(David Dinis, in Expresso Diário, 09/10/2019)
1.Há 10 anos, um José Sócrates acabado de perder a maioria absoluta chamou todos os partidos à residência oficial em São Bento para lhes perguntar, um a um, quem queria fazer uma coligação com o PS. Era, claro está, uma encenação.
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Há quatro anos, António Costa dirigiu-se à sede do PCP e do Bloco de Esquerda para lhes perguntar se fariam consigo um acordo. Mas aí precisava deles para chegar ao lugar: era um obrigação.
Esta quarta-feira, o mesmo António Costa fará uma visita a todas as sedes partidárias da esquerda para lhes perguntar a mesma coisa. O que não sabemos é se, desta vez, é encenação, obrigação ou uma genuína vontade.
O que sabemos, para já, é uma mera formalidade. Depois de ter governado com a ajuda do Bloco e do PCP nos últimos quatro anos, depois de os portugueses terem dado um aval nas urnas à solução política que encontrou, Costa falhar este gesto era admitir que a geringonça não tinha sido um ato de convicção.
Agora, é inescapável: chegou o teste à vontade da esquerda.
2.Há precisamente quatro anos, a 9 de outubro de 2015, poucos dias depois das legislativas de 2015, a notícia do dia era a reunião de António Costa com Passos Coelho e Paulo Portas. Isso mesmo: depois da surpreendente vitória da PàF, Costa ia à sede do PSD para discutir a possibilidade de uma grande coligação.
Não havia na nossa História um exemplo de um partido vencedor que não tivesse formado Governo, pelo que na altura todos levámos a sério aquele encontro. Só que, dois dias antes, face ao tabu de Costa sobre a possibilidade de um entendimento à esquerda, recebi um telefonema que me deixou em alerta – e acabou por passar a texto. O título era este: “E se Costa não estiver a fazer bluff quando fala de governo à esquerda?”
Hoje a resposta parece evidente, mas à época ninguém acreditava. Pelo que durante duas semanas o país discutiu a proposta de Passos de fazer Costa seu vice-primeiro-ministro, discutiu se o fim dos cortes da troika se faria mais acelerado (como propunha Costa) ou menos (como dizia Passos).
Mas as negociações de Costa eram uma só uma encenação, à espera que houvesse fumo branco do outro lado. Toda a gente estava a perceber, sem que ninguém o dissesse. Parece que estou a ver Maria José Nogueira Pinto a dizer (noutro palco): “Eu sei que você sabe que eu sei”. Até que, no dia 5 de novembro de 2015, Costa entrou na sede nacional do PCP e todos percebemos que era a sério.
Foi assim que nasceu a geringonça – nos dias em que a RTP2 passava, noite fora, a série televisiva “Borgen”, onde Birgitte Nyborg chegou a primeira-ministra não tendo sido a força política mais votada – mas sendo aquela que conseguia juntar vários partidos que sustentassem o Governo. A ficção dinamarquesa transformou-se na realidade portuguesa.
A novidade? É que “Borgen” à portuguesa acabou no sábado passado.
3.Agora nada é igual. António Costa ganhou as legislativas, já não precisa do Bloco e do PCP para formar Governo, já derrubou o muro que não deixava os dois partidos à esquerda aprovarem orçamentos socialistas, reforçou a sua votação e (bastante) o número de deputados eleitos.
Nas eleições de domingo, Costa não chegou à palavra proibida (maioria), mas ficou razoavelmente perto dela. E com um sem-número de possibilidades parlamentares em aberto para lhe facilitarem a vida.
Contas feitas, é isto. Para aprovar uma lei, ou um orçamento, o PS pode chegar a um acordo com o Bloco, mas também com o PCP (se houver dinheiro nas Finanças e vantagem política das duas partes). Mas Costa também pode contar com o PAN, o Livre e os deputados do PSD/Madeira, que já deixaram as suas eleições para trás e que precisam que Costa lhes dê o que antes lhe negou (o passado mostra como isso é possível).
Mais até: sabendo que tem mais 24 deputados do que a direita, podendo chegar aos 108 deputados, Costa pode só precisar da abstenção de um dos partidos da esquerda para fazer passar o que quiser no Parlamento – nem sequer de votos a favor precisa, na maioria dos diplomas. É esta a força que o PS conseguiu: não tem maioria, mas está perto de ser autossuficiente.
Dir-me-á que, em 1999, Guterres estava só a um deputado da maioria absoluta e que não sobreviveu ao pântano. Eu direi que, neste cenário, Costa pode acreditar que a conjuntura, a fragmentação da composição da Assembleia da República e competição entre os outros partidos o pode ajudar a sobreviver quatro anos.
4.Eis-nos, portanto, chegados à dúvida do início: Costa quer mesmo repetir a geringonça, de papel passado, quase sem precisar dela e sabendo que quem deitar o Governo abaixo pode entregar-lhe a tal maioria?
Na campanha eleitoral, o líder socialista nunca se inibiu de criticar o Bloco e pôs vários dos seus pesos-pesados a dizer o mesmo, ou pior. O PS falou do Bloco como “o Podemos de Portugal”, adjetivou-o como “partido de mass media” e “empecilho”, apontou-o como perigo para a estabilidade e até acenou com uma crise política daqui a dois anos se o PS não fosse reforçado. Na noite eleitoral, quando anunciou que ia fazer convites para uma geringonça alargada, o líder socialista avisou que quem não o aceitasse teria de assumir as suas responsabilidades.
Agora, António Costa prepara-se para levar à sede do Bloco (e do PCP) uma delegação sem Pedro Nuno Santos e – sintomaticamente – com Carlos César na delegação. Sabendo quanto César atacou o Bloco, sabendo como o Bloco o menospreza, sabendo que César já não é líder parlamentar, tão pouco deputado. Se não é um sinal, é uma estranha coincidência.
Sim, a dúvida é se Costa quer mesmo uma geringonça 2, que tipo de exigências programáticas está disposto a encaixar agora, ou como pretende convencer o PCP a reentrar nela depois da maior derrota da sua História.
Mas também há outra dúvida: será que o Bloco ainda a quer? Mesmo sabendo que o PCP a dispensa? Mesmo sabendo que a sua força em 2015 não é a mesma de agora? Ou fixará Catarina Martins condições que sabe serem inegociáveis para os socialistas?
Daqui por dias saberemos responder a esta dúvida: se a esquerda se vai reunir para cumprir uma formalidade (fazendo bluff). Ou se efetivamente a esquerda mudou – e passou a entender-se estruturalmente, para lá do pós-troika, percebendo que é essa a vontade dos seus eleitores.
P.S. No meio de todo este cenário “borgeriano”, convém anotar as últimas estimativas do FMI e pô-las também na equação: a atual vaga de protecionismo pode arrastar a economia mundial para uma crise prolongada. Se o PS e o Bloco estiverem mesmo a negociar um acordo, e se estiverem a fazê-lo com vontade, terão de ter este cenário presente. E sim, também devem escrevê-lo no papel.