O Syriza perdeu e ainda bem

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/07/2019)

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Estive no referendo grego ao memorando com troika, em que o “não” venceu de forma clara. A palavra que mais ouvi, das muitas pessoas com quem falei, foi “dignidade”. Custa-me dizê-lo, mas não estou seguro de que, como povo, estejamos em condições de compreender o significado profundo que aquela palavra tinha na boca dos gregos. Porque ela vinha do fundo da alma de um povo orgulhoso. E, para o mal e para o bem, nós não somos um povo orgulhoso. Mesmo assim, confesso que fiquei surpreendido com o resultado do referendo. As pessoas foram votar com filas nas caixas multibanco para conseguir levantar o dinheiro quotidiano e perante um discurso de chantagem e terror vindo de Bruxelas. E mesmo assim disseram, sem hesitações, “não”. Sorte tem o político que lidera um povo com esta coragem.

Nas muitas entrevistas que fiz não deixei de notar, no entanto, que quase toda a gente laborava num equívoco. Com exceção dos comunistas ultraortodoxos, a esquerda grega é profundamente europeísta. E todos os gregos que iam votar “óxi” diziam-me duas coisas: que nunca aceitariam aquele memorando com mais uma dose cavalar de austeridade, privatizações, venda do país a retalho e humilhação e que nunca aceitariam sair do euro. Parecia-me, e disse-o a vários, que quem estava totalmente indisponível para dar o segundo passo não tinha qualquer arma negocial para recusar o primeiro. A possibilidade de saírem do euro era a única coisa que assustava a Europa. Seis meses antes daquele referendo, já não naquela altura.

Acontece que já nem essa arma tinham. Depois de seis meses a serem rabeados em Bruxelas, com a Alemanha a brincar ao gato e ao rato, os gregos ficaram num beco sem saída. Durante esses seis meses os gregos pagaram tudo o que tinham a pagar às instituições credoras (para nunca entrarem em incumprimento) sem receberem nada do que teriam de receber da troika. No momento da verdade, estavam totalmente descapitalizados, sem a possibilidade de simular sequer qualquer saída da moeda única. O objetivo daquele meio ano, às voltas com um ministro das Finanças inteligente e determinado mas sem qualquer experiência negocial ou política, foi mesmo esse. E o comportamento da União com a Grécia ficará para sempre como seu epitáfio moral. Foi nessa altura que perdi para sempre qualquer ilusão sobre este projeto. Aqueles meses mostraram de forma bem clara a natureza imperial, quase colonial, como as grandes potências olham para os seus “parceiros”.

Acompanhei a campanha do Syriza no referendo e não compro a teoria de que o queria perder. Pelo contrário, era bem claro o empenhamento de todo o partido e do governo na vitória do “não”. Varoufakis podia alimentar a possibilidade de sair do euro, ou pelo menos de vir a usar essa cartada, mas não me parece que Tsipras alguma vez tivesse pensado nisso. Hoje, a esta distância, estou convencido de que o objetivo era usar o resultado do referendo e a determinação do povo como posição de força negocial. Descobriram no dia seguinte que esse era o lado para que Schäuble dormia melhor. E terem pensado o contrário demonstra a ingenuidade daquela direção política. Fazerem aquele referendo e depois assinarem o memorando que o povo recusou foi um ato inaceitável. Se iam render-se, não chamavam o povo à luta. Se depois de o chamar o ignoraram, tinham de se demitir.

Feita a mais óbvia e descarada das traições, tudo o resto foi mais fácil. A traição deixou de ser um acidente, um recuo, uma derrota. Isso seria compreensível. Só é derrotado quem tenta lutar. Não. A traição passou a ser um programa político. Não apenas em relação à aplicação da austeridade, mas na política de refugiados, na política externa, em quase tudo. Não é o mesmo que ver o PCP e o BE a apoiarem um governo de recuperação que em muitas coisas lhe está distante. É ver Catarina Martins e Jerónimo de Sousa a governarem exatamente da mesma forma que Passos Coelho governaria, com convicção e já sem qualquer sinal de resistência. A política é, todos sabemos, a arte do possível. Mas não é a arte do transformismo. Não podemos ser o que não somos.

No balanço, os que têm de defender o indefensável tentarão explicar as pequenas diferenças de ter sido o Syriza a aplicar um programa de austeridade muitíssimo mais violento do que Passos por cá aplicou. Podia ser pior. Podia ser sempre pior. Mas, para o futuro, foi pior ter sido o Syriza a fazê-lo. Para a Europa, porque a traição de Tsipras rebentou com qualquer possibilidade de resistência em qualquer outro lado, impedindo que a crise ao menos servisse para mudar o rumo trágico que a UE seguia e continua a seguir. Para a Grécia, foi o desbaratar das esperanças e mobilização política de um povo. Em troca de nada. Hoje, o Syriza é o PASOK. Talvez menos corrupto. Por agora. E se o Syriza é o PASOK, o balanço é que se perdeu o Syriza. Quem fará agora oposição à esquerda quando vier mais uma privatização, mais uma perda de direitos, mais do mesmo de sempre? E com que argumentos? Na realidade, o Syriza foi fundamental para a Europa provar, de forma bem gráfica, que não há mesmo alternativa. Que é a TINA que governa em Bruxelas. E isso é o pior que podia acontecer ao projeto europeu, à democracia e à esquerda.

No domingo, a Nova Democracia venceu as eleições, com 40% dos votos (teve 28% em 2015). O Syriza ficou-se pelos 31,6% (em 2015 teve 35%). O Kinal, antigo PASOK, teve 8% (tinha 6%), os neonazis do Aurora Dourada saíram do Parlamento, ficando-se pelos 3% (tinham 7%), sendo substituídos pelo Solução Grécia, que conseguiu 3,7%. À esquerda, os comunistas do KKE mantiveram-se próximos dos 5,5% das anteriores eleições e o novo partido de Varoufakis entrou no Parlamento, com 3,4%. Se o Syriza não perdesse estas eleições era péssimo sinal. Era sinal de que os gregos e a sua esquerda estão anestesiados. A sua derrota, mesmo havendo uma recuperação económica que se limitou a apanhar a boleia de uma conjuntura externa favorável, é sinal de esperança.

Espantar-se-ão: já nem o Syriza eu apoio? Política não é futebol. Não torcemos pelos nossos mesmo quando se transformam no oposto do que são. Os partidos são instrumentais, o que interessa é o que fazem.

E é muito pior ser a esquerda a aplicar um programa de destruição de todos os seus valores do que ser a direita. Porque, ao fazê-lo, anula a alternativa. E é por isso que estou seguro de que, em Bruxelas e Berlim, nunca se desejou outra coisa que não fosse ter Tsipras a gerir o programa de austeridade, privatizações e perda de direitos. Agora podem voltar ao normal. Estes já estão anestesiados.

Perspectivas da tragédia grega

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 13/09/2018)

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Falou-se bastante nas últimas semanas da dita ‘saída limpa’ da Grécia do programa de resgate e ajustamento estrutural imposto pela troika e da mensagem vídeo elaborada por Mário Centeno por essa ocasião. De forma alinhada com a ortodoxia europeia, como seria de esperar de qualquer presidente do Eurogrupo, Centeno sublinhou o regresso da Grécia ao crescimento económico e à criação de emprego, os seus superávites orçamental e comercial e o facto da economia ter sido reformada e modernizada. O que mostra principalmente que, tal como a beleza, também o sucesso económico está essencialmente nos olhos de quem vê.

Efectivamente, tanto o emprego como o crescimento económico registaram ligeiras retomas na Grécia nos últimos tempos, mas o produto real grego é hoje em dia apenas cerca de 3/4, e o emprego total menos de 90%, do que eram em 2008. A população com idade entre 20 e 30 anos reduziu-se em mais de 25% em dez anos, principalmente devido à emigração. Independentemente do – ou graças ao – superavite orçamental, 20% da população activa continua hoje em dia desempregada. É um nível de devastação económica mais profundo até do que o da Grande Depressão, e a ligeira retoma agora apresentada como sinal de sucesso não é mais do que estabilização, aliás bastante precária, após um enorme retrocesso.

Claro que o sucesso grego dos últimos anos é mais evidente de outras perspectivas. Por exemplo, do ponto de vista dos investidores internacionais que adquiriram a preço de saldo activos públicos privatizados à pressa nos últimos anos, incluindo o Porto do Pireu, 14 aeroportos e a empresa petrolífera nacional.

Ou do ponto de vista das instituições financeiras privadas, principalmente francesas, suíças e alemãs, que detinham a maior parte da dívida pública grega em 2010 e que foram os verdadeiros resgatados pela troika ao evitarem as perdas em que teriam incorrido se a Grécia tivesse enveredado pela alternativa do incumprimento.

Outro ângulo interessante para avaliar a dimensão da tragédia grega é o que foi adoptado por um estudo de 2016 que, a partir da análise das águas residuais na cidade de Atenas, identificou enormes aumentos entre 2010 e 2014 no uso de antidepressivos (11 vezes mais), benzodiazepinas (ansiolíticos, 19 vezes mais) e antipsicóticos (35 vezes mais). Concluem os autores deste estudo, sem grande surpresa, que estes resultados reflectem o aumento da incidência de problemas de saúde mental em resultado da situação socioeconómica. Mostram também, digo eu, que quando falamos da crise na Grécia não estamos a falar de meras estatísticas económicas, mas de verdadeiros dramas pessoais.

Em resumo, o processo foi, e continua a ser, um sucesso do ponto de vista do capital internacional e uma enorme tragédia do ponto de vista da população grega. É tudo uma questão de perspectiva.

Altos cargos e pequenos homens

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 26/08/2018)

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(O Dr. Soromenho põe o dedo na ferida: quem é apoiante deste Governo e das políticas de recuperação de rendimentos, não pode deixar de lamentar o discurso de Centeno, “comemorando” a eufemistica “saída limpa” da troika das terras gregas. Por alguma razão nunca ouvimos, nem imaginamos ouvir, António Costa a fazer um discurso de tal recorte. Cada vez me convenço mais de que Costa está sozinho a pedalar na pista da Geringonça. Os meus votos é que não acabe por se transformar num Tsipras à portuguesa.

Comentário da Estátua, 29/08/2018)


 No famoso discurso proferido pelo presidente Lincoln na inauguração do cemitério nacional de Gettysburg, a 19 de novembro de 1863, quatro meses depois da grande batalha travada nesse local, e 18 meses antes do final da sangrenta Guerra Civil norte-americana, é a marca de água de um grande homem. São 272 palavras proferidas em menos de dois minutos, por um líder político que refundou os EUA, reinventou a instituição do presidente federal e reacendeu, temperado com o custo do seu sacrifício supremo, o farol mítico da atração universal dos EUA.

O recente discurso de Mário Centeno, na condição de presidente do Eurogrupo, durou um minuto e dez segundos, ligeiramente menos do que a alocução de Lincoln, mas o seu significado não poderia ser mais oposto. Pelas suas palavras e pelos seus atos, Lincoln elevou-se muito acima do importante cargo de presidente dos EUA, que também pode ser apoucado como ocorre agora com Donald Trump a uma escala que julgaríamos impossível.

Os grandes líderes são sempre maiores do que os cargos que ocupam, mas no caso de Mário Centeno, o economista português que criticava as limitações estruturais da zona euro e que exibia os erros e os sacrifícios inúteis das medidas de austeridade, eclipsou-se completamente. O que se viu e escutou foi um Jeroen Dijsselbloem ou um Wolfgang Schäuble a falar usando o rosto do ministro português como máscara.

Contudo, uma mensagem diferente não teria sido uma missão impossível. Centeno poderia ter atenuado o estilo simplificador do publicitário que exalta a qualidade do produto, neste caso a alegada recuperação económica e política da Grécia, subestimando a imensa dor e os danos irreversíveis causados por uma década maldita. Mas o que é verdadeiramente imperdoável, e constitui uma irreversível confissão de irrelevância por parte de Centeno, é a pequena frase em que o presidente do Eurogrupo atribui as causas das desgraças helénicas exclusivamente às suas “más políticas do passado” (bad policies of the past).

Para deixar o campo aberto para outras leituras, Centeno poderia ter referido sobre a ação da troika algo como “erros de um processo de aprendizagem”, ou até mencionado “responsabilidades partilhadas”.

Todavia, ao ilibar totalmente as instituições europeias (Conselho Europeu, Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Eurogrupo, Parlamento Europeu), bem como os grandes países, Alemanha e França, de qualquer ónus no mais repugnante processo de humilhação e empobrecimento de um povo na Europa desde 1945, Centeno fez recuar o relógio da União Europeia até 2008.

Como se não tivéssemos aprendido nada e tudo tivesse sido esquecido, como se o sofrimento passado tivesse sido inútil perante as imensas tarefas que a nau europeia terá de assumir se não quiser naufragar nas tormentas que se aproximam.

A tragédia grega foi a primeira demonstração inequívoca do erro matricial da zona euro, um erro contra o qual o chanceler Kohl advertiu no Bundestag, em novembro de 1991: uma união monetária não sobreviverá se não for suportada por uma união política. Quando George Papandreou, num gesto de lisura kantiana, revelou a realidade das contas públicas gregas no final de 2009, em vez de receber aplauso e solidariedade foi submetido ao fogo cerrado do longo holocausto da austeridade e do esbulho helénicos.

Centeno mostrou que pode subir ainda mais alto. Merece a confiança desta elite europeia que odeia a verdade e exulta com o preconceito.


Professor Universitário