(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 10/03/2023)

Há algumas lições fundamentais a reter do relatório da Inspecção-Geral de Finanças sobre a TAP. A primeira delas é que, pela natureza das coisas e pela experiência que delas temos, a história não acaba aqui: se hoje a empresa será eventualmente ressarcida dos 500 mil euros que indevidamente pagou à sua ex-administradora Alexandra Reis, dentro de anos, em tribunal, será condenada a pagar 5 milhões ou mais à sua CEO agora despedida.
Em matéria de contencioso jurídico — e esta é a segunda lição —, o Estado português, por mais que recorra aos mais caros e supostamente melhores escritórios privados de advocacia, desprezando os seus próprios serviços jurídicos, como fez a TAP, acaba sempre, na hora do ajuste de contas, por perceber que foi mal assessorado nos contratos, nas decisões, nas privatizações e em tudo o resto — e, sobre isso, a TAP é um catálogo sem fim.

A terceira lição é eloquente sob a forma leviana e irresponsável como se gerem as empresas públicas entre nós — mesmo uma onde os contribuintes tinham acabado de investir à força 3,2 mil milhões, naquilo que nos foi vendido como a última e única hipótese de salvação de uma empresa essencial para o país. Que a tutela gerisse isto sem cuidar de saber os trâmites legais para demitir uma administradora, “sem tempo” para consultar as Finanças e obtendo a concordância do ministro responsável por WhatsApp e de tal forma displicentemente que só passados dois meses e “puxando atrás a fita do tempo” é que se lembrou que concordara em pagar-lhe uns banais 500 mil euros, diz tudo sobre a seriedade com que governavam o nosso dinheiro. Nenhuma empresa privada quereria gente desta à sua frente, e eu só me espanta que haja ainda quem, entre os delirantes jovens socialistas, possa imaginar um futuro político ao mais alto nível para Pedro Nuno Santos — um génio a ameaçar credores e a esbanjar o dinheiro alheio. Cá fora, onde se vive com o dinheiro que temos e não com o que pedimos emprestado, as regras são outras e por elas se morre ou se vive. Por isso é que, em 2008, quem foi à falência foi o Estado e quem vai voltar a ir vai ser outra vez o Estado.
2 Quem também não aprendeu a lição foi a hierarquia da Igreja Católica portuguesa. Foram dadas aos bispos uma, duas, três oportunidades para perceberem bem o que estava em causa, mas eles não perceberam — ou, melhor, não quiseram perceber. Uma minoria teve a sensibilidade, se não para se indignar com o relatório dos abusos na Igreja, pelo menos para entender a indignação que ele causou na sociedade.
Mas outros, como os bispos do Porto ou de Beja, continuam a não querer ver os danos irreparáveis causados às vítimas, aos seus familiares e à própria Igreja por décadas da mais infame e abjecta actividade depravada de membros da sua estrutura, sempre cobertos pelo segredo e conivência da hierarquia. Aqui chegados, não é mais possível confiar na Igreja para pôr fim à impunidade e assegurar que o crime não continue no segredo dos confessionários e dos bispados.
Não temos de esperar pelas orientações da Santa Sé nem pelas regras da Concordata ou pela iniciativa dos bispos. É hora de o Estado intervir e cumprir o seu papel em defesa dos mais indefesos dos seus cidadãos contra a inércia voluntária dos bispos. As Comissões de Protecção de Menores e de Apoio às Vítimas devem ser dotadas de poderes legais de fiscalização efectiva e regular dos seminários e colégios dirigidos pela Igreja, das colónias de férias e locais de retiros espirituais e, se calhar, das próprias paróquias. Eu sei que os políticos vão fugir disto como o diabo da cruz, mas, infelizmente, o diabo está do lado da cruz e a cruz não o quer exorcizar por si mesma. Vão chover as inevitáveis acusações de jacobinismo e anticlericalismo e outras que mais. Mas aqui chegados, e face à posição suficientemente reflectida dos bispos, é preciso perder o medo à Igreja Católica. Entre os seus inúmeros privilégios não deve estar o de acolher e proteger da Justiça criminosos só porque lhe pertencem — o que é uma agravante e não uma atenuante. Disse o bispo de Beja, para justificar a impunidade dos criminosos, remetendo a solução para o confessionário e o perdão, que “todos somos pecadores”. Sem dúvida que sim, mas com a diferença de que nós, ao contrário dos sacerdotes, não andamos a pregar aos outros a virtude contra o pecado. E com outra diferença, bem maior: uma coisa é ser pecador, outra é ser abusador sexual de crianças ou encobridor dos abusadores. Está escrito algures que negar a verdade conhecida como tal é um pecado que brada aos céus.
Em Agosto vamos receber o Papa Francisco, que os portugueses admiram, mas os nossos bispos não tanto. Todavia, impuseram-nos uma festa de arromba, que vai paralisar a capital e custar aos contribuintes de um país semifalido uns inexplicáveis 100 milhões. Para que os bispos festejem com a juventude. Mas festejem o quê?

3 Durante anos a fio, a Ordem dos Médicos atribuiu-se o direito de estabelecer o número de médicos que o país deveria ter — necessariamente aquém das necessidades mas adequado a proteger os interesses dos já em exercício. Os estivadores, por exemplo, também funcionam assim, segundo este princípio corporativista de auto-regulação do mercado de trabalho. Para entrar nas Faculdades de Medicina, elas próprias limitadas, foram estabelecidas médias tão disparatadamente altas que miúdos com médias de 18 e 19 tiveram de renunciar à sua vocação ou de se ir formar no estrangeiro, ficando depois por lá, em muitos casos. Agora, um médico e ex-ministro da Saúde, Correia de Campos, penitenciando-se também a ele próprio, veio afirmar que a Ordem dos Médicos passou anos a enganar os governos dizendo que havia médicos suficientes no país. Mas, segundo ele, pela frente vamos ter cinco anos terríveis de falta de médicos, entre os que se vão reformar e o tempo que vai ser preciso até que novos cheguem ao serviço. Quem responde por isto?
Também um estudo de Pedro Pita Barros e Eduardo Costa, agora divulgado, concluiu que todos os novos profissionais que António Costa se gaba de ter contratado para o SNS entre 2015 e 2018, bem como o milhão de horas extraordinárias pagas aos médicos nos hospitais públicos, serviram apenas para compensar o défice causado pela passagem do horário de trabalho na Função Pública de 40 para 35 horas semanais (e de que nem todos os médicos beneficiam). Não há milagres. A demagogia tem sempre um preço, e os Estados não colapsam por fatalidade.
4 Se bem percebi a sua estratégia de defesa, Manuel Pinho assume o menos para ver se se livra do mais. Mas o “menos” que assume é uma enormidade em termos éticos e de carácter. Confessar que andou anos a receber por fora um “complemento de ordenado” pago no estrangeiro e sem o declarar fiscalmente já é suficientemente grave para uma pessoa normal andar de espinha direita na rua. Ser milionário fugindo ao Fisco e aceitar ser ministro da Economia com esse cadastro pendente, e ainda vender a nossa economia lá fora como um oásis de baixos salários, é de uma falta de vergonha total. E pretender suavizar o cadastro delatando os colegas ao dizer que esse era o esquema habitual no BES, do qual beneficiaram centenas de outros colaboradores, é de quem desconhece o significado da palavra “carácter”. Venha ele a ser condenado pela Justiça a pena de prisão efectiva, será que lhe restarão amigos para lhe levar umas laranjas à cadeia?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia