou mentirosos. Numa crise de pânico, os media são o mensageiro e o mensageiro é fácil de culpar. Há uma licença coletiva para matar o mensageiro.

Os media, ou como se diz, com a boca franzida e o sobrolho erguido, os “jornais sérios”, nem têm sido muito alarmistas e certamente não têm sido os autores das fake newsmemes, vídeos e conspirações virais que contaminam a informação, circulam nas redes sociais e são disseminados pelas mesmas pessoas que estendem o dedinho. Saem do rumor do Facebook e do Twitter para o discurso moralista sobre a histeria mediática e os jornalistas. O inferno são sempre os outros. Nunca compreendi a raiva contra o jornalismo sério, tão ameaçado, enquanto o falso, o especulativo, o sensacionalista, é celebrado como forma extrema da liberdade de expressão.

Enquanto a atenção mundial está mobilizada para o vírus, ou as primárias americanas, o resto do mundo passa despercebido. O raio de atenção da geração tik tok são 15 segundos, podemos avaliar a dificuldade de fazer passar uma ideia. Ou conceber uma ideia. Não admira que ninguém se interesse por notícias que seriam grandes noutra ocasião em que o papel higiénico não se tornasse essencial.

O Presidente Trump disse uma coisa extraordinária, mais uma. “Tive uma boa conversa com o mullah.” E cumprimentou os talibãs pela sua dureza e resistência. Trump acaba de assinar o que os Estados Unidos querem fazer passar por um acordo de paz para a retirada das tropas e mais não é do que uma derrota militar e uma capitulação. Em Doha, no Qatar, um país até há pouco tempo na lista negra da diplomacia americana por via dos sauditas e do príncipe louco, as negociações para a retirada das tropas americanas chegaram mais ou menos a termo. Quase 20 anos passados sobre o 11 de Setembro, e triliões de dólares mais tarde, a América descobriu que perdeu a guerra. Milhares de soldados “aliados” morreram no Afeganistão para entregar Cabul de novo aos talibãs. O país mudou nestas duas décadas, pelo menos na capital, mas os talibãs não mudaram. O mullah de Trump é o mesmo fundamentalista que era o mullah Omar, e ninguém duvida de que uma sociedade islâmica repressora, violenta e medieval será a consequência política deste “acordo”, e que a retirada das tropas apenas dará aos novos chefes fundamentalistas licença para matar todos os “inimigos” e retirar às mulheres os direitos adquiridos.

O Afeganistão continua tão tribal, belicoso, dividido, corrupto e primitivo como era, e o verniz de Doha estalará. Uma guerra civil entre senhores da guerra não é de excluir. A grande diferença é que ninguém quer saber. E os terroristas? O Paquistão tratará disso, à sua maneira. Com a Rússia do outro lado. Decerto em mais conversas positivas com os mullahs. Eis como a América passou de ameaçar bombardear o Paquistão até à Idade da Pedra, frase que os generais gostam de dizer desde o Vietname e com os bons resultados que sabemos, para a constatação de que o mullah afegão é um duro, um tough cookie na linguagem Trump, e um parceiro a convidar talvez para um fim de semana em Mar-a-Lago. Melhor do que Camp David. Umas torres em Cabul, logo se verá.

E quem quer saber de mais uma crise humanitária nas fronteiras e mares da Grécia e da Turquia? Os sírios, ainda? Mais os afegãos, refugiados da paz que há de vir? A Síria, tal como a Líbia, não estavam arrumadas?, cogitam as massas. O Putin tinha tratado disso. Putin e Erdogan zangaram-se e a Turquia entrou em guerra com a Síria.

E não se concebe maior miséria moral do que bombardear com gás pimenta gente que foge da guerra e do extermínio, que tenta salvar os filhos e que é usada como arma dos turcos contra os europeus. Gente que não sabe nadar e afunda o próprio barco para ser resgatada. E tudo isto às portas da Europa, ocupada a desinfetar as mãos.


Pânico global, o vírus mais poderoso

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/02/2020)

Daniel Oliveira

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Desconheço a gravidade que pode mesmo vir a ter o coronavírus. Sei que tem uma taxa de mortalidade de 2,3%, abaixo dos 50% da gripe das aves ou dos 10% da SARS. Mas o SARS afetou cerca de oito mil pessoas, tendo matado 774 em 29 países, o MERS afetou 2500 e matou 858 em 27 países e, a 18 de fevereiro, o COVID-19 já tinha afetado mais de 70 mil pessoas e morto 1870. Que as taxas de mortalidade aumentam nas idades mais avançadas (15% acima dos 80 anos, 8% entre os 70 e os 79) e nos casos mais críticos (aproxima-se dos 50% nos mais graves). Que a incrível rapidez e facilidade com que se está a espalhar pelo globo nos mostra que já ultrapassámos a fase em que se podia falar de contenção. Que o vírus é muitíssimo contagioso mesmo quando ainda não há sintomas. Ou seja, o coronavírus, tendo taxas de mortalidade muito mais baixas do que anteriores epidemias, está a progredir com muito mais eficácia. Em dois meses já tinha infetado dez vezes mais e matado bem mais do dobro do que o SARS em oito meses.

E a economia, que depende cada vez mais da perceção e cada vez mais da China, pode fazer ainda mais vítimas do que o vírus. Há fábricas paradas e bolsas em histeria. O pânico espalhou-se mais depressa do que o próprio vírus. Lembro-me das vacas loucas, da gripe das aves, da gripe suína. O filme foi semelhante, mas é cada vez mais intenso. Saltamos de ansiedade em ansiedade, sempre com a sensação de estar perto do fim. Nunca tivemos tanto medo, apesar de nunca termos vivido tanto tempo nem tão protegidos.

Estas epidemias são uma excelente metáfora da globalização. Vivemos num mundo em que tudo está interligado com um rapidez incontrolável. Uma crise, a mentira, a verdade, a ignorância, a cultura, a informação, a desinformação, a intolerância, o dinheiro e os vírus… nada parece poder ser contido, travado, regulado. O nosso medo cíclico é cada vez mais intenso de epidemias resulta do mais poderoso vírus deste tempo: o pânico global. Uma metáfora que nos permite explicar o tempo político em que vivemos, marcado pela ansiedade. Tudo parece à beira do abismo. E é mesmo verdade que a globalização, que nos oferece imensas coisas excelentes, traz perigos avassaladores. Agora que sentem o medo do vírus talvez possam olhar com menos altivez e mais cuidado para os medos dos outros.

Uma crise, a mentira, a verdade, a ignorância, a cultura, a informação, a desinformação, a intolerância, o dinheiro e os vírus… nada parece poder ser contido, travado, regulado. O coronavírus é uma metáfora que nos permite explicar o tempo político em que vivemos, marcado pela ansiedade

O medo do vírus não é diferente do medo do crime, do terrorismo, da perda de emprego pela concorrência desleal, do movimento livre e incontrolável de capitais, do poder económico da China cuja dependência se torna tão evidente. Tão semelhantes que o racismo, o oportunismo político e os apelos ao encerramento de fronteiras se sentiram da mesmíssima forma. Ou os apelos à intervenção dos governos. Perante isto, não se apela a um isolacionismo anacrónico, indesejável e inviável. Mas percebe-se que perante os problemas reais que nos levanta um mundo que ficou demasiado pequeno e demasiado rápido perante Estados demasiado impotentes, as frases bondosas sobre as maravilhas da globalização são inúteis e até irresponsáveis.

Para o bem e para o mal, o mundo é assim mesmo. Conseguir lidar com ele sem nos destruirmos exige imaginação, não uma fé infantil na caminhada inexorável para o progresso, feito sem fronteiras, Estados e Nações, em que tudo circula livre e sem controlo e os governos nada devem fazer. O debate tem de deixar de ser entre “nacionalistas” e “globalistas”, usando os termos pejorativos de cada lado. É sobre como lidar, regular e conter a globalização. Isto vale para os vírus, para os mercados ou para o movimento de pessoas.