O homem que deixou de ser português

(Pacheco Pereira, in Sábado, 26/08/2018)

JPP

Pacheco Pereira

A frase parece forte mas é mesmo assim: Centeno desde que foi para o Eurogrupo comporta-se como os seus congéneres que o antecederam e que tão mal fizeram a Portugal.

Mais: assumiu todas as políticas que nos garantem a sobrevivência na mediocridade, com surtos de falsa felicidade e quedas na realidade que vão ser particularmente dolorosas, mas que nos impedem de sair da condição de país remediado, com futuro mais ou menos assistido. É tudo menos uma política que mereça a classificação de nossa, de patriótica, dos nossos interesses de sair da cepa torta.

Depois, há a declaração sinistra, para não lhe chamar outra coisa, sobre a Grécia. Ele falou sobre a Grécia, e nada do que ele disse é verdade, como o que o Eurogrupo e Passos Coelho disseram sobre uma “saída limpa” que se revelou (e ainda mais se revelará bem “suja”). Muito do que corre bem na Grécia correria bem na mesma, com ou sem a receita da troika. E o que corre mal continuará a correr mal. Como Portugal, a Grécia está condenada a uma política ao serviço dos seus credores, sem autonomia para fazer diferente. E fazer diferente, lá vamos ter que repetir o óbvio, não é entrar num delírio despesista, é com todas as dificuldades apontar para outro lado, outras prioridades, outras necessidades, com todo o realismo de não ignorar os condicionantes. Há quem diga que isto é impossível e é wishfull thinking, mas não é e há quem saiba fazê-lo, mas os problemas são políticos antes de serem económicos. É que a receita da troika e a sua aceitação, como o PS através de Centeno faz em Portugal, moldam o sistema político a favor da direita e do populismo. Esperem por eleições na Grécia.

A Grécia foi traída por muita gente. Pelos governantes, irmãos do CDS e do PSD, que a deixaram na bancarrota, pelos socialistas que na Alemanha, em Portugal e por toda a Europa nesses anos cederam ao pior do “troikismo”. Por Tsipras que se rendeu e, como todos os que se rendem, tende a ser mais papista do que o Papa.

Pela Europa, com a vanguarda no governo alemão, os mastins no Eurogrupo e a cobardia generalizada dos partidos e países que aceitaram que na União Europeia se falasse a linguagem da ameaça e do ultimato, sem sequer ter os eufemismos habituais. Um dos frutos dessa política está à vista na Itália.

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Serial abusers

O que se vai sabendo sobre a imersão da hierarquia e dos padres da Igreja Católica num abuso sexual sistemático, generalizado, continuado e de grandes dimensões de crianças e adolescentes, mostra que o problema não é conjuntural, mas estrutural. Há algo de muito errado na maneira como na Igreja Católica se defronta e manifesta a sexualidade dos padres. Não sei se a exposição actual revela um fenómeno mais recente ou se foi sempre assim e estava escondido. Mas, seja como for, ou o celibato é insustentável, e isso é verdade quer para a heterossexualidade quer para a homossexualidade, ou um número de homossexuais encontrou na Igreja em tempos de repressão um local de pulsão e abuso, ou há um problema com o modo como homens solteiros (diferentemente por exemplo dos anglicanos e outros grupos protestantes que conduzem o “serviço” da Igreja como casal) são deixados num cadinho de jovens que eles influenciam e sobre os quais têm poder de que abusam. Seja como for, já se devia saber há muito e muitos já deviam saber, mas não se fez nada. Agora muita coisa tem de mudar, mas nada muda se a Igreja continuar a centrar, como faz desde o Império Romano, muito da sua actividade e doutrina na repressão da sexualidade.


“A verdade não é a verdade” 
Do mesmo modo que já não sabemos distinguir uma fotografia real (queira lá dizer “real” o que quiser!) de outra tratada com Photoshop, também é natural no mundo em que vivemos que a “verdade” possa receber o mesmo tratamento: digitalizada e passada pelos mecanismos “sociais” da Internet, dá para onde se quiser. Trump e o seu advogado Giuliani ambos disseram o mesmo “a verdade não é a verdade”, o que significa que cada um tem a sua “verdade” em que acredita e essa “verdade” tem pequena relação com os factos, ou que a “verdade” está em quem fala mais alto, tem mais seguidores no Twitter, tem mais audiência na televisão. Há vários efeitos deste processo, todos maus para a liberdade, a sociedade civilizada e a democracia, mas tudo isto está em curso. Trump e o actual momento político da América não é um epifenómeno passageiro, merece a maior das atenções e mesmo, imaginem, um ensaio filosófico.

Kalimera, bem-vindos de volta à normalidade?

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 21/08/2018)

LOUCA3

O vídeo de Mário Centeno sobre a Grécia (VER AQUI),  tem várias leituras possíveis, desde o seu conteúdo (que indica o que pensa o autor, admita-se) ao seu impacto (o desejado, mas também o imprevisto). Confesso que, depois de tudo o que foi dito, me interessa mais o impacto e o significado das respostas a Centeno, que definem alguns contornos interessantes da política portuguesa.

No entanto, o conteúdo merece ser escrito em pedra. Houve um processo do qual “todos aprendemos as lições”, começa por dizer o presidente do Eurogrupo, acrescentando que “isso agora é História”. Admita-se que possa haver alguma mensagem cabalística por revelar, pois não foi esclarecido o que seriam as tais saborosas “lições, mas se forem as referências seguintes às “más políticas do passado” na Grécia estamos em puro dijsselbloemês. No mesmo dicionário cabe o paternalismo da “responsabilidade” acrescida que agora incumbe aos gregos (ilustrado sub-repticiamente no vídeo com uma imagem de Tsipras). Mas o mais significativo é que, segundo Centeno, com as medidas de austeridade, “a economia foi reformada e modernizada”, mesmo sabendo-se que “estes benefícios ainda não são sentidos em todos os quadrantes da população”, mas “gradualmente serão”. “Nesse sentido, a Grécia regressou hoje à normalidade. Por isso, bem-vindos de volta”, um sorriso e está cumprida a função, assim tipo moralista, como agora se diz.

Sobre o fracasso da política europeia imposta à Grécia já escrevi a minha opinião aqui há poucas semanas. Notei então que Moscovici, um socialista francês, se tinha excedido no paternalismo bacoco (Ulisses volta à pátria, escrevia o homem) mas que Regling, do mecanismo europeu que vai gerir os dinheiros, se atrevia a mostrar a mão dura que vai garantir a agiotagem. Diga-se, de passagem, que as noções de “responsabilidade” e “controlo” soam mais realisticamente prussianas quando são evocadas pelo chefe dos credores. O facto é que a economia da Grécia foi destroçada, sobrevive com um surto de turismo barato e é um barco de papel lançado ao mar à espera de um milagre que se tornará um pesadelo na primeira oscilação dos mercados. O elogio do “regresso à normalidade” por Centeno é, por isso, uma forma de endossar uma política que o governo português repetiu até à exaustão que achava errada. “A Grécia salvou-se da troika”, festeja um editorialista em socorro de Centeno, e tudo soa a normalização do fracasso da austeridade.

Ora, é precisamente porque a mensagem é também para português ver que ganha tanta importância a forma como os partidos e os comentadores interpretaram Centeno. Creio que há três categorias de respostas essenciais.

A direita aferrou-se ao assunto. Argumento: o ministro é contraditório, apoia na Grécia o que diz rejeitar em Portugal. Tudo certo. Mas este argumento é um berbicacho para o CDS e o PSD. Primeiro, porque o que criticam a Centeno não é o que faz, mas é não dizer o que faz, porque no seu sucesso só estaria a completar o que a direita iniciou, essa austeridade que é o caminho da virtude. Ora, é coisa de meninos atacar um governo por fazer o que o próprio crítico entende estar certo. Na questão grega, outra vez a mesma efervescência: “duas caras”, diz Miguel Morgado, “duas caras”, protesta com originalidade João Almeida. Mas de que cara é que gostam e qual odeiam? A austeridade portuguesa foi ótima, a grega mais exagerada, dizem, mas Centeno é continuador de Vítor Gaspar e por isso é dos nossos, logo detestamo-lo. Que haja alguém nesta santíssima direita que ache que esta conversa move o eleitorado é um sinal fatal de perda de sentido da realidade. Morgado e Almeida, que fizeram o turno do comentário estival, não querem saber e aproveitam todas as oportunidades para lembrar ao milhão de eleitores que lhes fugiram em 2015 que estão contentíssimos com a política que levou Portugal a agravar a recessão. Tudo previsível, portanto.

Na esquerda, alguma surpresa. O PCP fez o comunicado do costume a desconversar, o problema é a União Europeia. E é, mas o problema é também quando não se discute o problema. O Bloco preferiu dizer que a tese implícita de Centeno, o sucesso do programa grego, é “ridícula”. Também poderá ser, se não for trágica. Mais, seria “insultuosa para os gregos e esclarecedora para os portugueses”. Será assim tanto? Em todo o caso, faltou a pedagogia e o debate claro. O discurso de Centeno mereceria outras perguntas: se este é o “regresso à normalidade”, se é assim que a “economia é reformada e modernizada”, então vale mesmo o corte nos salários e pensões? E a privatização dos portos e aeroportos? Porque essas são as questões que importam sempre que há uma crise e, isso sim, serve para Portugal, é uma “lição”.

Finalmente, a resposta mais importante de todas veio do PS, precisamente do seu anterior porta-voz, João Galamba, no mais duro dos comentários. Disse-se que foi voz única, mas o silêncio deve ser medido não tanto por não ter havido outras críticas escritas, mas muito mais por não ter havido nenhum apoio significativo que saísse à liça pelo presidente do Eurogrupo. Ninguém disse uma palavra a favor de Centeno. Silêncio sepulcral. Não sei se por terem os seus camaradas considerado que o vídeo seria um mero “pecadilho” de vaidade, e isso é comércio ligeiro, ou se por embaraço, afinal não foi nada disto que disseram na campanha eleitoral.

Mas há nestes debates uma revelação. Há pelos vistos quem tema o peso determinante da aliança Centeno-Santos Silva no governo, e que sinta que, deste modo, a política vai sendo conduzida por atoardas cínicas de um ministro anónimo nos jornais, mais uma austeridade que se sente irracional (atrasar os concursos de médicos especialistas para poupar uns tostões ou o ministro das Finanças ir ao parlamento responder na comissão de saúde, deixar degradar o material ferroviário, ou atrasar investimentos que vão ficar mais caros depois, por exemplo).

Ao elogiar a troika na Grécia, o ministro, que obviamente se prepara para voos internacionais – e por isso o seu vídeo é uma promoção de carreira – está também a dizer que, afinal, quando a economia aperta a receita tem que ser a de sempre. E é isso mesmo que se deve discutir com clareza até que a experiência e as ideias configurem uma alternativa sólida a essa austeridade, que é a máquina de destruição. Assim, Centeno fez um favor à esquerda portuguesa, apontando-lhe ainda não ter a preparação suficiente para uma economia competente.

Entretanto, o ministro faria bem em notar que Kalimera, a palavra com que inicia a sua alocução, tem um sentido diferente em grego e na sua transliteração em português.

Olha, somos a Grécia

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/07/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Em 2011 imitámos a bancarrota grega de 2010. Agora são os gregos que nos seguem na tragédia assassina dos incêndios descontrolados – muitas dezenas de mortos, autoridades a agirem sem tom nem som, populações abandonadas, enfim… Portugal não é a Grécia, dizia-se, e foi verdade durante uns anos. Agora é mais difícil não voltar a reconhecer semelhanças indesejáveis.” Este canhestro aproveitamento partidário dos incêndios na Grécia não me choca pelo mau gosto. Choca-me porque é provável que o deputado Carlos Abreu Amorim acredite mesmo que em quatro anos se dissipam, ainda mais com medidas de austeridade que obviamente fragilizam os serviços públicos, velhos problemas estruturais do território e do Estado e novíssimos problemas climatéricos. Deve ser fácil pensar assim. Talvez neste post esteja resumida todo o simplismo ideológico que dominou o discurso político do anterior governo. Abreu Amorim funciona como uma espécie de tradutor do primarismo político para uma versão ainda mais primária.

Nádia Piazza, presidente da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande e membro da comissão de programa do CDS (por mais respeito que nos mereça o sofrimento individual de cada um, quando as pessoas têm intervenção política o seu comprometimento partidário não deve ser ignorado), seguiu aqui no “Expresso”, de forma muitíssimo mais elegante e cuidadosa, o mesmo raciocínio, apenas menos oportunista do ponto de vista partidário: há um qualquer atraso cultural no sul que nos leva ao “desleixo” (uma expressão que ignora as condições em que as escolhas são feitas).

A comparação com a Grécia é natural. Duas tragédias com incêndios em que há sinais do Estado ter falhado. E é habitual. A Grécia sempre foi usada como nosso espelho. Sempre que repetimos, na nossa autoflagelação um pouco megalómana, que “só neste país” acontecem coisas más. Acrescentando depois: “e na Grécia”.

Somos a Grécia porque, antes de tudo, vivemos no mesmo planeta que, em poucas décadas, irremediavelmente destruímos. É isto que vamos deixar aos nossos filhos. Somos a Grécia, a Suécia, a Austrália, a Califórnia, só para falar dos incêndios. Somos o Laos, o Reino Unido, o Japão, só para falar do que está a acontecer esta semana. Quem tentasse falar do aquecimento global depois dos incêndios de outubro era incinerado por tentativa de desculpabilização do governo. Talvez seja altura de dizer a todos os que repetiram “que isto nunca mais aconteça” que isto vai acontecer cada vez mais.

Somos a Grécia porque temos algumas semelhanças climáticas. Como explicou ao “Público” Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas, “O que se está a observar é uma maior frequência de ondas de calor em todo o mundo. Nos países do Sul da Europa, da região do Mediterrâneo, também observamos um clima mais seco. A combinação dessa secura com temperaturas mais elevadas é que conduz a um maior risco de incêndios florestais. O que podemos esperar para o futuro é um agravamento dessas tendências, porque as alterações climáticas estão a progredir.” O aquecimento global não é apenas um tema de cimeiras internacionais, está aí para mudar as nossas vidas. E a Europa mediterrânea, com Portugal e Grécia à cabeça, está na linha da frente.

Somos a Grécia porque, na Europa desenvolvida, chegámos historicamente atrasados ao desenvolvimento. Por algumas razões semelhantes e outras diferentes. E isso quer dizer um Estado mais frágil, menos qualificação, menos recursos e, acima de tudo, menos planeamento.

O planeamento não resulta, ao contrário do que alguma conversa de autocarro adora pensar, de um desleixo determinado por uma cultura laxista. Resulta, acima de tudo, de razões económicas e políticas. Planear não é apenas uma questão de vontade, depende de recursos financeiros, técnicos e políticos. E quem não consegue planear acaba, como Portugal e a Grécia, a gastar mais no combate às consequências. Veja-se o coro de protestos contra a exigência de limpeza das matas (e o protesto tinha razões atendíveis que nos dizem coisas sobre o nosso atraso económico e social) e a indignação contra o Estado burocrático que impõe planeamento do território em comparação com a exigência de mais meios para o combate aos fogos para perceber como isto está entranhado nos hábitos.

Tal como o deputado Carlos Abreu Amorim tentou, da forma politicamente desonesta a que já nos habituou, associar o PS à Grécia, assumindo que a destruição pelo fogo resulta de uma qualquer tendência política especifica para o laxismo e subdesenvolvimento, não faltará quem se sinta tentado a criar uma relação entre a intervenção da troika nos dois países e o desastre. Mesmo assumindo que a austeridade debilitou os dois Estados, estamos perante a mesma estreiteza de vistas.

Para além das razões globais e regionais, que as opções políticas de cada país não podem mudar, a impreparação de Portugal e da Grécia para lidar com efeitos crescentes das alterações climáticas tem de ser vista bem para trás, em décadas de atraso e debilidade técnica e política do Estado, com efeitos na ausência de planeamento do território e de qualidade dos serviços públicos. Debilidades que a adesão à CEE (e depois UE) começou por contribuir para resolver e que hoje até dificulta. Quem não vê longe para o passado nunca verá longe para o futuro. E dificilmente consegue mais do que o pequeno oportunismo político do momento.

Se nos queremos preparar para o que aí vem temos de fazer escolhas políticas: mais planeamento implica dar mais poder do Estado sobre o território; melhores serviços públicos de prevenção e combate custa dinheiro. Tudo isto num país (em dois) que vem com um grande atraso em relação a outros e que sentirá os efeitos das alterações climáticas de forma muito mais acentuada e imediata do que eles.

Sim, somos a Grécia: estamos no mesmo planeta que destruímos, no mesmo sul da Europa cada vez mais seco e entramos nesta guerra com o mesmo atraso político, administrativo e económico. Sim, somos a Grécia: temos de nos preparar para isto num tempo em que se impôs a ideia de que as sociedades são mais eficazes se tiverem um Estado mais minguado e fraco. Sim, somos a Grécia com Costa ou Passos, Tsipras ou Samarás. Como em todo o mundo, o combate político tende a concentrar-se no oportunismo partidário do momento para não falar do que é estrutural e custa a mudar. Não há nada mais fácil do que culpar um governo porque não há nada mais fácil do que mudar um governo. Só custa mesmo ao governo.