Os nossos Óscares, as nossas Valerias e a comoção grátis

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/07/2019)

Daniel Oliveira

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A foto dos cadáveres de pai (Óscar) e filha (Valeria) nas margens do Rio Grande, na fronteira entre os EUA e o México, perturbou a opinião publica norte-americana. Os mais otimistas acreditam que o choque demonstra que a América de Trump pode ter sido abalada por este confronto com a realidade. Pensaram o mesmo quando ouvimos os diálogos com crianças em centros de detenção de imigrantes. Claro que a esmagadora maioria dos apoiantes de Trump não são monstros. Sentem exatamente o mesmo que nós ao ver aquela foto. O processo de desumanização do outro ainda não chegou a esse ponto. Isso é coisa que demora décadas, como podemos aprender na relação que a maioria dos israelitas tem com os palestinianos ou que os europeus tinham, num passado recente, com os judeus. O segredo de Trump ainda não foi impor a total indiferença em relação ao sofrimento dos imigrantes, foi separar esse sofrimento das suas políticas.

Claro que há uma América que volta a acordar com estas imagens. E não é só a América da elite urbana, intelectual e liberal. Foi também esta semana que os trabalhadores da Wayfair, uma das principais lojas de mobiliário online nos EUA, se manifestaram por terem descoberto que havia um contrato com uma empresa que gere um centro de detenção para crianças migrantes no Texas. Mas a América que reage com um discurso político é a que não votou no Trump. Que foi, devo recordar, a maioria.

Quem acredita que o mundo muda com a comoção de uma imagem terá de puxar pela cabeça para se lembrar o que aconteceu na Europa depois de uma imagem semelhante, do cadáver de Aylan Kurdi, uma criança síria de três anos que perdeu a vida no Mediterrâneo. Partidos de extrema-direita vencerem eleições e os governos endureceram as suas politicas anti-imigração. Não é a comoção de uma imagem que vence estes combates. O máximo que pode fazer é dar um argumento emocional passageiro a uma luta bem mais difícil do que uns milhões de partilhas virais.

A prova da inconsequência das reações a esta imagem está na Europa. O coro indignado contra Trump e o seu muro é um monumento à nossa hipocrisia. Há anos que debatemos o muro de Trump enquanto em Ceuta, em Melilla e na Hungria a Europa fortaleza mantém os seus próprios muros. Orgulhamo-nos da Europa sem fronteiras, mas ela é um condomínio onde todos podem circular e usar os serviços comuns na condição de ter grades cada vez mais altas e porteiros cada vez mais zelosos que não deixem mais ninguém entrar. E não foi nem Salvini, nem Orban, nem Farage que criaram esta fortaleza, que substituíram operações de resgate por operações de patrulhamento ou que assinaram acordos com a Turquia e o Estado falhado da Líbia para nos livrarem de forma expedita dos refugiados. Foram civilizados e muito democráticos governos de centro-direita, centro-esquerda ou até de esquerda.

Tratamos as novas políticas de imigração norte-americanas como indecorosas mas mesmo depois de todas as mudanças elas continuam a ser mais permissivas do que as nossas. Eles estão a discutir o muro há anos, com um congresso a criar uma crise política para impedir o seu financiamento. E têm, nesse gesto de resistência, o apoio de pelo menos metade da população. Enquanto isso, nós erguemos os nossos muros, assinámos acordos criminosos e pusemos fim aos resgates quase sem oposição para além de pequenas minorias tratadas como delinquentes extremistas. E no fim, enojados com Trump, ainda explicamos ao mundo como somos um exemplo de direitos humanos. Os norte-americanos podiam dar-nos lições de civismo.

Querem uma prova de que a comoção com a terrível imagem de Óscar e Valeria nas margens do Rio Grande é enganadora? A Europa comoveu-se. E nem por um segundo se lembrou das 20 mil pessoas que morreram no Mediterrâneo nos últimos cinco anos. 550 só desde janeiro. Mais de um ser humano por dia. Muitas crianças a quem recusamos auxílio, uma boia. É mais fácil combater Trump. São os muros dele e a comoção sai de borla.

Esta coluna regressa a 8 de julho

Miguel Duarte e o nosso muro

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/06/2019)

Daniel Oliveira

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É fácil desprezar Donald Trump. Ele é uma figura boçal. E a sua boçalidade torna evidente a frieza criminosa do egoísmo. É isso que explica que os europeus olhem com indignação para o muro que ele quer construir na fronteira com o México. Os mesmíssimos europeus vivem há décadas com os muros de Ceuta e Melilla, que cercam a Europa fortaleza de onde olhamos, com ares de superioridade, para o bárbaro Trump. Mas o muro mais eficaz é mesmo o Mediterrâneo. Esse não precisa de ser construído. Basta ser aproveitado de uma forma bem mais impiedosa e cruel do que qualquer coisa que tenha sido feita pela administração Trump.

Desde 2014, chegaram à Europa, vítimas de uma Primavera Árabe fracassada, de guerras e de crises ambientais, quase dois milhões de refugiados. O pico foi em 2015, com mais de um milhão de chegadas. Este ano entraram mais de 31 mil, 23,5 mil pelo mar, mais de 23% crianças. Nestes cinco anos morreram ou desapareceram quase 20 mil refugiados a atravessar o Mediterrânio. Este ano já foram mais de 500.

Antes desta calamidade, a Europa ainda reagiu com decência. De outubro de 2013 a outubro de 2014, a operação “Mare Nostrum”, levada a cabo pelo Estado italiano, trouxe em segurança 150 mil refugiados para terra. Mas, em 2014, muito antes de Salvini ou de Trump, essa operação foi substituída pela Triton, apoiada pela Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, a Frontex. Ao contrário da sua antecessora, centra-se no patrulhamento da costa, não no resgate. Salvar vidas deixou de ser uma prioridade.

No mar, militares europeus assistem impávidos e serenos, em águas internacionais, à captura dos barcos com refugiados pela guarda costeira da Líbia, que os leva de novo para terra. É preciso dizer o que isto quer dizer. Quer dizer que os europeus entregam estas pessoas em estado de necessidade profunda a forças que, em representação de um Estado falhado, não lhes garantem rigorosamente nada. Quer dizer que elas são devolvidos a um país onde, como imigrantes, estão sujeitos a espancamentos, violações, roubos. Tudo documentado por observadores internacionais. É por isso que muitos refugiados se atiram à água quando estão prestes a ser capturados pelos líbios. Preferem a morte ao regresso ao inferno de que fogem.

A Europa não construiu os muros de Trump para que os refugiados não chegassem. Limitou-se, muito antes de Salvini, a substituir o programa de resgate por um programa de patrulhamento e a entregar o problema ao Estado falhado da Líbia. Só que ficaram nessas águas várias ONG. Que, escândalo dos escândalos, se dedicaram a cumprir o artigo 98 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Depois de optar por deixar morrer quem aqui tente chegar, é preciso travar quem continua a agir. Esta é a forma criminosa e cínica que os governos europeus encontraram para impedir que os refugiados passem as fronteiras: deixá-los morrer no mar e criminalizar quem os tente trazer para terra. Bem mais sinistro do que um muro.

A ONG alemã Jugend Rettet foi um alvo recente deste processo de criminalização da decência. O seu barco Iuventa, que salvou cerca 14 mil vidas, foi apreendido em 2017 pelas autoridades italianas e dez dos seus tripulantes foram acusados de auxílio à imigração ilegal. O português Miguel Duarte é um deles. Antes da criminalização, o Estado italiano tentou o controlo. Propôs um código de conduta que sugeria que cada embarcação tivesse um polícia armado a bordo, que estivessem sempre localizáveis e que não entrassem em águas territoriais líbias. A Jugend Rettet e mais dez ONG (entre as quais os Médicos Sem Fronteiras) recusaram-se a assinar.

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A acusação de auxílio à imigração é especialmente absurda quando quase todas as operações contaram com a ajuda do Centro de Coordenação Marítima de Roma (CCMR). Para que a coisa fizesse algum sentido, afirma-se que houve contactos com traficantes. Talvez para nos vender a ideia de que esta ONG está a soldo do tráfico. Há quem faça a acusação de outra forma, mais subliminar: que, completando a última parte da viagem dos refugiados, ajudam os traficantes e até lhes poupam trabalho. A melhor resposta que li, foi no Twitter: é como acusar os médicos do IPO de ajudar as tabaqueiras ao minimizar os danos do seu esquema. É perversão absoluta de todos os valores. Salvar um náufrago é um dever. Um dever escrito nas leis do mar e na decência de qualquer pessoa. Uma Europa que o nega é uma Europa que não pode ser exemplo de nada para ninguém.

Parece que anda tudo à procura de qualquer coisa em que acreditar. De heróis. Se querem um herói e se ele não tiver de ser futebolista e milionário, têm um português da Azambuja, com 26 anos e a fazer um doutoramento em Matemática. Arrisca-se, por ter dedicado parte da sua juventude a salvar vidas, a uma pena de prisão de 20 anos. A acusação de que foi alvo gerou uma onda de solidariedade que permitiu recolher dezenas de milhares de euros para a sua defesa. Não sei se algum juiz terá coragem de condenar o Miguel e os seus companheiros. Não o desejo, mas talvez isso acordasse as consciências europeias. Ainda assim, parece-me que o objetivo político desta acusação é outro e já foi conseguido: semear o medo nas ONG e nos seus voluntários. Das dez ONG que resgatavam refugiados, só uma se mantém no ativo.

Miguel Duarte contou, numa entrevista, que o que mais o impressionou nas experiências que teve nas operações de resgate ou nos campos de refugiados para onde foi nos intervalos, foi a gratidão. E que a imagem mais forte é a de ver que, mal se sentem em segurança, aqueles seres humanos adormecem. Nós não temos qualquer razão para dormir. Pelo menos enquanto os governos europeus continuarem a condenar à morte por afogamento centenas de refugiados.

As quatro crises perante a União Europeia

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 02/05/2019)

Alexandre Abreu

Enfrentamos atualmente quatro crises decisivas. Todas elas possuem uma dimensão europeia fundamental. São elas a crise ambiental e climática, a crise humanitária às portas da União Europeia, a crise de fragmentação política e ascensão da extrema-direita, e a crise da cooperação e solidariedade do projeto europeu. A forma como as enfrentarmos será decisiva para o nosso futuro coletivo.

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A crise ambiental inclui a ameaça crítica das alterações climáticas mas também a extinção em massa provocada pela ação humana, a produção e libertação no ambiente de milhões de toneladas de plástico e outros resíduos, a desflorestação, a degradação dos solos e a destruição de habitats. É a mais critica de todas as crises porque coloca em questão a própria sobrevivência a prazo da espécie humana. Na sua origem está um modelo de organização socioeconómica assente na predação da natureza e na lógica individualista de curto prazo em detrimento da racionalidade coletiva e do respeito pelos limites do ambiente. É uma crise global, não europeia, mas a sua dimensão europeia é facilmente compreensível: se a Europa, que é o mais próspero de todos os continentes, não for capaz de liderar o processo de transição energética e de reorientação da produção para as necessidades sociais e para o respeito pelos limites do ambiente, dificilmente poderemos ter esperanças de que o planeta como um todo o faça a tempo de evitar as consequências mais catastróficas.

A crise humanitária resume-se num número: dezoito mil pessoas mortas no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa nos últimos cinco anos. Todas elas morreram em resultado direto da Europa-fortaleza – devido à ausência de formas alternativas, seguras e humanas, para chegarem ao continente europeu, seja em fuga da guerra ou em busca de melhores condições de vida. É uma crise humanitária e não migratória: os cerca de vinte milhões de pessoas nascidas fora do continente europeu que atualmente vivem na União Europeia são uma parcela muito pequena da população total de 500 milhões; os dois ou três milhões de requerentes de asilo chegados nos últimos anos são uma gota de água. Mas esta é também uma crise da consciência ética da Europa, um continente que reivindica a condição de farol moral do planeta ao mesmo tempo que permite que dezenas de milhares de pessoas morram às suas portas devido à incapacidade de assegurar os deveres mais elementares de hospitalidade e solidariedade.

A crise política é a da fragmentação da cooperação e ascensão dos egoísmos. Tem como manifestações mais evidentes o fechamento nacionalista e o crescimento do extremismo ultra-conservador e xenófobo num país após outro. É a resposta errada a ansiedades legítimas: vira contra os alvos errados – os estrangeiros, os imigrantes, os mais pobres – a angústia face à desigualdade, injustiça e desproteção que resultam de décadas de neoliberalismo. Tem um potencial destrutivo imenso: os monstros que cavalgam esta onda já mostraram que não hesitam em desmantelar o estado de direito e um património de direitos, liberdades e garantias que levou décadas a construir.

A quarta crise é a da longa deriva neoliberal do projeto europeu. A União Europeia sempre foi um projeto complexo e contraditório, uma arena na qual coexistem dinâmicas e fatores de solidariedade e progresso com dinâmicas de desigualdade e desproteção. A União Europeia de onde provêm os fundos de coesão que muito têm apoiado a modernização infraestrutural do nosso país é a mesma que impõe os constragimentos orçamentais absurdos que sufocam os nossos serviços públicos. A União Europeia que tem assegurado padrões importantes de proteção do consumidor é a mesma que permite a corrida para o fundo entre estados a nível fiscal e que promove a flexibilização e desproteção nos mercados de trabalho.

Nesta tensão entre dinâmicas contraditórias, as últimas décadas têm sido marcadas por um desequilíbrio crescente no sentido da desproteção e desigualdade, através da consagração de opções políticas neoliberais nos tratados europeus e da criação de uma União Económica e Monetária que é um gigantesco mecanismo de desequilíbrio macroeconómico e de divergência entre economias centrais e periféricas. Em resultado disto mesmo, o continente mais próspero do planeta conta hoje com 16 milhões de desempregados, um quarto da população em risco de pobreza, uma enorme vulnerabilidade dos estados sociais face à próxima crise e uma dinâmica explosiva de desequilíbrio e divergência no seio da zona euro.

Estas quatro crises estão ligadas entre si. A crise de fragmentação política e ascensão do extremismo é um resultado da angústia provocada pela desproteção social e económica. A catástrofe humanitária da Europa-fortaleza tem na sua origem uma abordagem securitária e um défice de hospitalidade que são muito anteriores à ascensão da extrema-direita mas que são por esta adicionalmente agravados. E as perspetivas de uma resposta cooperativa e atempada ao desafio ambiental são bastante mais remotas no contexto de uma Europa que constitucionalizou o neoliberalismo e onde imperam cada vez mais os egoísmos.

Porém, estas quatro crises podem também estar ligadas na sua solução, exigindo o reforço da solidariedade e cooperação. São necessários novos modelos de organização social que privilegiem soluções coletivas, de partilha e circularidade. É preciso refundar a política de acolhimento da União Europeia de forma a afirmar os princípios da hospitalidade e da solidariedade. É preciso que a política económica volte a ter como objetivos fundamentais o pleno emprego, a proteção social e o combate à pobreza, e para isso é necessário afastar os tratados, disposições e estruturas que impedem isto mesmo. E se conseguirmos dar passos neste sentido, seguramente estaremos também a eliminar o substrato de que se alimentam os egoísmos e a extrema-direita.

A resposta a todas estas crises está longe de ser esgotar nos mecanismos de democracia representativa, mas passa também por aí. Nas eleições para o Parlamento Europeu do próximo dia 26, todos temos a responsabilidade de nos informarmos adequadamente e de apoiarmos os projetos e propostas que respondam de forma mais consequente e adequada à urgência destes desafios.