Como funcionam as pessoas que influenciam Costa na sombra?

(Vítor Matos, in Expresso Diário, 12/02/2022)

Fora do círculo dos ministros influentes, António Costa mantém amigos que ouve sobre assuntos do Governo e até remodelações. Não tem uma “eminência parda”, mas foi contratar um veterano da comunicação para consultor especial da campanha que lhe deu a maioria absoluta.

Primeiro faz conversa. Pode não ser explícito. Sonda, sem dizer exatamente. Procura a opinião sobre este ou aquele, antes de fechar a decisão sobre quem vai tirar, e testa as perceções sobre quem vai pôr. As remodelações não se anunciam, apresentam-se feitas. Isso faz parte das regras elementares da política. Mas há um círculo de amigos que as podiam antecipar. Em outubro passado, António Costa começou a fazer essas conversas com alguns confidentes e a medir a temperatura para remodelar em novembro, depois da aprovação do Orçamento do Estado, que não chegaria a acontecer. Um amigo de Costa, desse grupo que vive discretamente na sombra, diz que o primeiro-ministro usa uma espécie de técnica de focus group para auscultar gente de fora da bolha de São Bento, que não esteja contaminada pelas questões internas, para consolidar a decisão. “Com as suas subtilezas, por vezes o António vai fazendo essas conversas, sem dizer exatamente o que é…” Dessa vez não foi. Vai ser agora, com a formação do novo Governo.

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António Costa não remodelou no verão, depois da presidência portuguesa da União Europeia, como se previa e esperavam vários membros do Governo. Adiou. A remodelação foi empurrada para depois do Orçamento do Estado, para sair também o ministro das Finanças, João Leão, a quem os colegas apontavam dificuldades de diálogo. Mas a possibilidade havia de cair com o chumbo do OE para 2022, que desencadeou tudo o resto, a crise política, a dissolução e as eleições com o novo quadro parlamentar. Em vez de remodelar um Governo desgastado, que teria mais dificuldades em refrescar, António Costa acabou por ganhar a maioria absoluta de que não estava à espera para formar um Governo mais pequeno, estilo task force — em que os membros do seu círculo mais próximo ocuparão cargos fundamentais, mas do qual amigos que já tentou convencer noutras alturas continuarão de fora. Os que têm estado na sombra devem permanecer na sombra.

Não têm estatuto de “conselheiros especiais”, como Francisco Lacerda Machado, rotulado de “melhor amigo”, advogado ligado aos negócios, que vive entre a sombra da influência informal e as funções que o “amigo” lhe foi pedindo para exercer; ou como José Manuel dos Santos, outro velho amigo, que como Lacerda já recusou convites para o Governo e que esteve nos círculos mais próximos de Mário Soares e de Jorge Sampaio e fez parte das respetivas Casas Civis, em Belém; ou ainda como José Lemos, um consultor do Porto, que foi responsável pelas finanças do PS na era guterrista, mas cuja opinião o líder socialista continua a prezar, para receber inputs próximos da realidade das empresas e dos empresários.

Ao contrário destes, conseguiu convencer Pedro Siza Vieira, um dos amigos de faculdade que escutava informalmente e que levou a sair do conforto do escritório de advogados para entrar no Governo, como ministro-adjunto primeiro e depois na atual pasta como ministro da Economia. Vítor Escária, economista e especialista em fundos e em assuntos europeus, que pertenceu às equipas de José Sócrates, chegou a ser outro “conselheiro especial” informal, integrado na estrutura primeiro como assessor e depois como chefe de gabinete (e os chefes de gabinete dos primeiros-ministros são figuras tão discretas quanto poderosas). Fernando Medina, o delfim ex-presidente da Câmara de Lisboa, era mais uma dessas fontes privilegiadas com quem o primeiro-ministro trocava bolas — e cuja influência, por exemplo, teve consequências na redução dos preços dos passes sociais —, mas que passará agora a membro efetivo do Governo com uma pasta relevante.

A alguns destes amigos, Costa é capaz de mostrar o elenco governativo que vai levar a Belém, como já chegou a fazer, mesmo antes de ter todos os nomes estabilizados, porque há recusas de última hora a ter em conta e ajustes a fazer. Para montar o puzzle quando a estrutura já está definida, o primeiro-ministro parte para aplicar critérios como das paridades de género, regionais, de pessoal político vs. independentes, ou de experiência/juventude, explica um próximo. Resta saber se, no novo elenco, Costa abrirá espaço para um número dois político de combate que possa dar o peito às balas, para se preservar do desgaste de uma governação tão longa.

“Uma campanha não pode ser divergente da bolha mediática”, disse Paixão Martins. O consultor assume o seu “maior erro da campanha” quando Costa falou em governar com o PAN

As influências informais de António Costa têm “uma geometria muito variável”, explica um socialista que trabalhou com ele muitos anos e que também integra esse círculo de gente bem informada fora da estrutura oficial. “Tem dois circuitos: o dos ministros”, onde Mariana Vieira da Silva e Augusto Santos Silva desempenham papéis primordiais, “e os que são de fora”. E esta gente “de fora”, que Costa ouve discretamente, sobretudo ao telemóvel — cujo número mantém há anos —, é “uma rede” ligada a áreas sectoriais cuja relação ele cultiva, seja na cultura, com quem estreitou relações na Câmara de Lisboa, ou ligadas à Justiça e à Administração Interna, cujos ministérios liderou, ou atores na economia. Troca mensagens, notas, ideias. Há coisas que por vezes diz cuja proveniência nem os mais próximos conseguem traçar. Ninguém identifica, no entanto, uma ou duas “eminências pardas” que tenham uma influência política determinante junto do primeiro-ministro, no sentido literal da éminence grise, um conselheiro poderoso como Leclerc du Trembley, o frade capuchinho de hábito “pardo”, próximo de “Sua Eminência”, o cardeal Riche­lieu, de onde nasceu a expressão. A não ser quando é preciso contratar mesmo uma “eminência parda”…

As eminências pardas da campanha

O consultor de comunicação Luís Paixão Martins estava reformado desde 2015. Com o desenca­dear da crise do chumbo do Orçamento, recebeu um telefonema, em meados de dezembro, de Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, já no papel de diretor de campanha do PS, para ser o “conselheiro especial” do líder socialista na disputa eleitoral de 30 de janeiro. Paixão Martins, ex-jornalista e fundador da LPM, uma das referências na área da comunicação e do marketing político em Portugal, tinha sido o estratega da maioria absoluta de José Sócrates, em 2005, da campanha presidencial de Cavaco Silva, em 2006, e trabalhara com Costa numa das campanhas autárquicas em Lisboa.

Luis Paixão Martins, um dos estrategas por trás da maioria absoluta do Partido Socialista, em Lisboa. FOTO TM

Aceitou. Abriu um parêntesis na sua vida campestre, em que explora a Herdade do Clube de Tiro de Monfortinho (Idanha-a-Nova), na Beira Baixa — uma propriedade com alojamentos, restaurante de caça, armaria e tiro desportivo —, para passar mês e meio a afinar o tiro político dos socialistas. O spin doctor da campanha do PS só saiu assumidamente da sombra depois das eleições, quando participou num programa da CNN e falou ao Expresso sobre a estratégia que, inesperadamente, deu a maioria absoluta ao partido do Governo. Ainda antes de contactar o veterano, Duarte Cordeiro contratou Vasco Mendonça, publicitário e consultor de marketing, autor das crónicas de futebol “Um Azar do Kralj”, que eram publicadas pela Tribuna Expresso, que montou uma equipa de 30 pessoas para tratar da imagem da campanha, do grafismo e dos vídeos e de um aspeto fundamental: as redes sociais. E da coordenação da ação de mais de 4 mil voluntários.

Ao contrário de Rui Rio — que não teve qualquer estudo ou sondagem de apoio às decisões estratégicas da campanha —, Costa preza os instrumentos que lhe permitem orientar o discurso e a ação política. Os socialistas tinham uma sondagem nacional, uma tracking poll diária, e estudos qualitativos que foram ajudando a moldar os argumentos de António Costa ao longo dos debates e depois nas duas semanas de campanha oficial. Rui Rio não tinha nada. Se o socialista reunia o núcleo duro com o “conselheiro especial” — e infletia ou adaptava o rumo quando era preciso —, o social-democrata não se encontrou com o seu consultor, João Tocha (que também já trabalhou para António Costa), nem aplicou a componente estratégica que este lhe propôs. A partir do debate com Costa, e que ainda teve alguma preparação, a campanha do PSD foi puramente “amadora”, avançando ao sabor do “instinto” do líder, diz ao Expresso um social-democrata próximo de Rio que acompanhou a caravana laranja. O trabalho invisível de Luís Paixão Martins nos bastidores teve consequências visíveis no caminho que levou ao resultado final do PS. O trabalho de João Tocha, tirando a componente gráfica, não foi sequer testado na totalidade pelo PSD.

Enquanto Paixão Martins teve reuniões quase diá­rias com o núcleo duro socialista na sede do Largo do Rato antes de o candidato ir para a estrada, o suposto homem-sombra de Rio ficou na penumbra e à distância da própria campanha, porque o líder social-democrata tem ideias estabelecidas que não se moldam ao marketing político. As fotos de António Costa para os cartazes, por exemplo, foram tiradas com esse objetivo, com o protagonista a encarnar a pose de primeiro-ministro, “com um sorriso contido, para não parecer excessivo nem arrogante”, explica Vasco Mendonça. As fotos de Rio eram antigas e não feitas com aquele propósito, como se percebia pela falta de resolução do último outdoor nas ruas, com o presidente do PSD meio desfocado, mas galvanizado, a fazer o “v” de vitória.

Rio tinha como braços direitos a assessora de imprensa de sempre, Florbela Guedes, que fazia a ponte com o pessoal do marketing, e o diretor de campanha e secretário-geral do partido, José Silvano. No círculo mais restrito do rioísmo, Manuel Teixeira, ex-jornalista e ex-diretor do “Comércio do Porto”, professor universitário, ligado ao sector do imobiliá­rio, foi sempre apontado como a verdadeira “eminência parda” de Rui Rio. Tinha a alcunha de “Cardeal Richelieu” quando era chefe de gabinete de Rio na Câmara do Porto. Aprecia e cultiva o facto de viver na sombra do poder, a influenciar sem ser visto. Embora tenha pertencido à Comissão Política do PSD ao longo destes anos, ninguém o conhece. Ainda mais discreto, desde as diretas que o líder laranja também foi recebendo sugestões e colaboração do ex-deputado do Porto Nuno Delerue, uma influên­cia externa que não terá agradado muito ao núcleo duro do líder social-democrata. Mas Rio move-se sobretudo pelas suas ideias e leituras da realidade.

De resto, a componente estratégica da campanha socialista transpôs para a estrada a organização de São Bento, que comunicava entre si através do grupo do WhatsApp intitulado “Combate 2022” e reunia em lobbies de hotéis ou à mesa de restaurantes para consolidar ou mudar estratégias. O estado-maior de António Costa era composto pelos seus conselheiros mais influentes: Duarte Cordeiro, o diretor de campanha, foi o motor operacional de toda a organização e da mobilização permanente do partido, que teve call centers regionais preparados e a telefonar para milhares de militantes e simpatizantes; Maria­na Vieira da Silva, ministra da Presidência, andou pelo país com discrição, como a “guardiã do programa e dos compromissos do PS”, como a descrevem várias fontes socialistas, papel de “consciência necessária”, que também desempenha no Governo (além de servir de tranquilizante para as fúrias de Costa); Tiago Antunes, secretário de Estado Adjunto, manteve a posição de conselheiro permanente e distribuidor de jogo que tem no Governo; Vítor Escária, o chefe de gabinete, acompanhou tudo e esteve presente nos momentos mais decisivos; David Damião, o assessor de imprensa com mais anos de São Bento (Guterres, Sócrates e Costa), fazia a ponte com a comunicação social.

Mais recuado nos bastidores do que Luís Paixão Martins — que diz tratar apenas da parte visível do icebergue —, o publicitário Vasco Mendonça foi o responsável pelos cartazes, pelo slogan “Juntos seguimos e conseguimos”, pelo verde seco do fundo de todos os suportes, para transmitir uma ideia de esperança, pelos drones que sobrevoavam as ações de campanha e que acabavam em vídeos distribuí­dos pelos vários canais ou pelos memes e mensagens a distribuir nas redes sociais, como o Face­book, o Twitter ou o Instagram. A famosa gravata verde que Costa levou para todos os debates mimetizava o fundo dos cartazes e, se não passava a ideia-chave de “estabilidade” que a campanha queria transmitir, foi um dos elementos mais estáveis do que o próprio discurso do candidato. Em todos os debates com Costa, oito a dez pessoas coordenadas por Mendonça assistiam aos duelos televisivos e, no final, já tinham material preparado para distribuir nas redes.

Quando acabou o confronto Costa-Rio, tinham e-mails escritos para os milhares de voluntários da base de dados, para espalharem a mensagem pelas redes sociais, “que permitia defender os pontos de vista da campanha e explorar as fragilidades do outro lado”, explica Mendonça. Avançaram com as frases fortes mais favoráveis a Costa e as mais desfavoráveis para Rio, com clips de vídeos para distri­buir, incluindo pelo WhatsApp, onde era possível fazer uma segmentação por idade e localização geo­gráfica dos recetores. A linha da campanha do PS era “explorar as contradições de Rui Rio e eviden­ciar que o candidato era menos sério e mais ambíguo do que aparentava”, diz Mendonça, que municiou as pessoas “com a informação de que Rio era contra o aumento do salário mínimo” ou com a posição de “toca e foge sobre Saúde que teve no debate” — ambos eixos de comunicação inoculados no discurso do próprio António Costa.

Vasco Mendonça, uma das pessoas por trás da vitória do PS nas Legislativas de 2022. Em Oeiras. FOTO TM

Mais tarde haveria de aparecer um vídeo a circular nas redes sociais — estava António Costa a começar uma arruada em Coimbra ao lado de Marta Temido — com declarações de Rui Rio contra os aumentos do salário mínimo, cuja autoria Vasco Mendonça nega mas que levou o líder do PSD a acusar os socialistas de “campanha negra” baseada em “mentiras” e frases “truncadas” (o que, aliás, também se tornou um eixo de comunicação dos so­ciais-democratas). “Mas não se fez uma campanha negra”, garante Vasco Mendonça. Uma “campanha negra” é outra coisa, como aquela com que Paixão Martins tinha lidado em 2005, quando fez consultoria para José Sócrates e apareceram notícias através de um jornal brasileiro, secundado depois pelo “Crime”, de uma suposta homossexualidade do candidato socialista. Foi antes da era das redes sociais…

A iminência do maior erro: a colagem ao PAN

Durante a campanha, Costa falou pouco com os amigos de fora da bolha, mas aqueles com que foi falando dizem que esteve sempre confiante de que ganhava, embora oscilante sobre a dimensão da vitória. “Quanto maior a aflição, maior o otimismo”, chegou a dizer aos jornalistas depois de uma visita aos Caretos de Podence, em Trás-os-Montes. As sondagens internas do PS deram sempre o partido à frente do PSD, e com a possibilidade de chegar à maioria absoluta, mais otimistas do que as publicadas nos jornais e nas televisões (sobretudo por causa da distribuição dos indecisos). O núcleo duro da campanha ia trabalhando com as médias de todas as sondagens, mas o que lançava mais dúvidas no espírito dos socialistas e tornava o resultado imprevisível era mesmo não saberem qual seria o nível de participação dos confinados e dos idosos, que se podiam assustar com o facto de os infetados irem votar.

A “eminência parda” regressada da reforma ajudou Costa a recalibrar o discurso e a mudar de agulha quando foi preciso. Antes de mais, o argumento da maioria absoluta que Costa foi introduzindo aos poucos no discurso servia para fugir à pergunta sobre com quem ia negociar os Orçamentos, se com a esquerda, se com o PSD. Qualquer resposta seria inconveniente. Segundo Luís Paixão Martins, todos os estudos lhe diziam que os portugueses não gostam de maiorias absolutas — sobretudo os eleitores potenciais do PS —, mas os inquéritos também apontavam que os portugueses não são maioritariamente a favor de nenhum tipo de Governo (e aquele que mais aceitam até é o bloco central). Isso chegara para descansar o consultor. Mas, quase no fim da primeira semana da volta, foi de emergência a Évora ter com António Costa e com os principais conselheiros para travar esse discurso, durante um almoço de petiscos alentejanos num restaurante conhecido da cidade. Nos estudos qualitativos que tinha na mão, uma espécie de focus group assinalava que era melhor acabar com os pedidos de maioria absoluta e fugir do tema da TAP. E as sondagens daquela quinta-feira não estavam a ajudar.

O consultor de marketing Vasco Mendonça chefiou mais de 4 mil voluntários que espalhavam memes pelas redes sociais e pelo WhatsApp. Enviaram mais de 2 milhões de e-mails

Naquele dia, 20 de janeiro, a campanha socialista recebeu a sua sondagem da GfK, que dava o PS com 39,2% e o PSD com 32,6%, uma vantagem que lhe permitia chegar à maioria absoluta na margem máxima. Mas tanto o inquérito da Católica para o “Público” como a tracking poll da CNN, que já eram conhecidos do “Combate 2022”, mostravam o PSD a aproximar-se perigosamente e a perspetiva de maioria absoluta a esfumar-se. Mesmo que o voto consolidado (sem a distribuição de indecisos) fosse o mesmo para PS e PSD no estudo da Católica e no da GfK, não valia a pena continuar a insistir. A perceção estava a mudar. Os jornalistas não acreditavam na possibilidade da maioria absoluta. “E uma campanha não pode ser divergente da bolha mediática”, explicou Paixão Martins na última edição do Expresso.

Esse discurso desapareceu ainda nessa noite do cardápio, apesar de o Expresso citar Costa no dia seguinte, em primeira página, a dizer que “pela primeira vez” acreditava que a maioria absoluta era “possível”. Esta não era a primeira inflexão. O conselheiro especial já tinha cometido um erro, a contribuir para a sensação de uma campanha ziguezagueante, cujas curvas e contracurvas iam sendo apontadas pelos comentadores nas televisões.

“O maior erro da campanha é o PAN, e a culpa foi minha”, assume Paixão Martins ao Expresso. Parecia óbvio, na preparação para os debates televisivos, o que responderia o candidato sobre com quem falaria primeiro para fazer uma maioria estável. “Ocorreu-me o PAN”, diz o consultor, porque “foi o único partido que se absteve na votação do Orçamento”, ou “o único que não contribuiu para a crise”, como diria o próprio Costa no confronto com Inês Sousa Real. “Tenho uma reserva de caça, sou armeiro e organizo montarias”, conta Paixão Martins, que tem o perfil mais carnívoro e distante do PAN que se possa imaginar. Mas “não estava à espera da reação no partido e de Manuel Alegre”, que escreveu no “Público” que colocar o PS “na dependência do PAN” era ir contra a sua “cultura de liberdade”. Mais um tiro corrigido. A partir daí, Costa passou a evitar a ‘ecogeringonça’.

Eis que entra em cena mais uma vez um protagonista inesperado, o “Zé Albino”, estrela no Twitter do dono, quando Rio publica mais uma foto do gato, “desolado com esta aproximação do PAN ao PS”. O líder do PSD gosta de baralhar, e os spin doctors de Costa iam ficando baralhados. “Andava às voltas, à procura do racional da campanha do Rio, e não conseguia perceber. Porque é que ele foi buscar isto do gato? Passei dias a pensar nisso”, confessa Luís Paixão Martins. Fontes próximas do líder do PSD contam que não havia racional, que eram impulsos da exclusiva responsabilidade de Rio. Mas Vasco Mendonça fez uma leitura do que estava a ver, até por saber que a BLAT, uma agência de marketing digital, que já tinha trabalhado com Carlos Moedas em Lisboa, estava em campo com a máquina laranja (no site da agência aparecem o PS e o PSD como clien­tes): “Parecia que estavam a apostar numa campanha de entretenimento, para garantir que o candidato era mais amigável.” Se não era intencional, “funcionou”, diz o publicitário. “O alcance orgânico de uma foto do gato é enorme”, e esse engagement “aumenta o alcance superior nas comunicações seguintes”. Nos bastidores, a campanha do PS ficou alerta e valorizou os mais de 3 mil retuítes do post do gato. Costa havia de reagir e atacaria a campanha de Rio, baseada em “graçolas”, mas também comentaria o bicho, certo de que, “com uma vitória do PS, o ‘Zé Albino’ ia sentir-se menos só”, com o regresso do dono a casa. Os seus cães, a “Nana” e o “Docas”, já estavam habituados às ausências dele.

No caso da campanha do PS, foram alcançados cerca de 3,5 milhões de utilizadores nas redes so­ciais ao longo do período pré-eleitoral, segundo dados de Vasco Mendonça. Havia mais de 4 mil voluntários registados e mil utilizadores ativos todos os dias na aplicação dos voluntários. Foram distribuídos mais de 2 milhões de e-mails, mais de 300 mil envios de WhatsApp e mais de 50 mil chamadas feitas a partir dos call centers regionais. A mobilização da máquina foi massiva. Podia não ter resultado, Mendonça diz que é fácil analisar agora o “resultadismo”, mas a estratégia de comunicação integrada parece ter funcionado.

Sobretudo na última semana da campanha, a estratégia de Costa focou-se em “transformar Rui Rio no incumbente”, explica Paixão Martins, e fazer-lhe oposição como se o líder do PSD fosse o primeiro-ministro, para assustar o eleitorado de esquerda com uma possível vitória do “papão” da direita com tendências privatizadoras no SNS e na Segurança Social, e ao mesmo captar votos ao centro e na classe média. O mantra era contrapor às posições de Rio os “conteúdos” do programa do PS, como a descida do IRS, a subida do salário mínimo e médio, o aumento extraordinário das pensões. E acenar com o Orçamento, que já estaria em vigor se tivesse sido aprovado, sem outras promessas. Os ataques cada vez mais violentos, na última semana, a colar um Governo do PSD à dependência do Chega visavam gerar dúvidas ao centro e gerar “abstenção útil” entre os votantes sociais-democratas mais moderados. Os banhos de multidão que envolviam Costa ser­viam de mensagem subliminar para mostrar energia e aceitação popular. O voto útil na esquerda já tinha sido garantido, sobretudo no debate em que Costa esmagou Jerónimo de Sousa e depois com Catarina Martins. O foco agora eram os moderados.

Quando faltavam poucos dias para os portugueses irem às urnas, mais uma reunião com Paixão Martins, desta vez no Sheraton do Porto, quartel-general na ponta final da corrida, com todo o núcleo duro, para afinar os detalhes: começou já de madrugada e seria retomada no dia seguinte de manhã. Foi decidido simplificar a mensagem e repeti-la nas arruadas nas conversas com as pessoas que falavam com António Costa. Na verdade, quando abordado, antes de mais, o socialista dizia que nada estava ganho, porque era preciso mesmo era ir votar. Esse apelo permanente à mobilização do voto foi o alfa e o ómega desde o início, uma vacina para combater a síndrome de Lisboa — de ter a vitória como certa — e que acabou por ser dramatizado quanto mais apertadas eram as sondagens. Depois, o candidato repetia sem cessar a conversa sobre o aumento das pensões quando encontrava um idoso, ou o IRS quando falava com um jovem. Para passar nas televisões.

“As sondagens não estavam a nosso favor, mas usámos a narrativa a nosso favor”, diz Paixão Martins. Quando Rui Rio mostrou excesso de confiança e disse que já estava a pensar na estrutura do Governo ou recomendou a Costa que perdesse com “dignidade”, o PS voltou a subir nas tendências. Na caravana, Duarte Cordeiro continuava a comentar, mesmo com o nível de incerteza que mantinha, que os dados de que dispunha davam vantagem aos socialistas. E António Costa parecia tranquilo, mas afinal não acreditava na maioria absoluta que pela primeira vez achara ser possível. Mesmo na noite eleitoral, já no Altis, era um cenário “extremo” que tinha excluído ao início da noite. Ao longo de anos, Costa achava que nunca ganharia eleições, conta um amigo: tinha perdido para a associação de estudantes por uma unha negra, tinha deixado escapar a Câmara de Loures por um punhado de votos, e em 2007 não tinha sido fácil convencê-lo a avançar para Lisboa. Apesar da reputação de ser mau em campanha, de todo o núcleo duro era o que tinha mais experiência nesta lide. Uma reportagem do “Observador” sobre as reuniões internas da candidatura, mostra um Costa impaciente com a equipa, por vezes ríspido, a discutir detalhes dos horários, das entrevistas, a comentar que o debate com todos os candidatos nas rádios era “um horror”, com que deviam acabar. Ou a pedir “independentezinhos” para abrilhantar os comícios.

Apesar de demonstrar disciplina a cumprir as decisões estratégicas tomadas, o front man desta banda não é um boneco de plasticina para encaixar no molde preparado pelas “eminências pardas”. A equipa é sobretudo de “executores” das ideias dele, diz uma fonte de São Bento. “Não se treina o António Costa, nem se faz media training”, acrescenta Paixão Martins. Acabou por ter o resultado que talvez não tivesse conseguido se fosse esse o resultado mais previsível.

Os special ones são assim tão especiais?

Em Inglaterra, os special advisers de Downing Street têm sido mais tema de controvérsia do que os assessores de São Bento, pintados como as figuras do mal que engendram as mais perversas conspirações ou manipulações, como foram os casos de Alas­tair Campbell, o “conselheiro especial” do ex-primeiro-ministro Tony Blair, ou de Dominic Cummings, no caso de Boris Johnson, mas de quem já se afastou. Não tem havido, em Portugal, figuras sem funções governativas tão catapultadas para a primeira linha da opinião pública como estas, mas já passaram por São Bento figuras mais influentes do que outras.

“Os conselheiros especiais podem ser vistos como atores políticos de direito próprio”, escreveu o britânico Andew Blick no livro “People Who Live in the Dark” (Politico’s, 2004), onde este professor em King’s College analisou o papel dos conselheiros especiais nos governos britânicos ao longo dos anos. “Alguns deles já eram figuras de relevo, sobretudo no campo intelectual, e levaram esse peso consigo para o gabinete; alguns tinham qualificações e contri­buíam com ideias que, se não fosse assim, estariam fora da Administração; outros eram forças motivadoras de iniciativas políticas que nasceram das suas características pessoais.”

Nos governos portugueses, tem sido menos comum haver conselheiros de gabinete com uma influência superior aos membros efetivos do Governo. No caso de Cavaco Silva, por exemplo, que tinha como grandes conselheiros políticos Fernando Nogueira, Manuel Dias Loureiro ou Luís Marques Mendes, sobressaiu o assessor de imprensa Fernando Lima, que se orgulhava de desempenhar um papel fundamental na ligação do primeiro-ministro ao mundo real. Sempre na sombra, a sua função como filtro e estratega na relação com os media foi determinante no jogo político ao longo de anos, até ter sido afastado da linha da frente pelo próprio Cavaco, já como Presidente da República, depois de uma polémica sobre uma alegada vigilância de São Bento a Belém, nos idos de Sócrates — informação que o consultor de comunicação presidencial teria passado a um jornalista e que fez correr rios de tinta em 2009, marcando essa campanha para as legislativas. “Desde que fui afastado, quem passou a rodeá-lo, e que fez segredo de quase tudo, meteu Cavaco Silva numa concha”, chegou a escrever Fernando Lima, anos mais tarde, no seu livro de memórias, que se chamava exatamente… “Na Sombra da Presidência” (Porto Editora).

Costa cultivou a informalidade dos conselhos de amigos como Lacerda Machado. Nos próximos quatro anos, quem lhe dará uma visão de fora não contaminada pelos ares de São Bento?

Noutros governos, como no de José Sócrates, os que mais se aproximariam dessa figura do special adviser seriam o assessor de imprensa Luís Bernardo e Almeida Ribeiro, o ex-espião do SIS formado em Filosofia que dava densidade aos discursos do primeiro-ministro e que foi visto ao longo desses anos como uma “eminência parda” do gabinete. Até ser promovido a secretário de Estado Adjunto já na fase final da governação socrática.

António Costa, no entanto, nem sempre interiorizou esse tipo de conselheiros na estrutura. O caso mais célebre foi o de Lacerda Machado — amigo da faculdade que chegou a ser seu secretário de Estado na Justiça e era administrador da Geocapital, do macaense Stanley Ho —, que lhe começou a dar apoio, e sem remuneração, no caso dos “lesados do BES”, mesmo antes das legislativas de 2015. Depois, Lacerda foi “conselheiro especial” e um dos negociadores do acordo entre o CaixaBank e a angolana Isabel dos Santos no BPI, para reduzir a exposição deste banco a Angola. E esteve na “renacionalização” ou recompra da TAP pelo Estado, em que passou a integrar a administração. Forçado pela polémica pública a formalizar as ajudas de Lacerda Machado, Costa acabou por o contratar com uma avença simbólica de 2 mil euros mensais. Para tratar dos assuntos difíceis. Numa longa entrevista à revista “Sábado”, Lacerda Machado diria que a amizade com Costa o tem “prejudicado mais do que beneficiado”. Como não pôde ir para o Governo em 2015, sentiu-se em dívida e foi ajudando o “melhor amigo”.

Antes de deixar a sociedade de advogados Linklateres, para entrar no Governo, Pedro Siza Vieira — outro colega de faculdade — também tinha colaborado com Costa em matérias como a reforma da supervisão financeira e até tinha chegado a ser nomeado para a Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas. Era comum discutirem ideias quando o líder socialista era presidente da Câmara de Lisboa: fazia parte desse círculo com que Costa trocava impressões, notas e pensamentos.

Menos visível tem sido Vítor Escária, o chefe de gabinete que já tinha sido assessor económico de José Sócrates e que António Costa repescou para o gabinete, até ele ter de se demitir com o rol de arguidos do Galpgate, o caso das viagens ao Euro 2016 a convite da petrolífera. Saiu de São Bento em 2017, para voltar em 2020, com as funções que tem hoje, e é descrito por um amigo como “competentíssimo, muito seguro em tudo o que tenha a ver com Europa e economia internacional”, com a vantagem de não ser militante e por isso não ser encarado com uma ameaça pela máquina. No interregno daqueles três anos, também teve a sua fase de consultor contratado por uma agência governamental, presente numa viagem de Costa à Hungria para debater com o controverso Viktor Órban o fundo de recuperação europeu (a ‘bazuca’), porque estava a acompanhar a negociação do Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia como coordenador de um grupo de trabalho enquanto professor do ISEG. Fundamental na fase da presidência da União Europeia, no primeiro semestre de 2021, todas as decisões políticas passam por ele, distribui jogo pelos vários ministros, tem a incumbência das relações com Belém e pelas funções “tem o filtro da porta de entrada em São Bento”. “É muito independente e não é o assessor que lhe diz o que ele quer ouvir. Não sei se ele gosta, mas ele precisa disso, mesmo quando fica irritado”, diz um antigo membro do Governo.

O único “conselheiro especial” com esse nome foi o independente António Costa Silva, administrador da Partex, nomeado pro bono para ajudar o Governo a preparar o programa de recuperação económica, mas este não fazia parte das relações pessoais do primeiro-ministro. Quanto ao Governo que aí vem, há dúvidas e certezas: Mariana Vieira da Silva, a ministra da Presidência e voz do bom senso, vai manter o papel proeminente que foi conquistando nos últimos anos para “não deixar flutuar a narrativa” e não deixar Costa derrapar; Duar­te Cordeiro passará certamente de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, para um papel mais influente; Tiago Antunes, secretário-adjunto, deve manter-se como uma das principais figuras do núcleo duro de aconselhamento; resta saber se Augusto Santos Silva, a “eminência” da experiência (mas nada parda), continuará no Governo, como a principal voz da estratégia política, seja no núcleo duro seja nos Conselhos de Ministros. Com quatro anos de maioria absoluta pela frente, António Costa, como todos os líderes que perduram no poder, precisará mais que nunca dos conselhos informais de quem olha para o mundo a partir de outros postos de observação. O ar em São Bento costuma ficar saturado com o passar dos anos. Os primeiros-ministros precisam de oxigénio.


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PS e PSD têm uma campanha comum: reanimar o voto útil

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/12/2021)

Daniel Oliveira

A oposição interna do PSD converteu-se à disponibilidade para viabilizar um governo do PS, se este ficar em primeiro. Exige que o PS se comprometa ao mesmo. Para o apelo ao voto útil, querem que as pessoas acreditem que as maiorias parlamentares voltaram a não interessar, mas quem fica em primeiro. No encontro da JS, Costa desdisse o que defendeu em 2015, a que deve sua carreira, e o mesmo. Rio e Costa precisam disto para a campanha.


A oposição interna ao PSD foi até Santa Maria da Feira a fazer o pino – o que não é nada fácil – e transformou o que até há uns dias era o principal motivo para atacar Rui Rio no seu discurso: a disponibilidade para viabilizar um governo do PS, se este ficar em primeiro, para o libertar das garras radicais do BE e do PCP. Em troca, exige que o PS se comprometa a fazer o mesmo.

Este discurso, que há umas semanas fazia de Rui Rio o candidato a vice-primeiro-ministro sem ambição, foi interiorizado pelos seus opositores. Ouvimo-lo, no congresso, da boca de Poiares Maduro e Montenegro. Tem razão Salvador Malheiros: o cheiro a poder atrai. Uma das razões porque são necessários partidos à esquerda e à direita do PSD e do PS é para, além desse cheiro, sobrar alguma coisa.

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É natural que o PSD defenda esta posição. A posição de Rangel de novembro de 2021 (é indispensável ser rigoroso de que versão de Rangel estamos a falar) era insustentável. Ninguém acredita numa maioria absoluta do PSD e o anúncio prévio de alianças com o Chega não tem um efeito simétrico aos entendimentos do PS com o resto da esquerda. Porque fora da bolha fanatizada da direita há uma perceção geral de que a prática política e as propostas do BE e do PCP (tal como as da IL) não põem em causa o Estado de Direito democrático. Por isso, os entendimentos com eles não fizeram o PS perder votos (até cresceu, em 2015) e a simples ideia do PSD se aliar ao Chega o faria perder o centro. Os eleitores mais centristas sabem distinguir o que não se compara.

Na realidade, depois do discurso de encerramento do congresso do PSD, em que Rio piscou o olho à extrema-direita com o seu “Make Portugal Great Again” e culpabilizou os pobres madraços que não querem trabalhar pela falta de mão de obra em alguns sectores, os entendimentos com o Chega tornaram-se menos improváveis, como André Ventura se apressou a sublinhar. Mas não interessa a Rio, por agora, ir tão longe. Precisa daquele fundo do congresso, com a palavra “centro” bem grande, que tanto destoa das palavras que foi dizendo.

Por outro lado, o PSD precisa de combater a fragmentação partidária à direita. Para isso, é indispensável dar uma utilidade dramática ao voto no PSD: o que interessa não são as maiorias parlamentares – pode-se governar contra a vontade da maioria dos votantes –, o que interessa é quem fica em primeiro (até coligado, como foi com Passos Coelho, em 2015). É impossível dizer que esta posição, que torna irrelevante o voto de todos os que não escolham dois dos nove partidos representados no Parlamento e deixa governar quem tem a oposição da maioria seja a mais democrática. Mas é a mais útil a PSD e PS. E é natural que a tentem reavivar.

A ideia de que deve governar o que fica em primeiro, independentemente da maioria que existe, só tem um problema para o PSD: terá de retirar o apoio ao governo dos Açores, que existe no pressuposto contrário. Mas Rio não é o único a defender, nesta matéria, coisas diferentes conforme o contexto.

Em princípio, esta posição não poderia ser explicitada por António Costa, que deve a sua carreira política à sua recusa. Por isso, apesar deste ser o discurso ideal para ele neste momento, chegava lá, até agora, através de um atalho: passando a ideia que deixaram de existir condições para negociar com o resto da esquerda. Mas no encontro da Juventude Socialista foi mais claro, dando uma nova cambalhota (a sua posição de 2015 já era a oposta do que defendera em 2011), e anunciou que agora já não se elegem maiorias, mas o primeiro-ministro. Ele ou Rui Rio (mas não foi ele ou Passos Coelho).

Costa quis o BE e o PCP quando precisava deles para chegar ao poder e com isso mudou as regras não escritas do jogo, reforçando o parlamentarismo. Agora, para voltar a ter as vantagens do voto útil que lhe permite conquistar os votos dos que não confiam nele, mas não querem a direita no poder, precisa de regressar ao pré-geringonça. Foi essa a função desta crise e da ausência de acordos, em 2019: desfazer a novidade de que precisou em 2015.

As sondagens mais recentes ajudam o PS. O resultado em Lisboa também, apesar de comparar autárquicas com legislativas ser absurdo, porque as regras são diferentes. Numa governa quem fica em primeiro, na outra governa quem constrói maioria. Se fosse igual, ou Passos tinha continuado primeiro-ministro ou Medina ainda seria presidente da Câmara. Mas tudo isto cria um clima de medo à esquerda.

O BE e, com menos intensidade, o PCP mantêm a ideia de que entendimentos são possíveis, apesar de saberem que só se reforçassem a sua posição é que poderiam vencer os impasses de 2019. Ainda assim, os votos nestes partidos, assim como o voto na IL, são os que mantêm intacta a mudança que se operou em 2015 e que politicamente nos aproximou dos países europeus com democracias mais maduras: a ideia de que elegemos um Parlamento e não um líder de Governo. Que é das maiorias que se formam na Assembleia que sai o Executivo. Que os Parlamentos devem representar a diversidade política dos países. Se é isto que os eleitores querem, é outra coisa.

Nas próximas eleições decidimos bem mais do que o novo governo. À esquerda, decidimos se a representação se concentra de tal forma no centro que todo o sistema se desequilibra inevitavel e até inexoravelmente para a direita. E se se reverte a novidade política que nasceu em 2015, que tornou a pluralidade da esquerda mais produtiva. A novidade fundamental não foi uma aliança para suportar um governo. As alianças são sempre passageiras e circunstanciais. Foi a transformação das eleições legislativas naquilo que a Constituição sempre disse que elas eram: para um Parlamento plural, não para um governo monocolor que já nem se usa em quase nenhum país europeu, mesmo depois de crises e dissoluções.

À direita, decide-se se o PSD consegue estancar a fragmentação e se o PS o retira da enrascada em que está, aceitando a falsa equivalência entre PCP e BE, por um lado, e Chega, por outro. Aceitar a inevitabilidade do voto útil, para salvar o PSD do Chega e o PS do BE e PCP, é aceitar essa equivalência.

Sempre que se discutem as alianças há alguém que diz que devemos é discutir os programas. Compreende-se a vantagem de manter o mistério sobre entendimentos futuros. Isso naturaliza a ideia de que só estamos a eleger um primeiro-ministro. Mas se assumirem que o Governo será de minoria com a abstenção do maior partido de oposição – a solução mais instável e menos saudável para a democracia –, eles não poderão cumprir as suas propostas mais distintivas.

Debater a política de alianças é debater o programa que verdadeiramente será aplicado. Mesmo que isso não interesse às estratégias de campanha do PS e do PSD, que precisam de reanimar a validade do voto útil.


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Populismo mediático

(Daniel Oliveira, in Expresso, 31/12/2020)

Daniel Oliveira

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Tino de Rans gasta um décimo de Ventura, que gasta um terço de João Ferreira mas o triplo de Ana Gomes, que gasta o dobro de Marcelo. É isto o início da campanha, numa sucessão de títulos de jornais. Despolitizar a política é, há anos, uma das principais ocupações da comunicação social. Neste caso, alimentando a ideia de que os candidatos podem gastar o mesmo por estarem em igualdade de circunstâncias. Marcelo está no lugar e na televisão todos os dias. Para ter igual exposição, João Ferreira teria de gastar muitíssimo mais. Já há cinco anos Marcelo criticou os seus oponentes pela despesa em outdoors. Exposto durante 15 anos, semanalmente e em horário nobre, fez-se Presidente em dois canais de televisão. Mas queria que os que se tinham de se dar a conhecer prescindissem desse esforço. Precisamos de um jornalismo que escrutine o poder. Não precisamos de substituir a democracia pela mediocracia. A campanha populista contra os gastos dos candidatos é uma campanha pelo monopólio mediático sobre a política. Uma campanha inútil em tempo de redes sociais. Mas perigosa, quando essas redes, concebidas de forma a favorecer a polarização, se arriscam a ficar com o exclusivo da mediação. Claro que podemos fazer perguntas difíceis: quem paga as dispendiosas campanhas do Chega, apesar da magra subvenção de um partido com um deputado? E podemos ter respostas difíceis: ao contrário de outros, o PCP não encontra os seus eleitores no Twitter.

Mas é bom lembrar que o populismo de que todos se queixam não nasceu nas redes sociais. O mais desbragado medrou nos tabloides. O mais sorrateiro, que trata com desprezo o poder que elegemos e com obediência os poderes não eleitos (do poder judicial que é fonte de notícias ao poder económico que é financiador de jornais), nasceu na imprensa de referência. E, apesar do moralismo, foi o jornalismo-espetáculo que favoreceu a arruada inútil, o soundbite comicieiro, a polémica vazia para encher ciclos noticiosos de 24 horas. Podem-se e devem-se fazer campanhas mais baratas. Mas elas têm de ser feitas fora da televisão e não podem ficar reféns das redes sociais. E isso custa dinheiro.


Chateia-me, pá!

A brincadeira corre na internet para mostrar como pensa um anti-vaxxer. Com ironia, alguém conta que sofreu uma intoxicação alimentar. Decidiu fazer uma pesquisa e descobriu que, todos os anos, elas matam 420 mil pessoas. Desde então, não alimenta os filhos. Sabe que a alimentação previne a fome, mas acha irresponsável ignorar os perigos associados à comida. E apela a que cada um faça as suas pesquisas. Só depois devem decidir se querem pôr crianças em risco, alimentando-as. Céticos em relação à ciência, os anti-vaxxers têm uma inesgotável fé em tudo o que encontram no Google. É a pandemia do conforto, típica de sociedades ricas e mais habitual em pessoas escolarizadas, com a arrogância do meio conhecimento. Como sempre, haverá reações adversas à vacina contra a covid-19. Mas aos que se tencionam pendurar na minha imunidade, esperando para ver se não há perigo, apetece-me propor que também fiquem para o fim se precisarem de cuidados intensivos. Não o faço, porque aceito a escolha de cada um. Apenas sublinho que quem, sem contraindicações, decida não se vacinar está a prolongar a pandemia e a limitar a minha liberdade por mais tempo do que o necessário. E isso é, como diria Pinheiro de Azevedo, uma coisa que me chateia.