Lições de impunidade

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 10/03/2023)

Miguel Sousa Tavares

Há algumas lições fundamentais a reter do relatório da Inspecção-Geral de Finanças sobre a TAP. A primeira delas é que, pela natureza das coisas e pela experiência que delas temos, a história não acaba aqui: se hoje a empresa será eventualmente ressarcida dos 500 mil euros que indevidamente pagou à sua ex-administradora Alexandra Reis, dentro de anos, em tribunal, será condenada a pagar 5 milhões ou mais à sua CEO agora despedida.

Em matéria de contencioso jurídico — e esta é a segunda lição —, o Estado português, por mais que recorra aos mais caros e supostamente melhores escritórios privados de advocacia, desprezando os seus próprios serviços jurídicos, como fez a TAP, acaba sempre, na hora do ajuste de contas, por perceber que foi mal assessorado nos contratos, nas decisões, nas privatizações e em tudo o resto — e, sobre isso, a TAP é um catálogo sem fim.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

A terceira lição é eloquente sob a forma leviana e irresponsável como se gerem as empresas públicas entre nós — mesmo uma onde os contribuintes tinham acabado de investir à força 3,2 mil milhões, naquilo que nos foi vendido como a última e única hipótese de salvação de uma empresa essencial para o país. Que a tutela gerisse isto sem cuidar de saber os trâmites legais para demitir uma administradora, “sem tempo” para consultar as Finanças e obtendo a concordância do ministro responsável por WhatsApp e de tal forma displicentemente que só passados dois meses e “puxando atrás a fita do tempo” é que se lembrou que concordara em pagar-lhe uns banais 500 mil euros, diz tudo sobre a seriedade com que governavam o nosso dinheiro. Nenhuma empresa privada quereria gente desta à sua frente, e eu só me espanta que haja ainda quem, entre os delirantes jovens socialistas, possa imaginar um futuro político ao mais alto nível para Pedro Nuno Santos — um génio a ameaçar credores e a esbanjar o dinheiro alheio. Cá fora, onde se vive com o dinheiro que temos e não com o que pedimos emprestado, as regras são outras e por elas se morre ou se vive. Por isso é que, em 2008, quem foi à falência foi o Estado e quem vai voltar a ir vai ser outra vez o Estado.

2 Quem também não aprendeu a lição foi a hierarquia da Igreja Católica portuguesa. Foram dadas aos bispos uma, duas, três oportunidades para perceberem bem o que estava em causa, mas eles não perceberam — ou, melhor, não quiseram perceber. Uma minoria teve a sensibilidade, se não para se indignar com o relatório dos abusos na Igreja, pelo menos para entender a indignação que ele causou na sociedade.

Mas outros, como os bispos do Porto ou de Beja, continuam a não querer ver os danos irreparáveis causados às vítimas, aos seus familiares e à própria Igreja por décadas da mais infame e abjecta actividade depravada de membros da sua estrutura, sempre cobertos pelo segredo e conivência da hierarquia. Aqui chegados, não é mais possível confiar na Igreja para pôr fim à impunidade e assegurar que o crime não continue no segredo dos confessionários e dos bispados.

Não temos de esperar pelas orientações da Santa Sé nem pelas regras da Concordata ou pela iniciativa dos bispos. É hora de o Estado intervir e cumprir o seu papel em defesa dos mais indefesos dos seus cidadãos contra a inércia voluntária dos bispos. As Comissões de Protecção de Menores e de Apoio às Vítimas devem ser dotadas de poderes legais de fiscalização efectiva e regular dos seminários e colégios dirigidos pela Igreja, das colónias de fé­rias e locais de retiros espirituais e, se calhar, das próprias paróquias. Eu sei que os políticos vão fugir disto como o diabo da cruz, mas, infelizmente, o diabo está do lado da cruz e a cruz não o quer exorcizar por si mesma. Vão chover as inevitáveis acusações de jacobinismo e anticlericalismo e outras que mais. Mas aqui chegados, e face à posição suficientemente reflectida dos bispos, é preciso perder o medo à Igreja Católica. Entre os seus inúmeros privilégios não deve estar o de acolher e proteger da Justiça criminosos só porque lhe pertencem — o que é uma agravante e não uma atenuante. Disse o bispo de Beja, para justificar a impunidade dos criminosos, remetendo a solução para o confessionário e o perdão, que “todos somos pecadores”. Sem dúvida que sim, mas com a diferença de que nós, ao contrário dos sacerdotes, não andamos a pregar aos outros a virtude contra o pecado. E com outra diferença, bem maior: uma coisa é ser pecador, outra é ser abusador sexual de crianças ou encobridor dos abusadores. Está escrito algures que negar a verdade conhecida como tal é um pecado que brada aos céus.

Em Agosto vamos receber o Papa Francisco, que os portugueses admiram, mas os nossos bispos não tanto. Todavia, impuseram-nos uma festa de arromba, que vai paralisar a capital e custar aos contribuintes de um país semifalido uns inexplicáveis 100 milhões. Para que os bispos festejem com a juventude. Mas festejem o quê?

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3 Durante anos a fio, a Ordem dos Médicos atribuiu-se o direito de estabelecer o número de médicos que o país deveria ter — necessariamente aquém das necessidades mas adequado a proteger os interesses dos já em exercício. Os estivadores, por exemplo, também funcionam assim, segundo este princípio corporativista de auto-regulação do mercado de trabalho. Para entrar nas Faculdades de Medicina, elas próprias limitadas, foram estabelecidas mé­dias tão disparatadamente altas que miúdos com médias de 18 e 19 tiveram de renunciar à sua vocação ou de se ir formar no estrangeiro, ficando depois por lá, em muitos casos. Agora, um médico e ex-ministro da Saúde, Correia de Campos, penitenciando-se também a ele próprio, veio afirmar que a Ordem dos Médicos passou anos a enganar os governos dizendo que havia médicos suficientes no país. Mas, segundo ele, pela frente vamos ter cinco anos terríveis de falta de médicos, entre os que se vão reformar e o tempo que vai ser preciso até que novos cheguem ao serviço. Quem responde por isto?

Também um estudo de Pedro Pita Barros e Eduardo Costa, agora divulgado, concluiu que todos os novos profissionais que António Costa se gaba de ter contratado para o SNS entre 2015 e 2018, bem como o milhão de horas extraordinárias pagas aos médicos nos hospitais públicos, serviram apenas para compensar o défice causado pela passagem do horário de trabalho na Função Pública de 40 para 35 horas semanais (e de que nem todos os médicos beneficiam). Não há milagres. A demagogia tem sempre um preço, e os Estados não colapsam por fatalidade.

4 Se bem percebi a sua estratégia de defesa, Manuel Pinho assume o menos para ver se se livra do mais. Mas o “menos” que assume é uma enormidade em termos éticos e de carácter. Confessar que andou anos a receber por fora um “complemento de ordenado” pago no estrangeiro e sem o declarar fiscalmente já é suficientemente grave para uma pessoa normal andar de espinha direita na rua. Ser milio­nário fugindo ao Fisco e aceitar ser ministro da Economia com esse cadastro pendente, e ainda vender a nossa economia lá fora como um oásis de baixos salários, é de uma falta de vergonha total. E pretender suavizar o cadastro delatando os colegas ao dizer que esse era o esquema habitual no BES, do qual beneficiaram centenas de outros colaboradores, é de quem desconhece o significado da palavra “carácter”. Venha ele a ser condenado pela Justiça a pena de prisão efectiva, será que lhe restarão amigos para lhe levar umas laranjas à cadeia?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Um ano de estupidez humana

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/02/2023)

Miguel Sousa Tavares

Um ano depois, a Ucrânia, sobretudo as suas pequenas cidades e aldeias do interior, continua a ser paulatinamente devastada e nem Putin conseguiu a rápida vitória que teria previsto nem a NATO conseguiu, por interposto Zelensky, correr com os russos da Ucrânia. No terreno, a guerra de artilharia levada a cabo incansavelmente por ambos os lados, e sem saída militar à vista, é mantida, do lado russo, pelo envio constante de cada vez mais soldados para a morte e, do lado ucraniano, por uma tão persistente exigência de mais armas ao Ocidente que se atingiu a situação jamais vista de exaustão de munições nos arsenais da NATO. Entretanto, a continuação da guerra devora economicamente a Europa e num só dia gasta-se 10 vezes mais em armas na Ucrânia do que aquilo que seria necessário para acorrer a oito milhões de sírios que dormem ao relento e morrem de fome e frio, sem auxílios internacionais, depois do terramoto de há três semanas. Mas, sintetizando aquilo que é a voz comum de uma Europa “unida como nunca”, decretou há dias o nosso António Costa que “a paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia”. Mas o que será essa esperada derrota da Rússia? A retirada de todos os territórios conquistados nesta invasão — seguramente que sim, que é exigível; a participação na reconstrução da Ucrânia, sim; a entrega à justiça dos responsáveis por crimes de guerra, como os de Bucha, sim. Mas também a renúncia aos Acordos Minsk II assinados pela Ucrânia? A devolução da Crimeia, que por breves 23 anos numa história secular e por descuido de um irresponsável chamado Ieltsin, pertenceu à Ucrânia independente? A aceitação da Ucrânia como membro de pleno direito da NATO e também da Geórgia e uma base americana em Odessa? Ou a derrota militar total no terreno dos exércitos russos, custe isso o que custar aos ucranianos e sejam quais forem os riscos de escalada envolvidos? António Costa e os seus iluminados pares acreditam mesmo que a “solução pacífica” estará em conseguir fazer sair a Rússia, esmagada e humilhada, da Ucrânia?

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

E, se bem que seja este o único horizonte de esperança que estes líderes europeus têm para nos oferecer para o próximo ano, há coisas curiosas e contraditórias nesta guerra, onde alguns espíritos, outrora mais lúcidos, comparam a invasão russa à “barbárie nazi” e insistem que não há outra solução para a paz que não a guerra. Ora, reparem: esta é uma guerra onde, a todo o tempo, os dois lados trocam entre si prisioneiros de guerra; onde um dos lados, a Rússia, permite ao outro que continue a escoar o grosso das suas exportações — os cereais — através de portos no mar Negro, que lhe seria fácil bloquear, ao mesmo tempo que viu as suas exportações de gás para a Europa serem definitivamente encerradas através da sabotagem dos gasodutos civis Nord Stream I e II, numa operação que, sendo “nossa” e não “deles”, não pode, obviamente, ser classificada como terrorismo; onde, apesar da destruição causada pelos invasores, as principais cidades da Ucrânia e, sobretudo, as cidades cuja história está intimamente ligada à da Rússia, Kiev e Odessa, permanecem fundamentalmente intactas e com uma vida tão normal quanto possível em tempo de guerra: a “barbárie nazi” não tocou em Odessa, onde 60 mil soldados russos morreram na II Grande Guerra para a resgatar dos nazis, nem em Kiev, onde todos os líderes europeus se passeiam livremente e Joe Biden foi reafirmar ao “assassino” Putin que não tem nada a negociar com ele, depois de o ter cautelarmente avisado de que iria ali fazer uma corajosa “visita-surpresa”.

Dez pacotes de sanções à Rússia puseram de joelhos a Europa, mas não a Rússia e, menos ainda, os Estados Unidos, e deixaram de fora os preciosos diamantes da praça de Antuérpia, e Boris Johnson, o grande campeão da solidariedade ocidental para com a Ucrânia, exibe-se pelo “mundo livre” a expor as virtudes da continuação da guerra sem fim ao preço de 200 mil euros por conferência. Mas se mesmo em plena guerra, e apesar dela, é possível estabelecer acordos destes, não seria possível, havendo um mínimo de vontade séria, de lançar bases exploratórias de uma negociação de paz?

Sim, não tenho dúvidas, Vladimir Putin toma-se por um novo czar. Eu, se fosse russo e habitasse no Palácio de Inverno de S. Petersburgo ou no de Tsarskoye Selo e se conhecesse a história da Rússia imperial, também era capaz de sofrer da mesma patologia. Mas tão culpado é o doente como os que se aproveitam da sua demência. Só passou um ano e ainda é cedo; por ora, conhecemos apenas os inacreditáveis erros de avaliação e estratégia de Vladimir Putin; um dia conheceremos toda a história por detrás deles. Oxalá ainda valha a pena.

2 Depois de confiscarem a terra aos proprietários — o que bem se justificava —, os revolucionários russos de 1917 trataram também de confiscar os cereais aos pequenos produtores e camponeses face à escassez de oferta no mercado. Revoltados, os mujiques reduziram a produção e esconderam o pouco que produziam para consumo próprio. Apesar dos fuzilamentos em massa, seguiram-se anos de fome que mataram milhões de pessoas na Rússia e na Ucrânia. Quando a oferta escasseia, a tentativa do Estado de se sobrepor à força às leis do mercado raramente melhora a economia e dificilmente não perturba a liberdade. Mas não foi por súbito assomo de ideologia “comunista” que o Governo resolveu lançar mão dos arrendamentos compulsivos das “casas devolutas”, intervir administrativamente no preço dos alugueres ou atacar os AL: foi por desespero. Esse desespero é compreensível e a tentativa de finalmente fazer alguma coisa é louvável. Até porque, ao contrário da indignação hormonal da direita, eu não acho que exista um direito à propriedade ao abandono. Simplesmente este não é o caminho, e bastaria ter visto a ministra da Habitação completamente à toa na SIC para o perceber: não só essa solução lançaria o país numa guerra política e de litigância sem fim à vista, como jamais o Estado teria a capacidade de pôr em execução uma medida abrangendo as 730 mil casas devolutas do país com um mínimo de eficiência e justiça.

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Porém, o pacote Mais Habitação tem coisas boas, como o fim dessa mistificação que são os vistos gold ou a simplificação dos processos de licenciamento de construção. Omite coisas em falta de há muito, como a municipalização de solos urbanos públicos e a sua entrega a sociedades mistas de construtores e cooperativas de habitação ou compradores para habitação própria a preços controlados. Mas erra por completo o tiro ao alvo principal, que é a inexistência desde há décadas de um mercado de arrendamento funcional. Por isso é que somos o país europeu onde mais gente é proprietária de casa própria ou, melhor dito, devedor ao banco de um empréstimo para compra de casa própria (o que, por sua vez, demonstra até que ponto é uma vergonha que, com este maná nas mãos, a banca tenha tido de ser tantas vezes socorrida pelos contribuintes). Perceber por que razão tão poucos investidores estão interessados em comprar casas para as arrendar deveria, pois, ser o primeiro passo para atacar o problema a prazo. Mas como a situação é de emergência, não há outro caminho a curto prazo que não o do alívio fiscal sobre os rendimentos dos senhorios. Isso deixará a extrema-esquerda aos berros e obrigará a fazer poupanças na despesa com a clientela fixa do Estado. Mas a alternativa é deixar tudo na mesma, uma geração inteira sem direito a uma casa.

3 Tão certo como a seguir ao Outono vir o Inverno, era de esperar que depois da divulgação do relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais sobre menores na Igreja Católica Portuguesa surgisse o contra-ataque da parte desses católicos ajoelhados perante a sua hierarquia, beatos, confessionais, em tudo dispostos a desvalorizar, justificar, ocultar, contrapor: os sobreviventes da Igreja do nojento padre Frederico e do sinistro bispo do Funchal, que o cobriu e o comparou a Cristo. Os argumentos do contra-ataque foram os mesmos de sempre: anticlericalismo, ódio à Igreja, ateísmo militante e mais umas banalidades de ocasião. Mas também houve excepções, entre as quais o provincial dos Jesuítas, que não hesitou em ir ao fundo das questões, de forma desassombrada e corajosa. E agora, que a Igreja está debaixo de fogo, eu, que andei oito anos nos Jesuítas, de onde saí com uma amarga experiência pedagógica e ética, sinto-me, porém, obrigado a dizer, por dever de consciência, que, no que toca àquilo de que hoje se fala, jamais vivi de perto ou testemunhei qualquer coisa que pudesse ir parar ao relatório da Comissão. Da mesma forma que, na minha vida profissional errante, vi — em África, na Índia ou no Brasil, e em Portugal também — lugares e situações onde os sacerdotes católicos eram as únicas ou as mais evidentes presenças de humanismo e da palavra do Evangelho, e, para além disso, gente que eu gostaria de ter em minha casa, para os ouvir, para partilhar um vinho, para ficarmos amigos. Mas também conheci ou vi os outros, os padres betinhos, os deslumbrados, os da subterrânea Opus Dei. Um destes é o padre Gonçalo Portocarrero, de Almada, colunista do “Observador”. O que ele escreveu esta semana no jornal a tentar minimizar os abusos de décadas da Igreja é uma peça absolutamente abjecta e que merece ser publicamente denunciada. No seu texto, ele começa por tentar desvalorizar e ridicularizar o número de casos ocorridos através de uma aritmética da ocultação. A seguir, defende que o relatório não deveria ser público, mas apenas entregue à Comissão Episcopal (que adequado!), e que os relatos dos abusos foram uma violação da privação das vítimas e deveriam ter sido omitidos (que conveniente!), para concluir que, em tudo isto, a “Igreja portuguesa não foi cúmplice, mas sim vítima”. E, no fim, remete a coragem das denúncias para a Igreja e as culpas dos abusos para as “famílias”, que a Igreja doutrina: “É de esperar que a sociedade civil reconheça a nobreza deste gesto (da Igreja) e o saiba imitar.” À Igreja Católica, a que eu não pertenço, mas a que pertencem tantas pessoas que eu admiro e que nela acreditam, este padre Portocarrero, de Almada e da Opus Dei, não devia poder pertencer, pois que só lhe causa danos.

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A absoluta infâmia

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/02/2023)

Miguel Sousa Tavares

Ele, D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, lê um texto aparentemente já escrito antes de ouvir as conclusões da Comissão Independente sobre a pedofilia na Igreja Católica portuguesa. O detalhe é revelador: quaisquer que fossem as conclusões, a Igreja já tinha a resposta preparada, fossem 512 os casos documentados, cinco mil os denunciados (“uma ínfima parte”) ou 25 os ainda não prescritos, ou fossem 10 vezes mais, como devem ter sido ao longo dos anos. E a resposta da Igreja era banal e burocrática: sim, pediam “perdão a todas as vítimas” e não há “lugar na Igreja para os abusadores”. Mas sobre indemnizações às vítimas, nada; sobre as responsabilidades dos bispos encobridores, nada; sobre a entrega à justiça ou, ao menos, o afastamento dos suspeitos ainda no activo, logo se irá ver, há procedimentos próprios da cúria a respeitar. Ou seja, e tudo posto a nu, a hierarquia da nossa Igreja Católica confia em que, assente a poeira mediática e prescritos quase todos os crimes, tudo se resolverá com o esquecimento, uns pais-nossos e umas ave-marias e, ironia das coisas, um gigantesco espaço de confissões na próxima Jornada Mundial da Juventude, em que os pecadores serão os jovens e o perdão será concedido pelos padres. Um festival em que as vítimas prestarão vassalagem aos abusadores, representados por algumas centenas de bispos, alguns dos quais, quem sabe, durante décadas participaram na orgia pedófila ou se dedicaram a encobri-la, “fazendo o que era costume” — ou seja, e segundo o relatório da Comissão, registando as queixas recebidas apenas oralmente, de modo a não deixar rastos.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

A Igreja, no seu livre-arbítrio, decidiu que o sacerdócio é exclusivo de homens e que estes devem viver em celibato — o que é um contrato contrário à natureza humana. Mas, se decidiu assim, o preço a pagar por essa decisão não pode recair nos filhos dos outros.

“Deixai vir a mim as criancinhas”, a frase de Cristo, não significa dispor dos filhos dos outros para satisfação das frustrações sexuais de homens castrados da sua natureza por imposição de fé. Os padres nunca tiveram filhos, nunca os viram crescer no útero de uma mãe, nunca os viram nascer, nunca os vigiaram nas doenças, nunca os levaram à escola, nunca brincaram com eles, nunca sofreram por eles, nunca sentiram que dariam a vida por eles, nunca perceberam que pode­riam matar por eles.

O que esses predadores de Cristo andaram a fazer aos filhos de outras mulheres e homens ao longo de décadas e séculos, nos seminários, colégios, retiros e paróquias, está muito para além da capacidade de perdão. Eu olho para a cara de muitos destes bispos e percebo que eles não entendem ou não querem entender, apenas querem apagar a memória da ignomínia — o que é diferente de exterminar a raiz do mal. E é por isso que tantos não aceitam e não cumprem as directrizes do Papa Francisco. Preocupa-os mais a dignidade do altar onde ficarão ao lado do Papa, mesmo que custe milhões, do que o remorso dos crimes cometidos contra milhares de crianças confiadas à sua guarda, a quem despojaram cobardemente de toda a dignidade e inocência. Resta-nos um consolo no meio de tanta podridão, tanta infâmia: por uma vez, uma comissão fez o seu trabalho até ao fim, com persistência e coragem, contra o silêncio e a ocultação. O país deve-lhe isso.

2 Num distante 4 de Agosto de 2014, estávamos muitos de nós de férias, um confiante Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, veio anunciar-nos que tinha decidido ser o primeiro entre pares a lançar mão do mecanismo de resolução de um banco privado: o BES. Fazia-o com a bênção do Governo de então, de Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Sobre a nebulosa de um banco na iminência de falência, ele, garantiu-nos, iria erguer um banco novo e com todas as condições para triunfar no mercado. Para tal iria injectar nele — provisoria­mente, é claro — €4,9 mil milhões de dinheiros públicos, mas apenas para o lançar na praça. Mas, ficássemos nós descansados, tudo isso o Estado recuperaria até ao último tostão. Uns anos e várias asneiras depois, o Novo Banco foi vendido a uns gordos do Texas com má fama por um preço de aflitos e com o Estado, através do Fundo de Resolução, a ficar responsável por aquilo a que chamaram o “capital contingente”: traduzido por miúdos, os créditos duvidosos. E durante vários anos os créditos de cobrança duvidosa ou de valor garantido — palacetes no Estoril, herdades no Alentejo, seguradoras, Comportas, aventuras do presidente do Benfica — foram vendidos ao desbarato, sendo o saldo, necessariamente passivo, cobrado no final de cada ano ao Fundo de Resolução. Uns exercícios passados e sem conseguir, mesmo assim, disfarçar mais os proveitos do negócio, o Novo Banco começou, enfim, a registar lucros e o processo de resolução foi declarado oficialmente extinto, com o saldo final de €3,4 mil milhões de prejuízo para o Estado. Se a isso somarmos os €4,9 mil milhões da injecção inicial, temos que a aventura da resolução custou aos contribuintes um total de €7,3 mil milhões, abatendo os mil milhões que a Lone Star pagou pelo banco — sem contar com os €4 mil milhões deitados a perder no BESA, quando a “garantia irrevogável” de Angola foi rasgada pela imbecilidade da gestão pública do Novo Banco. Nada mau para o tal banco novo que não nos iria custar um tostão! Carlos Costa goza agora uma reforma dourada e dita livros de memórias sobre intrigas palacianas em que ele foi herói e todos os outros foram vilões; Maria Luís Albuquerque trabalha como consultora para um dos antigos credores da troika que é suposto ter enfrentado como ministra das Finanças, e Pedro Passos Coelho consta que é um desejado D. Sebas­tião para reensinar o país a sair da sua zona de conforto, como ele disse então. E se escrevo isto é apenas porque é preciso dizer que nem toda a gente perdeu a memória. Segue-se a TAP.

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3 Por mais que eu leia e por mais que me esforce para entender de economia — e acreditem que me esforço ainda —, a economia permanece para mim um mistério indecifrável. Com a guerra da Ucrânia, os combustíveis fósseis escalaram todos de preço e nós, consumidores, passámos a pagar preços absurdos, que determinaram uma subida em cadeia da inflação. Os Governos intervieram para mitigar o efeito do preço dos combustíveis nos consumidores e o BCE interveio para conter a inflação, subindo as taxas de juro, mesmo correndo o risco de mergulhar a Europa numa recessão. Tudo isto faz sentido para os economistas, o que não faz sentido para os consumidores são os lucros exorbitantes das petrolíferas neste cenário e, mais ainda, a contestação ao imposto sobre “os lucros caídos do céu”. Entre nós, a Galp acaba de anunciar lucros recorde de €841 milhões e todos os bancos também foram atrás. Mas, contestando o imposto sobre os lucros excessivos dos bancos, o professor de Economia João Duque explicava aqui, no último Expresso, que, ao não pagarem nada sobre os depósitos — uma das fontes de lucro, face aos 4% cobrados nos empréstimos —, os bancos estavam a fomentar o consumo, fonte do nosso crescimento económico. Ou seja, desincentivando a poupança e incentivando assim o consumo, os bancos eram, afinal, os grandes beneméritos da nossa economia — pelo que não havia razão para os taxar por lucros extraordinários, antes para os aplaudir. E eu, que aprendi na faculdade, de outros professores de Economia, que a saúde dos paí­ses estava na capacidade de poupança, com a qual os bancos financiavam os investimentos, que faziam a economia crescer! Estamos sempre a aprender!

4 Perante um desvanecido Parlamento Europeu, Zelensky apelou à urgente entrada da Ucrânia na União Europeia com um argumento que, em boa verdade, lhe foi fornecido pelos próprios europeus: que na guerra contra os invasores russos ele está a defender os valores europeus. Mas não é verdade, assim como não é verdade que, como reza a propaganda ocidental, Putin se tenha oposto à adesão da Ucrânia à UE. Putin opôs-se e opõe-se, sim, à adesão da Ucrânia à NATO, pela razão elementar de não gostar de ver mísseis nucleares do inimigo estacionados no seu quintal das traseiras, tal como Kennedy não os quis ver em Cuba, em 62: tão simples quanto isto. Agora, se, como também reza a propaganda ocidental (e aí eu concordo), é do interesse de Putin ver a UE desmembrada por dentro e reduzida à ineficácia, a entrada da Ucrânia servirá às mil maravilhas os seus interesses. Não se trata apenas da questão de a Ucrânia ultrapassar na adesão países que há mais tempo estão em lista de espera — com o caso extremo da Turquia a embaraçar tudo e todos — ou dos custos astronómicos da sua adesão para o orçamento comunitário, ou da revolução que exigiria na PAC. Esses problemas, que já seriam capazes, por si, de paralisar a UE durante anos, deixariam de fora, porém, o principal deles, a médio e longo prazo: é que, ao contrário do que jura Zelensky, os valores da Europa não são os valores da Ucrânia. Na sua matriz, a UE — e a sua antecessora, a CEE — colheu a inspiração política nos valores da democracia ateniense, depois solidificados por décadas de democracias liberais na Europa Ocidental, embora com excepções (Portugal e Espanha). Mas a Ucrânia, como a Rússia, pertence a outra história, outra civilização e outra Europa: a Europa eslava e autocrática. Não é por acaso que os valores tradicionais liberais da UE esbarraram, após o alargamento a leste, com a resistência autocrática de países como a Chéquia, a Polónia ou a Hungria. Assim como não é por acaso que os dossiês mais complicados que estão a ser negociados entre a Ucrânia e a UE, nesta fase de pré-adesão, sejam assuntos que nem sequer estiveram em cima da mesa quando, por exemplo, Portugal e Espanha negociaram: corrupção endémica das instituições do Estado, falta de independência dos tribunais, insuficiente liberdade de imprensa. Em Bruxelas, a Ucrânia é um elefante no meio da sala. Os democratas europeus sabem-no e Putin também. Um pouco mais de conhecimento da História e de percepção geopolítica e um pouco menos de entusiasmos infantis chegariam para o entender.

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