As quatro crises perante a União Europeia

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 02/05/2019)

Alexandre Abreu

Enfrentamos atualmente quatro crises decisivas. Todas elas possuem uma dimensão europeia fundamental. São elas a crise ambiental e climática, a crise humanitária às portas da União Europeia, a crise de fragmentação política e ascensão da extrema-direita, e a crise da cooperação e solidariedade do projeto europeu. A forma como as enfrentarmos será decisiva para o nosso futuro coletivo.

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A crise ambiental inclui a ameaça crítica das alterações climáticas mas também a extinção em massa provocada pela ação humana, a produção e libertação no ambiente de milhões de toneladas de plástico e outros resíduos, a desflorestação, a degradação dos solos e a destruição de habitats. É a mais critica de todas as crises porque coloca em questão a própria sobrevivência a prazo da espécie humana. Na sua origem está um modelo de organização socioeconómica assente na predação da natureza e na lógica individualista de curto prazo em detrimento da racionalidade coletiva e do respeito pelos limites do ambiente. É uma crise global, não europeia, mas a sua dimensão europeia é facilmente compreensível: se a Europa, que é o mais próspero de todos os continentes, não for capaz de liderar o processo de transição energética e de reorientação da produção para as necessidades sociais e para o respeito pelos limites do ambiente, dificilmente poderemos ter esperanças de que o planeta como um todo o faça a tempo de evitar as consequências mais catastróficas.

A crise humanitária resume-se num número: dezoito mil pessoas mortas no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa nos últimos cinco anos. Todas elas morreram em resultado direto da Europa-fortaleza – devido à ausência de formas alternativas, seguras e humanas, para chegarem ao continente europeu, seja em fuga da guerra ou em busca de melhores condições de vida. É uma crise humanitária e não migratória: os cerca de vinte milhões de pessoas nascidas fora do continente europeu que atualmente vivem na União Europeia são uma parcela muito pequena da população total de 500 milhões; os dois ou três milhões de requerentes de asilo chegados nos últimos anos são uma gota de água. Mas esta é também uma crise da consciência ética da Europa, um continente que reivindica a condição de farol moral do planeta ao mesmo tempo que permite que dezenas de milhares de pessoas morram às suas portas devido à incapacidade de assegurar os deveres mais elementares de hospitalidade e solidariedade.

A crise política é a da fragmentação da cooperação e ascensão dos egoísmos. Tem como manifestações mais evidentes o fechamento nacionalista e o crescimento do extremismo ultra-conservador e xenófobo num país após outro. É a resposta errada a ansiedades legítimas: vira contra os alvos errados – os estrangeiros, os imigrantes, os mais pobres – a angústia face à desigualdade, injustiça e desproteção que resultam de décadas de neoliberalismo. Tem um potencial destrutivo imenso: os monstros que cavalgam esta onda já mostraram que não hesitam em desmantelar o estado de direito e um património de direitos, liberdades e garantias que levou décadas a construir.

A quarta crise é a da longa deriva neoliberal do projeto europeu. A União Europeia sempre foi um projeto complexo e contraditório, uma arena na qual coexistem dinâmicas e fatores de solidariedade e progresso com dinâmicas de desigualdade e desproteção. A União Europeia de onde provêm os fundos de coesão que muito têm apoiado a modernização infraestrutural do nosso país é a mesma que impõe os constragimentos orçamentais absurdos que sufocam os nossos serviços públicos. A União Europeia que tem assegurado padrões importantes de proteção do consumidor é a mesma que permite a corrida para o fundo entre estados a nível fiscal e que promove a flexibilização e desproteção nos mercados de trabalho.

Nesta tensão entre dinâmicas contraditórias, as últimas décadas têm sido marcadas por um desequilíbrio crescente no sentido da desproteção e desigualdade, através da consagração de opções políticas neoliberais nos tratados europeus e da criação de uma União Económica e Monetária que é um gigantesco mecanismo de desequilíbrio macroeconómico e de divergência entre economias centrais e periféricas. Em resultado disto mesmo, o continente mais próspero do planeta conta hoje com 16 milhões de desempregados, um quarto da população em risco de pobreza, uma enorme vulnerabilidade dos estados sociais face à próxima crise e uma dinâmica explosiva de desequilíbrio e divergência no seio da zona euro.

Estas quatro crises estão ligadas entre si. A crise de fragmentação política e ascensão do extremismo é um resultado da angústia provocada pela desproteção social e económica. A catástrofe humanitária da Europa-fortaleza tem na sua origem uma abordagem securitária e um défice de hospitalidade que são muito anteriores à ascensão da extrema-direita mas que são por esta adicionalmente agravados. E as perspetivas de uma resposta cooperativa e atempada ao desafio ambiental são bastante mais remotas no contexto de uma Europa que constitucionalizou o neoliberalismo e onde imperam cada vez mais os egoísmos.

Porém, estas quatro crises podem também estar ligadas na sua solução, exigindo o reforço da solidariedade e cooperação. São necessários novos modelos de organização social que privilegiem soluções coletivas, de partilha e circularidade. É preciso refundar a política de acolhimento da União Europeia de forma a afirmar os princípios da hospitalidade e da solidariedade. É preciso que a política económica volte a ter como objetivos fundamentais o pleno emprego, a proteção social e o combate à pobreza, e para isso é necessário afastar os tratados, disposições e estruturas que impedem isto mesmo. E se conseguirmos dar passos neste sentido, seguramente estaremos também a eliminar o substrato de que se alimentam os egoísmos e a extrema-direita.

A resposta a todas estas crises está longe de ser esgotar nos mecanismos de democracia representativa, mas passa também por aí. Nas eleições para o Parlamento Europeu do próximo dia 26, todos temos a responsabilidade de nos informarmos adequadamente e de apoiarmos os projetos e propostas que respondam de forma mais consequente e adequada à urgência destes desafios.


O Muro

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 28/12/2018)

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(Assinaram-se Convenções que ninguém respeita. Produziram-se Declarações Universais de Direitos que são letra morta. Estão na moda os “direitos dos animais”, talvez para limparmos a má consciência de assistirmos impávidos ao espezinhamento dos Direitos Humanos.

E já não chega o muro da nossa indiferença para calar a voz e a aflição dos mais deserdados que nos batem à porta. Por todo o lado surgem muros de pedra e cal, muros de desumanidade, policias, mastins, guardas pretorianos nas fronteiras.

Até um dia em que não haverá muros que nos bastem para suster a raiva, para debelar a fúria de milhões. Muros.

Comentário da Estátua de Sal, 28/12/2018)


Ontem, já a caminho do final da tarde, recebi um e-mail de uma amiga, também ela jornalista. Muito lacónica, escrevia apenas: “Isto é que é mesmo um soco no estômago! E um excelente trabalho do NYT”. Abri a ligação e deparei-me com uma extraordinária reportagem do New York Times sobre o drama migratório no Mediterrâneo. O choque suscitou-me interrogações. O que é a agenda mediática? O tema do meu Curto de hoje deve ser o absurdo noticioso à volta de uma mirabolante não história sobre hipotéticos €500/hora que um hipotético médico aparentemente pretenderia cobrar como condição para trabalhar no Natal?

Porque é que persistimos em não querer ver os muros, reais ou imaginários, constantemente levantados à nossa volta? Precisamos de estar imbuídos do espírito natalício para combater no dia a dia a barreira intransponível de muros, só vencida, no espaço mediático, quando o espetáculo da desgraça humana consegue ser, em termos de audiências, mais aliciante que o espetáculo de algumas misérias humanas?

A história contada pelo NYT tem data: 6 de novembro de 2017. Mas podia ser de ontem. Pode estar a acontecer hoje, neste dia dedicado aos Santos Inocentes, Mártires, no exato momento em que escrevo, às 6 horas e 15 minutos deste dia 28 de dezembro de 2018. Fala-nos de um confronto Europa vs Europa. Narra-nos a história de, escreve o jornal, “voluntários lutando para salvar vidas, boicotados pelas políticas da União Europeia que depositam as responsabilidades pelo controlo de fronteiras na guarda costeira líbia”. Em vez de operações de salvamento, tivemos “20 pessoas que se afogaram e 47 outras capturadas”, que sofreram abusos, “incluindo violação e tortura”.

Como nem todos os muros são de betão, este muro criado pela União Europeia, bem real nas suas consequências, pode ser metafórico, se comparado com o muro físico que separa Israel da Palestina e torna milhares de homens e mulheres estrangeiros no seu próprio quintal. Poderá não ter o impacto visual do muro que Donald Trump quer construir, a separar os EUA do México. A ideia de muro é central na espécie de pensamento e no arremedo de ideologia cultivada pelo presidente dos EUA. O muro está a paralisar o Governo norte-americano.

Trump quer dinheiro para financiar a construção do muro. Os democratas não aprovam e o impasse está a fazer com que, por causa de um muro, um quarto dos departamentos públicos do país não esteja a funcionar e muitos milhares de trabalhadores não estejam a receber salário. Não importa. Porque o presidente dos EUA quer construir um muro. Um grupo de fotojornalistas foi para a fronteira com o México fotografar os muitos ângulos possíveis do drama provocado pelo muro a milhares e milhares de latino-americanos que se dispõem a caminhar milhares de quilómetros à procura de um sonho. Chegam, e esbarram num muro. Às vezes morrem. Junto ao muro. Ou para lá do muro.

A improvável jornada da luz de Natal que brilha em Damasco e se vê em Lisboa. Hoje como há dois mil anos

(Christiana Martins, in Expresso Diário, 2412/2018)

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Uma bola sem árvore, uma ceia com avós mas sem os netos, a saudade de tantos. E a luz, sempre a luz a brilhar. Nas lâmpadas e nos olhos de quem a quer ver. Porque é Natal, lá na Síria e aqui em Portugal. É Natal e há sempre tanta gente que falta. Um conto natalício sob a forma de retratos reais dos abraços que o pensamento é capaz de dar quando faltam os braços para se agarrar…


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