(Baptista Bastos, in Correio da Manhã, 20/04/2016)
Baptista Bastos
O deputado Montenegro, ao que parece figura de relevo no PSD, manifestou acentuada apoquentação com o facto de António Costa ter ido à Grécia visitar um campo de refugiados e, de caminho, conversar com Alexis Tsipras. O encontro durou menos de uma hora; tanto bastou para que o desassossegado Montenegro ficasse agitadíssimo de inquietação. Tsipras e Costa sabem que a União está a dissolver-se com a pressão exercida pelo triunvirato (Comissão Europeia, FMI e Banco Central) que domina países, reduz povos à submissão e impõe princípios imperiais às nações.
O mal-estar é generalizado. Os movimentos anti-austeridade multiplicam-se. A tenaz de uma política de “alternância” sem alternativa atingiu um ponto insuportável. O Partido Popular Europeu, onde se alberga toda a Direita, até às franjas do neonazismo, e ao qual pertence, com alvoroços de entusiasmo, o PSD português, actua alimentado pela arrogância de quem não tem de prestar contas a ninguém. Pedro Passos Coelho geriu o nosso país do mesmo modo discricionário. São todos farinha da mesma moagem. Presumo que o deputado Montenegro, ao criticar a curta viagem de António Costa, entendeu parte da questão; uma parte pequena, módica, e não o todo da questão.
O governo português não agrada à direcção desta Europa. As afrontosas declarações de Draghi, quando cá esteve, são significativas. E Costa tem, por igual, o que se chama “má imprensa”, porque esta abandonou o propósito fundamental de informar, esclarecer, para ser o papagaio dos poderes conservadores.
Costa pretende estimular uma contra-corrente que liberte a Europa desta evidente tirania, e recrie os princípios morais e humanos com que foi fundada a União. As coisas parecem melhorar para esta orientação. Em Espanha, em Itália e, até, na França do pobre Hollande, as inquietações populares e políticas não deixam lugar a dúvidas.
A tão discutida crise da social-democracia (SD) – não, não estou a falar da que Passos Coelho redescobriu há dias… – observa-se hoje, a partir de Portugal, com uma experiência de governo tão original quanto a atual, de forma substancialmente diferente da visão desoladora com que ela emerge à escala internacional.
Depois da sua viragem ideológica dos anos 80 no sentido de um social-liberalismo (liberal na economia e nos costumes, social na preservação de políticas de redistribuição desde que não ponham em causa a recomposição do capitalismo internacional em nome da competitividade), a SD perdeu uma grande parte da sua capacidade de representação política, sobretudo entre os que dependem de um salário e os setores sociais que, avessos a mudanças estruturais do capitalismo, não deixam de acreditar na função reguladora das políticas sociais.
Há duas teses sobre a crise da SD. Há os que dizem que ela não fez ainda todo o caminho que deveria fazer para reconhecer que, na era da globalização, não há alternativa às políticas económicas do neoliberalismo – ou seja, que tem de virar ainda mais à direita. E há os que verificam que, optando por políticas económicas que representam os interesses dos mais ricos e a “confiança dos mercados”, a SD aliena o apoio dos grupos sociais que tendiam a confiar nela. No plano político, quando as engenharias eleitorais não conseguem produzir maiorias parlamentares homogéneas, os partidários da primeira tese recomendam às SD que se aliem à direita e evitem a chegada à área do poder dos partidos da esquerda “radical”. Os outros limitam-se a advertir a SD que a sua pasokização é inevitável quanto mais abandonar a representação dos interesses dos setores populares, deixando-os (como acontece na Europa do Sul) para a esquerda a sério, ou, pelo contrário, para a extrema-direita racista.
Esta tensão atravessa o interior da própria SD. Em Portugal, impedido o PS de regressar sozinho ao poder, havia que escolher entre esquerda e direita – e optou pela esquerda. Mas, apesar de Corbyn ou de Bernie Sanders, Costa é uma exceção. Em França, a deriva, verdadeiramente suicida, de Hollande e de Manuel Valls, o Sarkozy de serviço na chefia do Governo, levou já a quatro derrotas eleitorais do PS e a sucessivas rebeliões de dirigentes socialistas contra o governo. A última, há dias, é a dos que, como Martine Aubry, assinaram um manifesto contra as cedências descaradas de Hollande e Valls à agenda da extrema-direita na política sobre os refugiados e numa reforma constitucional que adota uma perspetiva racista sobre a nacionalidade e que reforça os poderes do governo e da polícia no estado de emergência, ou a adoção das reformas laborais pedidas pelo “patronato institucional”. “O que é demais, é demais!” (Sortir de l’impasse, 24.2.2016)
Em Espanha, como cá, a direita perdeu 1/3 dos seus votos e não foi salva pelo aparecimento de um novo partido liberal nacionalista da direita espanhola, os Cidadãos, que, partilhando a política económica do PP, ofereceu uma alternativa (bem financiada por patrocinadores de peso) aos desiludidos da direita gritando contra a independência da Catalunha e contra a corrupção que assola o mesmíssimo PP com quem, contudo, os Cidadãos acham ser imprescindível contar para impedir “a destruição da Espanha”.
O fim da maioria da direita abriu a possibilidade de aplicação do modelo português (PS minoritário que aceita negociar à esquerda alternativa à austeridade), mas as duas diferenças que o caso espanhol apresenta relativamente ao nosso bloquearam esse caminho. Em primeiro lugar, o equilíbrio de forças à esquerda: nas eleições de dezembro, e pela primeira vez desde a Transição pós-franquista, as forças à esquerda do PSOE (25% dos votos, 28,5% se incluirmos catalães, bascos e galegos) ultrapassaram os socialistas (22%). Em Espanha, o Podemos foi muito claro: um acordo com os socialistas implica um governo de coligação. Depois, o problema da inconsistência do Estado espanhol: a convocação de um referendo democrático na Catalunha tornou-se uma exigência que mobiliza a grande maioria dos catalães (incluídos os próprios socialistas) e tem o apoio de, pelo menos, um quarto dos eleitores do resto da Espanha. Se o PSOE quiser governar sem o PP, é com todos estes (e o Podemos em primeiro lugar) que deve procurar uma grande convergência que permita mudar a vida dos espanhóis.
Não vai ser assim. O líder socialista, Pedro Sánchez, ao contrário de António Costa, deixou-se encurralar pela direita do PSOE que o impediu de abrir uma negociação minimamente razoável à sua esquerda. Encarregado de formar governo, o PSOE optou pela encenação: um “acordo de legislatura” com os Cidadãos que, aritmeticamente inútil (compromete apenas 130 dos 350 deputados), não é senão um artifício para fazer recair a culpa do impasse e da inevitabilidade de novas eleições sobre o PP e, sobretudo, sobre a esquerda, onde se acusa os socialistas de trair a vontade de mudança de quem neles votou. Sánchez será, assim, chumbado no Parlamento na próxima quarta-feira. Se o PSOE não voltar atrás e procurar um acordo à esquerda, que soluções lhe restam para evitar novas eleições? Sobra precisamente a estratégia que os seus novos aliados dos Cidadãos sempre propuseram, e que tem o acordo do PP: uma grande coligação a três com o PP para “salvar a unidade nacional” contra aqueles que “querem destruir a Espanha”. Ou seja, um cavaquismo à espanhola a pretexto da questão catalã. Para Bruxelas seria o ideal: manter a austeridade, evitar um novo governo de esquerda no Sul da Europa.
O avanço do neoconservadorismo contaminou há muito as elites políticas e culturais que se descrevem como social-democratas. Nenhum chefe de governo da chamada “esquerda moderada” pôs até agora seriamente em causa as tendências profundas da gestão económica e social da era da globalização: liberdade sem restrições para o capital, mas fronteiras e policialização da vida pública (os estados de emergência à francesa, as leis mordaça à espanhola) e privada dos indivíduos (vigilância generalizada sobre todos os suportes de comunicação eletrónica); aceitação gradual de formas de aprofundamento da liberdade individual dos cidadãos do Ocidente rico (direitos sexuais e reprodutivos, abertura incipiente à discussão do direito a uma morte digna), mas reinstitucionalização da segregação étnica/cultural/social no seu interior (repressão e demonização das minorias, abandono do princípio universal do direito de asilo) e eliminação dos direitos sociais porque incompatíveis com os novos direitos do capital.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. O país conhece um ritmo depressivo quotidiano. De vez em quando, há um crime hediondo. Uma mãe mata as filhas. De vez em quando, é preso alguém importante e respeitável. Um procurador. De vez em quando, há um pequeno sobressalto porque alguém quer pôr árvores a servir de separadores de uma estrada. De vez em quando, há um pequeno sobressalto porque alguém quer deitar abaixo umas árvores. De vez em quando, há uma jovem actriz de telenovelas que tem cancro e, como não sabe viver fora dos holofotes, leva o seu cancro a tudo quanto é capa. As melhoras. De vez em quando, há mais um caso de violência doméstica. De vez em quando, um pescador ou um operário ou um desempregado que arredonda o seu orçamento apanhando bivalves no Tejo morre afogado. De vez em quando.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Quase sempre, a todas as horas, há futebol. Discute-se antes, durante, depois. Os canais noticiosos, que deviam acrescentar-se aos canais desportivos, são tanto ou mais desportivos e cada vez menos noticiosos. Se um começa um painel sobre futebol, nenhum outro se atreve a fazer qualquer outra coisa que não seja outro painel sobre futebol. Nada mobiliza mais os portugueses, em particular como espectadores, telespectadores, ouvintes, conversantes, tertulianos e habitantes de mesas de café, do que a bola.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Na política, o país está num impasse, mas parece que não. Como acontece por toda a Europa, a impotência do poder político democrático face ao poder económico castrou governos eleitos e submeteu-os a entidades obscuras como os “mercados”, onde o grosso do dinheiro que circula não tem pai nem mãe, a não ser numa caixa de correios das ilhas Caimão. O sistema político democrático, a representação partidária tradicional, está numa crise que parece não ter saída. Os partidos do “arco da governação”, ou seja, os que têm o alvará de Bruxelas, do senhor Schauble, da Moody’s e da Fitch, ainda ganham as eleições num ou noutro país, mas ninguém os quer ver a governar outra vez, pelos estragos que fizeram à vida dos homens comuns para salvar a banca, não tendo no fim salvado coisa nenhuma.
Por isso, coligações negativas, com mais ou menos sucesso, surgem em Portugal, na Espanha, na Irlanda, ou fortes partidos radicais, nacionais e populistas, na França, na Grécia, na Polónia, na Hungria. Ou partidos como o Labour reencontram um mundo do “trabalhismo” que se decretara ser arcaico. São tudo partidos muito diferentes, uns à esquerda, outros à direita, mas têm uma coisa em comum: contestam o poder transnacional da União Europeia, e o pensamento único em economia que daí emana por diktat. Uns mais o primeiro, outros mais o segundo. Contestam a promiscuidade que juntou socialistas com partidos do PPE, numa aliança que tornou o “não há alternativa” na ideologia autoritária dos nossos dias.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Temos um Governo único na Europa, sem precedente por cá, sem paralelo por lá. Mas mesmo isso normalizamos, até porque como eles não estão muito entusiasmados com o feito, também não entusiasmam ninguém. O PS, apesar da vaga de insultos, de que se “descaracterizou”, traiu as suas origens, abandonou o papel de resistente ao PREC, “radicalizou-se”, é “terceiro-mundista”, etc., etc., é, imagine-se!, o mesmo de sempre. O BE está demasiado contente consigo próprio para olhar bem para o que se está a passar. Dedica-se todos os dias a uma causa nova, uma nova reivindicação, uma nova reclamação, sem sequer dedicar qualquer esforço a consolidar as que fez. Acha que está num momento alto de “luta” quando a luta, séria, dura, árdua, lhe passa ao lado. O PCP sabe que precisa de mudar, mas não sabe como.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. O PSD referve de raiva, como se vê quando Passos Coelho abre a boca. Tornou-se mais revanchista do que o CDS, e não tem outra estratégia que não seja garantir que haja eleições a curto prazo. Já teve melhores condições para as ganhar, hoje cada dia tem menos. A metamorfose “social-democrata” parece a toda a gente como oportunista, a começar pelos neoliberais que Passos reuniu à sua volta, para quem o PSD é um instrumento de acesso ao poder, mas que gostam mais do CDS.
Pouco a pouco, o ónus dos estragos que fez ao país começa a tornar-se evidente, como se passa com o que acontece no sistema financeiro, com o Banif, e com o BES. Uma mistura de interesses, negligência, incompetência e uma nonchalance ideológica com custos gravíssimos, deixou de herança uma crise de milhares de milhões, que todos sabem de quem foi a responsabilidade. É por isso que Passos fala dizendo enormidades, como as que disse sobre o Banif, o banco que dava lucro e por isso não se tocava, e Maria Luís está lá no fundo da bancada muito silenciosa a ver se ninguém a vê.
O CDS é um partido ancilar do poder, sem o poder fica lá colocado no sítio certo, atrás do BE. Sim, atrás do BE, que tem mais votos e mais deputados. Por isso, foi o “partido da lavoura”, o “partido dos contribuintes”, o “partido dos reformados”, e hoje é o “partido dos automobilistas”. Esperará o que tiver de ser para ver se volta ao Governo.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Como não saímos da cepa torta, habituamo-nos depressa a considerar a cepa torta como a “realidade”. Já não nos governamos, para gáudio de alguns, indiferença de muitos e preocupação de um punhado de lunáticos, que ainda pensam que votam em Portugal, para que governantes portugueses eleitos por esse voto governem Portugal. Ainda são fiéis ao principio da revolução americana de que “no taxation without representation”, e por isso é o Parlamento português que deveria fazer o Orçamento e não uma mistura de governantes estrangeiros acolitados por uma burocracia escolhida pela fidelidade ao cânone alemão.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Por isso, é “normal” o ministro das Finanças de Portugal receber ordens por email de Danièle Nouy, uma alta-funcionária bancária francesa com funções no BCE, mandando entregar o Banif ao Santander:
“A chamada com o Santander correu muito bem e a Comissão Europeia vai aprovar (…), há outras ofertas pelo Banif, que de acordo com a Comissão não respeitam as regras de União Europeia das ajudas de Estado, e que por isso não podem seguir em frente. (….) A Comissão Europeia foi muito clara neste aspecto, por isso, recomendo que nem percam tempo a tentar fazer passar essas propostas. (…) Eles [Comissão Europeia] vão começar a trabalhar directamente com o Santander assim que as autoridades estiverem prontas para começar o processo.”
Reparem: “Nem percam tempo a tentar fazer passar essas propostas”, até porque logo a seguir vem uma convocatória de uma conferência para a hora seguinte, para decidir entregar o Banif ao Santander. Manda quem pode.
Quantos emails destes, quantas notas, cartas, ordens deste género deve ter recebido (ou está a receber) o Governo português por dia? Muitos, certamente. Este soube-se porque foi deliberadamente sujeito a uma “fuga de informação”, mas deve haver muitos mais, da troika em particular, mas não só. O anterior Governo gostava, estava de acordo e anuía porque se via ao mesmo espelho doutrinário. Este ainda não se sabe se gosta, mas duvido que não, a julgar pelo tom de reprimenda com que todos os dias documentos oriundos da Comissão o tratam como “mau aluno”.
Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Num certo sentido, eu percebo por que razão o futebol é tão importante. É como cantar blues, ponderada a diferença de qualidade. Seria melhor arranjar um Django, mas não aparecem a pedido.