O Natal que passou nas redes sociais. A ilusão paga-se caro.
Eu não quero ser desmancha prazeres, mas ás vezes existe uma escuridão por detrás das luzes que nos pode fazer cair num buraco. O que vi e li nas redes sociais e na TV:
A classe média que domina as tecnologias da informação está bem e tem a mesa farta. O Natal deste ano foi um sucesso de felicidade familiar e culinário. Seria interessante saber que percentagem da população portuguesa gozou do Santo e Feliz Natal com mesa pantagruélica, mesas que, como as que aparecem nos FB em casas de classe média, há cem anos seriam apenas acessíveis à grande burguesia. Houve, pois um alargamento da base social da fartura e do excesso.
Os que nada têm para exibir são invisíveis como historicamente sempre foram. Sabe-se apenas que aumentou muito a pobreza envergonhada, que acorre a instituições de caridade, bancos alimentares, associações beneméritas. O Natal desse grupo, de que se desconhece a dimensão, não merece reportagens, não existe e, por isso, não estraga a imagem que as classes médias querem dar dele.
As comunidades imigrantes, que representam uma percentagem significativa da população também não existem em termos públicos.
A utilização do conceito de tradição é um bordão que serve para justificar tudo, desde as luzes a piscar ao Pai Natal e ao filme Sozinho em Casa. Também os cães com um barrete vermelho! A tradição do Natal de classe média empanturrada é, curiosamente, uma conquista do 25 de Abril de 1974: do fim da guerra colonial, da integração europeia, do abandono da ideologia do Estado Novo de exaltação da pobreza, da obediência e da ignorância.
Concluindo: o estreitamento da classe média e a exibição da sua riqueza, o alargamento da pobreza e o silenciamento de velhos e, principalmente novos pobres, muitos deles jovens, cria condições para ruturas violentas. A ideologia dominante, do individualismo neoliberal assenta nos pressupostos do mérito desta lei da selva, mas historicamente movimentos de grupos sociais em sentidos opostos origina choques violentos. É o que nos aguarda se continuarmos com estes princípios. O resultado da convicção de que os pobres podem comer brioches se lhes faltar o pão tem precedentes e as consequências são conhecidas!
O Governo decidiu não fechar o país no Natal e o apoio pareceu-me generalizado. Como diz Henrique Barros, “as pessoas foram visitar o pai, o velho tio ou um irmão doente ou um amigo. Fizeram-no, porque são seres humanos”. A decisão não foi tomada na ignorância. Sabíamos que o resultado seria um aumento de infetados em janeiro. Quem, como eu, a maioria das forças políticas e a maioria das pessoas, defendeu esta opção não pode vir agora bramar contra o confinamento. Assumo as minhas responsabilidades: quis a maior abertura no Natal. Isto é uma corrida demasiado longa e não é possível cortar com todos os domínios da vida em todo o momento. E sei, porque sou adulto, que isso tem um preço.
Tomámos coletivamente uma decisão. Ou melhor, o Governo tomou-a e o apoio pareceu-me bastante alargado. Claro que não tenho qualquer sondagem, mas foi pelo menos esta a perceção que tive. Eu e as forças políticas. Não quisemos fechar no Natal. A decisão foi tomada com base no conhecimento da nossa realidade cultural e social. Na convicção de que o encerramento seria não apenas pouco viável sem um aperto de fiscalização como ainda não tivemos, mas muito difícil de aceitar pela grande maioria das pessoas. O Natal não foi apenas um momento de descompressão. Foi um momento em que muitas famílias que vivem situações dramáticas de isolamento, esgotamento psicológico ou até doença puderam lamber as feridas. Numa data muito importante na nossa cultura. Isto é uma corrida demasiado longa e temos de cuidar das vidas de quem quer estar vivo.
Presto atenção às palavras de uma pessoa que me habituei a ouvir durante esta pandemia: Henrique Barros, especialista em saúde pública e epidemiologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Entrevistei-o em julho e aconselho a entrevista que deu recentemente ao Público: “Não é aceitável, nem moralmente, nem eticamente, não é decente dizermos que isto é culpa das pessoas. As pessoas têm de viver. O que é mais dramático e inaceitável é criarmos esta ideia de que isto foi culpa das pessoas que não ficaram sozinhas em casa. E foram visitar o pai, o velho tio ou um irmão doente ou um amigo. Fizeram-no, porque são seres humanos e tenho a certeza de que a imensa maioria teve a preocupação de se defender a si e aos outros.” E desdramatiza, na medida do possível: “É curioso verificar que, nos países onde se definiram regras muito precisas de como e quantas pessoas se podiam encontrar, o ricochete foi exatamente como nos portugueses ou, em alguns casos, pior ainda. Do ponto de vista das medidas, não havia mais nada a fazer. Quais seriam as medidas? Era impedir as pessoas de estarem umas com as outras. Não me parece bem.”
Ao contrário do que ouvi de um matemático, no sábado, na televisão, o preço de confinamentos prolongados não é apenas a crise económica. É tudo. São as outras doenças, são os dramas sociais, é o isolamento e os seus efeitos profundos, são os problemas psicólogos e psiquiátricos. É a saúde pública que não cabe em alguns cálculos pouco interdisciplinares. Repito o que tenho dito: defendo a ponderação de valores. Por isso, evito tanto os negacionistas como os engenheiros das almas, que julgam ser possível anular a vida das pessoas durante mais de um ano e as coisas não cederem por algum lado. Felizmente, não decidem eles. A muitos, falta a humildade que também se lê na entrevista de Henrique Barros: “Eu sou um cientista, epidemiologista e médico. Se a pergunta for ‘se nós confinarmos a infecção diminui?’ Sim. E deve-se fazer? Não me pergunte a mim. Como técnico, tenho de dizer aquilo que, no estado actual do conhecimento, se sabe que funciona. Mas há uma parte de ciência e uma parte de arte na tomada de decisões em termos de saúde pública. Do ponto de vista da saúde pública, o confinamento resolve o problema, naquele momento diminui a infeção, mas cria toda uma série de outros problemas, nomeadamente de natureza social. Se confinarmos todos, a sociedade pára. O balanço destas coisas é que tem de ser feito.”
A decisão em vésperas de Natal não foi tomada na ignorância. Estamos nisto há um ano. Foi dito expressamente que o resultado seria um aumento de infetados em janeiro. Até foi dito que uma pequena abertura teria logo um efeito de mola. Veremos, com mais tempo, como se compara com o que está a acontecer no resto da Europa, incluindo nos países que impuseram restrições maiores. Só há uma coisa que ninguém pode dizer: que não sabia que isto sucederia. Sabíamos todos e todos os que tinham espaço no espaço público o disseram e escreveram. Incluindo os que, como eu, defenderam esta opção. Poderão dizer que o Governo tinha o dever de nos contrariar. Isso seria verdade se nos faltasse informação. Não era o caso.
Esta escolha tem um preço: estarmos disponíveis para um aperto mais severo das próximas semanas. Quem defendeu este caminho, como eu, a maioria das forças políticas e, estou convencido, a maioria das pessoas, não pode vir agora bramar contra o confinamento – que espero que ainda possa excluir escolas. Por mim, assumo as minhas responsabilidades: quis a maior abertura no Natal, estou disponível para limitar a minha liberdade nos próximos tempos. Não é possível cortar com todos os domínios da vida em todo o momento. E sei, porque sou adulto, que isso tem um preço.
Natal. Seja lá o que isso for. Não é por fazermos votos de bom Natal que passaremos a ter um Mundo melhor. Nem que a vida passe a ser melhor para milhões de deserdados e sofredores da iniquidade e de um sistema económico em que poucos prosperam cada vez mais, em detrimento da grande maioria.
Mas as comunidades também vivem de rituais e da partilha de comportamentos. As tradições são isso mesmo. Uma herança da memória de outros tempos, por vezes atavismos fora de época. E essa partilha pode gerar uma resultante social, positiva ou não, construtiva ou não. Dinâmica para a esperança ou dinâmica para coisa nenhuma.
E neste Natal, em particular, dinâmica também para o perigo do contágio desse maligno e insidioso vírus aos que nos são mais queridos. Exige-se, pois, uma partilha de afectos controlada, como nunca nos foi exigido. Mas convém ter presente que ser sóbrio na manifestação dos afectos não os minimiza, e pode ser, isso sim, uma grande prova de amor.
Natal. Seja lá o que isso for, é pelo menos uma pausa na rotina de muitos de nós. Algumas liturgias tomam conta do quotidiano. As prendas, as crianças, as ceias, os encontros e reencontros – os possíveis neste ano em particular -, os presépios e outros símbolos para os crentes e até para os menos crentes.
E por isso mesmo, quer queiramos quer não, o Natal é sempre uma singularidade, no percurso do calendário anual. Quer para os que o vivem em esperança, em fervor e em otimismo, quer para os que amargamente sofrem o desânimo de nada ter para vivenciar, e para os quais o Natal é apenas mais um dia no caminho de um calvário repetido e constante. Lembremo-nos desses, reflitamos porque são as coisas assim e questionemos porque terão que ser assim.
E para que se mantenha a tradição, para todos os meus amigos e para todos os que me lêem. aqui ficam os meus votos de Bom Natal. Seja lá o que isso for. Seja lá o que cada um queira que seja e que possa ser nestes tempos sombrios de pandemia.