Estas noites de mar de morte

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 05/07/2019)

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É melhor ser alegre que ser triste, proclama Vinícius de Moraes no “Samba da Bênção”. É um truísmo muito la palissiano. Nem por isso deixa de ser o início de uma grande canção feita de verdades plenas. A verdade inteira às vezes derrama dores tão impossíveis como infinitas. A verdade não mata. Mas a verdade choca. Como quando se sabe que uma embarcação com 86 migrantes a bordo naufragou no Mediterrâneo e a notícia já quase passa despercebida. Se à mesma hora caísse no Mediterrâneo um avião e daí resultassem dezenas de mortos, por exemplo 86, teríamos por certo abertura de telejornais, longos e continuadas relatos da tragédia. A raridade é em si mesma fomentadora de notícia.


Quando a verdade se banaliza, até já os mortos são indiferentes. Não sei se é o triunfo da desumanização. Será, por certo, a vitória da indiferença perante uma tragédia que os poderes europeus têm preferido empurrar para as brumas do esquecimento.


Na verdade, é melhor ser alegre que ser triste. A dificuldade da alegria está no peso daqueles mortos, daqueles olhares perdidos no infinito, daquela dor silenciada nas profundezas do Oceano.


Umas horas depois de ser conhecido aquele naufrágio, a ONG italiana Mediterranea resgatava 54 migrantes nas águas internacionais ao largo da Líbia. Como Itália mantém a política de portos fechados a estas embarcações, com a acusação de que fomentam a imigração ilegal, a ONG procurava um porto seguro para desembarcar os resgatados. Já houve uma dezena de navios de resgate no Mediterrâneo. Esta quinta-feira restava um.


As mudanças nas políticas destinadas ao tratamento destes casos (fim da operação Mare Nostrum), adotadas pela União Europeia a partir de 2014, com o objetivo de travar a entrada na Europa de refugiadas (das guerras, das alterações climáticas, da miséria) levou um grupo de advogados internacionais com base em Paris a apresentarem um processo no Tribunal penal Internacional, em Haia contra a UE, acusada da prática de crimes contra a humanidade.


Na equação tem de ser colocada de forma séria a questão do combate ao tráfico de seres humanos e aos negócios milionários que lhe estão associados.

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Porém, e esta é uma componente fulcral do problema, o documento, divulgado pela Deutshe Welle, assegura que, em vez de resgatar e proporcionar segurança à população civil em perigo no mar, “a UE facilitou a morte de milhares por afogamento, antes de introduzir um sistema compreensivo de deportação para campos que se assemelham aos de concentração”. Embora, acrescenta, tenham caído as chegadas de pessoas através do Mediterrâneo, “mais de 40 mil pessoas foram interceptadasno mar e levadas a campos de detenção e a câmaras de tortura sob a legislação europeia”.


A UE financia os campos criados na Líbia (vídeo nos campos de refugiados aqui), bem como as operações da Guarda Costeira líbia destinadas a barrar a entrada na Europa de todo o tipo de refugiados.


A Comissão Europeia defendeu-se para assegurar que a “prioridade sempre foi e continuará a ser proteger vidas e garantir tratamento humano e digno em todas as rotas migratórias”.


Nem uma palavra, porém, para uma circunstância decisiva e fatal em todo o processo: após a ação conjugada, em 2011, de forças da NATO e grupos islamitas para derrubar Khaddafi, a Líbia transformou-se num território sem lei, nem regras, onde se praticam as maiores barbaridades, facilitadas pela abundância de armas e pela proliferação de grupos terroristas.


Ora, é aqui, neste território caótico, governados por milícias envolvidas em atrocidades, corrupção, tráfico de seres humanos, que a UE despeja dinheiro, concentra os campos de “acolhimento” de refugiados, e tenta lavar a consciência.


É melhor ser alegre que ser triste. Pena a tristeza tantas vezes roubar o espaço que preferia dar à alegria.

Um pensamento sobre “Estas noites de mar de morte

  1. E se aquelas criancas que morrem por afogamentto forem a reencarnacao dos seus pais , avos ou irmaos mortos ou ate filhos ? Ou se formos nos reencarnados em outros corpos apos a morte esta vida. Nunca se sabe !

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