Factos e clareza enquanto não chega o Ministério da Felicidade

(António José Teixeira, in Expresso Diário, 11/02/2016)

António José Teixeira

Está aí um filme que enche de orgulho aqueles que se reconhecem numa sociedade em que o escrutínio dos poderes públicos é uma condição essencial da democracia. Chama-se “O Caso Spotlight” e retrata uma investigação jornalística do jornal “Boston Globe” aos abusos sexuais de menores, perpetrados ao longo de décadas por dezenas de padres da Igreja Católica de Boston. Crimes encobertos pelas mais altas instâncias da Igreja e do poder político e que mereceram a cumplicidade silenciosa de uma sociedade condicionada pela Igreja. Este caso de pedofilia passou-se há 15 anos, abalou a Igreja Católica e teve repercussão internacional. Durante anos, apesar dos sinais e de algumas notícias avulso, ignorou-se a importância dos crimes e não se percebeu a dimensão brutal a que chegaram. Silenciaram-se, toleraram-se, como se fossem uma inevitabilidade. O alerta chegou de um novo diretor do jornal que, vindo de fora da comunidade, estranhou alguns casos e mandou os seus jornalistas investigar a fundo. O jornal dispõe desde os anos 70 de uma pequena equipa de jornalistas experientes, chamada precisamente Spotlight, liberta da agenda do dia, que se dedica em exclusivo à investigação jornalística. Dispunha de um bom arquivo e de bons hábitos de investigação. Não ficaram pelas secretárias, foram ao encontro dos abusadores e das vítimas, confrontaram os poderes e a própria Igreja. Demoraram meses, não se entretiveram a levantar pontas soltas, mas provaram inequivocamente que muitas dezenas de padres abusaram impunemente de crianças ao longo de muitos anos. Ganharam um Pulitzer de Serviço Público e provaram como o bom jornalismo faz bem à sociedade e à democracia. Muitos outros casos poderíamos lembrar, ainda assim poucos para a necessidade de pôr a nu poderes ocultos; menos ainda os que são exemplos sérios de bom jornalismo. Há alguns por cá. Mas poucos.

Lembrei-me deste Spotlight porque não faltam casos a exigir clareza. E há reversos da medalha que dariam boas investigações jornalísticas a pouco sérias investigações policiais.

Lembrei-me também do Spotlight porque o jornalismo tem vindo a fragilizar-se, a perder poder de escrutínio, a satisfazer-se num pobre contraditório, ainda assim útil, mas insuficiente para esclarecer o que precisa de ser esclarecido. Diz-se tudo e o seu contrário, faz-se pouco fact-checking, abre-se espaço demasiado a um discurso propagandístico, pouco alicerçado em dados concretos.

Mesmo quando os dados serão mais concretos, como os do Orçamento do Estado, a desorientação é grande. O que se passou afinal com o BANIF? Que se está a fazer dos despojos do BPN? E que história falta contar da venda de um desses despojos, outro banco, o Efisa, em que o Estado já terá metido nos últimos anos 90 milhões de euros para o vender por pouco mais de 30 a uns amigalhaços? São casos e mais casos que se vão acumulando, seguindo procedimentos pouco claros. Quando a polícia e a Justiça lhes toca, o jornalismo vai seguindo-lhes os passos, mas raramente revela autonomia e iniciativa própria. Quantas vezes o jornalismo é braço instrumental de interesses que lhe são alheios? A frustração também me responsabiliza enquanto jornalista, mas nem por isso devo inibir-me de a partilhar. “O Caso Spotlight” mostra que é possível lutar por uma sociedade mais aberta. Também em Portugal é possível fazer mais e melhor. É preciso fazer mais e melhor. Sobretudo enquanto não chegam os Ministérios da Tolerância e da Felicidade, que acabam de ser criados no governo dos Emirados Árabes Unidos. O xeque Al Maktoum quer “criar o bem social e a satisfação”. Aí, poderíamos descansar. Ou talvez não.

Entre a irrelevância e a palhaçada

(António José Teixeira, in Expresso Diário, 14/01/2016)

António José Teixeira

1. A campanha presidencial arrasta-se sem novidade. Demasiadas vezes não vai além do fait divers quotidiano. Uma ida de Marcelo Rebelo de Sousa à farmácia, com um batalhão de jornalistas atrás, para comprar toalhetes de álcool, é um dos pontos altos desta paródia. É assim em muitas campanhas. É assim para televisão mostrar. É assim porque se querem esconder arestas. É assim porque se quer matar a política. A campanha tornou-se uma espécie de Big Brother em que dez vaidosos (uns mais do que outros) cumprem diariamente um enredo que suscite um sorriso, mesmo que amarelo.

A campanha tornou-se uma espécie de Big Brother em que dez vaidosos (uns mais do que outros) cumprem diariamente um enredo que suscite um sorriso, mesmo que amarelo

Goste-se, ou não, uns mais pobres do que outros, os debates e entrevistas (nunca foram tantos e tantas) constituíram a única montra aceitável para os 10 candidatos dizerem ao que vêm. De resto, esta campanha ficará para a história como uma das mais confrangedoras e apalhaçadas de sempre. Marcelo deu um grande contributo para que assim seja. Apostou numa corrida de popularidade e em cativar o eleitorado de esquerda. Tornou-se, imaginem, o maior aliado do Governo de António Costa. Distribui simpatia “à esquerda da direita”, metida no bolso que julga estar a sua direita. Não se sabe, e essa é a grande incógnita, se a direita quererá ficar no bolso de Marcelo, se não se sente desprezada, ela que se viu apeada pelos que agora Marcelo tenta seduzir. Com tanto cheque em branco ao Governo, com tanta palhaçada diária, muitos poderão ficar em casa. Se Marcelo não quis saber deles porque é que eles quererão apoiar Marcelo?

A possibilidade de uma segunda volta depende da tolerância da direita e do empenho do eleitorado de esquerda. Apesar das sondagens, talvez a notícia prematura da vitória de Marcelo à primeira volta tenha sido exagerada. Marcelo precisa de fazer mais por isso. Se ficar pela poncha e pelas artes marciais enquanto se afirma árbitro com enfado porá em causa a corrida de popularidade.

Os debates com Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém correram-lhe mal. Foi sobranceiro e irritadiço. Deu alento a um e a outro, sobretudo a Nóvoa, que ainda o pode surpreender. Consigam os candidatos do PCP e do BE fixar eleitorado e Marcelo ainda pode ter uma grande surpresa.

Já agora, quando é que as administrações dos hospitais e dos centros de saúde acabam com as visitas eleitorais? Há muitos anos, vemos doentes expostos à propaganda e às câmaras de televisão. Não faz nenhum sentido. É um desrespeito absoluto pelos que se encontram diminuídos nas suas capacidades. Os doentes não deveriam ser cenário eleitoral.

2. “A Queda de Wall Street” é um filme de Adam Mckay, que regressa à crise financeira de 2008. Depois de “Inside Job”, voltamos à história de uma derrocada gigantesca a que quase todos fecharam os olhos. Estupidez, ganância e fraude minaram o capitalismo financeiro, como nunca tinha acontecido. Nem por isso se curou. Mesmo depois de terem sido os contribuintes chamados a pagar a fatura. Por cá, não faltam exemplos de desvario e impunidade. Um filme que ajuda a abrir os olhos.

Golpistas, fraudulentos e outros dislates

(António José Teixeira, in Expresso Diário, 19/11/2015)

António José Teixeira

E vão 9 dias. E não sei quantos mais. Contudo, longe ainda dos cinco meses de sacrifício primo-ministerial de há 28 anos… Não é preciso ser de esquerda para perceber a irracionalidade do comportamento de Cavaco Silva. Goste-se, ou não se goste, o Presidente não tem alternativa: indigitar o segundo partido, que já tornou públicos os apoios maioritários. Um governo de gestão não tem suficiente capacidade de decisão. Nem para aprovar um Orçamento. Um outro governo carece de qualquer legitimidade e será derrubado. Uns criativos falam agora de um “governo técnico”. Um disparate. Cavaco Silva sabe tudo isto.

Podemos ter dúvidas sobre a durabilidade e a eficácia de um governo do segundo partido, mas isso não anula a sua legitimidade nem os apoios com que conta. Será a menos má de todas as soluções que poderíamos considerar, mas é uma solução que cumpre o essencial para fazer caminho. Não há soluções blindadas para quatro anos. A democracia comporta riscos, os governos podem ter percalços, mesmo os que dispõem de maiorias absolutas.

Um Presidente em final de mandato tem poderes limitados. Não é por acaso. É precisamente para não ceder a tentações. Em contrapartida, a Assembleia da República goza de proteção. Não é uma desvalorização do papel presidencial. É um equilíbrio de poderes, que nesta circunstância não pode deixar de ser tido em conta.

UM PRESIDENTE EM FINAL DE MANDATO TEM PODERES LIMITADOS. NÃO É POR ACASO. É PRECISAMENTE PARA NÃO CEDER A TENTAÇÕES. EM CONTRAPARTIDA, A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA GOZA DE PROTEÇÃO. NÃO É UMA DESVALORIZAÇÃO DO PAPEL PRESIDENCIAL. É UM EQUILÍBRIO DE PODERES

Ao contrário do que muitas vozes mais exaltadas têm vindo a dizer, não vivemos por estes dias nenhuma espécie de anormalidade democrática, seja em sentido jurídico, ético ou político. O Presidente indigitou e empossou (mesmo sem garantir qualquer espécie de viabilidade) um governo do partido e da coligação mais votados. Legítimo e correto. O governo chumbou. Nada a apontar. A decisão do Parlamento é soberana e tão legítima jurídica, ética e politicamente como a do Presidente. Só relembro e repito os factos e argumentos porque muitos parecem continuar a alimentar uma irracionalidade sem precedente. As regras constitucionais são as que são e a liberdade/vontade dos eleitos (Presidente e deputados) não deveria autorizar dislates como as alegações de golpe e de fraude. Propor uma revisão constitucional porque se discorda do chumbo do nosso governo pela Assembleia da República não lembra ao mais atrevido… Ou melhor, talvez lembre aos que confundem derrota democrática com usurpação de poder. Questões básicas, que não nos deviam ocupar a atenção. Podemos e devemos ter opinião sobre programas, propostas, acordos, políticas e políticos. Podemos concordar e discordar. Podemos contestar, marcar diferenças, denunciar contradições. Não vale é meterem-nos os dedos nos olhos com lições terceiro-mundistas de funcionamento democrático. A quem exerce ou disputa o poder democrático exige-se mais responsabilidade.

A lentidão de Cavaco Silva é preocupante. Não porque não tenha o direito de ouvir todas as organizações e personalidades de que se lembre (outros o fizeram). Mas porque Portugal não se pode dar ao luxo de estar sem governo só porque o Presidente quer marcar o seu território, valorizar o seu papel ou afirmar que é ele que decide.

Temos os cofres cheios… sossega Cavaco. Cheios de dívidas. O seu antigo assessor João César das Neves alertou (já depois das eleições…) para aquilo a que chamou “ratoeira”. Registo algumas das suas ideias: os sinais positivos são aparentes, há bombas retardadas que gerarão problemas graves, desemprego perdeu dinâmica de descida, investimento recusa-se a atingir um nível decente, empresas continuam descapitalizadas, bancos continuam frágeis… Como se tudo isto não bastasse, diz o insuspeito César das Neves, há um cansaço da austeridade. Serão argumentos suficientes para convencer o chefe de Estado a colocar rapidez na sua decisão? Ou precisará de ouvir mais personalidades? O contexto internacional não é suficientemente incerto para não se perder tempo?

À atenção do Presidente da República.

Guerra

O que aconteceu em Paris já mereceu rios de revolta, medo e solidariedade. Sentimentos por vezes contraditórios, nem por isso menos autênticos e nobres. Insuficientes contudo para contrariar uma direção cada vez mais nítida. Não estamos perante meros atos de terrorismo. Deparamo-nos com ações de clara insurgência, dentro das nossas fronteiras e fora das nossas fronteiras. Procura-se enfrentamento direto, o rosto do inimigo. Quer-se convocá-lo para a guerra. Só faltava que a Europa voltasse à guerra civil… Para já, a França está em guerra. Estaremos todos em guerra? Estaremos já a matar-nos? Não são fáceis as respostas. Saibamos ser lúcidos e conjugar segurança com liberdade.