O problema da Grécia não é só uma tragédia. É uma mentira.

(John Pilger, in Global Research, Centre for Research on Globalization, 13/07/2015)

pilger

(Nota: Este texto será polémico para muitos que o lerão, mas pode, de alguma forma ajudar a perceber o percurso que o Governo grego tem vindo a seguir, até ao momento, desde que foi eleito, e a elucidar algumas das contradições que tal percurso tem evidenciado. É que pode não ser só a pressão e a chantagem da UE a explicar as contradições. Algumas chaves explicativas são aqui avançadas.  De notar que o texto, não incorpora ainda o último acordo fechado pela Grécia com a UE, mas os termos de tal  acordo só reforçam algumas das ideias apresentadas. Tradução do texto, por  Estátua de Sal).


Uma traição histórica foi consumada na Grécia. Ignorando o mandato do eleitorado grego, o governo do Syriza  ignorou voluntariamente a avalanche do voto no “não” que ocorreu na semana passada,  e secretamente deu o seu aval a uma série de medidas repressivas e empobrecedoras, aceitando um resgate que representa um sinistro controlo estrangeiro e, ao mesmo tempo, um aviso para o mundo.

O Primeiro-ministro, Alexis Tsipras, levou ao parlamento uma proposta  para cortar, pelo menos, 13 mil milhões de euros do erário público – 4 mil milhões de euros a mais que a “austeridade”, rejeitada esmagadoramente pela maioria da população grega no referendo do dia 5 de Julho.

Estes cortes incluem 50 por cento de aumento no custo do sistema de saúde para os pensionistas, cerca de 40 por cento dos quais vivem na pobreza; cortes profundos nos salários do sector público; a privatização total dos serviços públicos, como aeroportos e portos; um aumento no imposto sobre o valor acrescentado para 23 por cento, a ser aplicado também nas ilhas gregas, onde as pessoas lutam para sobreviver. E mais haverá para vir.

“Partido Anti austeridade tem impressionante vitória”, declarou o Guardian na sua manchete do dia 25 de Janeiro . “Esquerdistas radicais”, chamava o jornal a Tsipras e aos seus bem-educados companheiros. Eles usavam camisetas de gola aberta, e o ministro das finanças surgiu de moto e foi descrito como um “rock star da economia”. Era apenas fachada. Eles não eram radicais em sentido algum, ou apenas o eram no cliché com que eram etiquetados, e nem eram “anti austeridade”.

Durante seis meses Tsipras e o recentemente afastado ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, passearam-se entre Atenas e Bruxelas, Berlim e outros centros de dinheiro europeu. Em vez de justiça social para a Grécia, apenas conseguiram obter mais endividamento, ou seja um empobrecimento profundo que simplesmente irá substituir uma podridão sistémica baseada no roubo das receitas fiscais pelos gregos super-ricos  – bem em conformidade com os valores  “neoliberais” -, por empréstimos baratos mas altamente rentáveis para aqueles que exigem o escalpe da Grécia.

A dívida da Grécia, segundo um relatório de auditoria feito pelo Parlamento grego, “é ilegal, ilegítima e odienta”. Contudo, em comparação, é menos do que 30 por cento da dívida da Alemanha, seu principal credor. É menos do que a dívida dos bancos europeus cujo “resgate” em 2007-8 foi altamente controverso e que ficaram impunes.

Para um pequeno país, como a Grécia , o euro é uma moeda colonial: um garrote ao serviço de uma ideologia capitalista, tão extremo e rigoroso, que até o Papa o qualifica como “intolerável” e “o excremento do diabo”. O euro é, para a Grécia, o que o dólar norte-americano é nas terras longínquas do Pacífico , cuja miséria e servilismo é garantida através da sua dependência monetária.

Nas suas visitas ao antro dos poderosos em Bruxelas e Berlim, Tsipras e Varoufakis apresentaram-se não como radicais, nem como “esquerdistas” nem mesmo como honestos sociais-democratas, mas como dois neófitos, suplicantes nas suas fundamentações e exigências. Sem subestimar a hostilidade que enfrentaram, é justo que se diga que não mostraram coragem política. Mais do que uma vez, o povo grego teve conhecimento dos seus ” planos secretos para a austeridade”, através de fugas de informação para os media: como em 30 de Junho na carta publicada no Financial Times, na qual Tsipras prometeu aos chefes da União Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI que iria aceitar as suas básicas mas cruéis exigências  – que como se vê,  já aceitou.

Quando o eleitorado grego votou “não”, em  5º de julho, contra esta espécie de negociação de tipo subterrâneo, Tsipras disse, “Na próxima segunda-feira, após o referendo, o governo grego estará na mesa das negociações com melhores condições para defender o povo grego”. Mas os gregos não tinham votado apenas por “melhores condições”. Eles tinham votado  pela justiça e pela soberania, tal como haviam feito no dia 25 de Janeiro .

No dia seguinte à eleição do mês de Janeiro, um governo  verdadeiramente democrático e, sim, um governo radical, teria evitado a saída de cada euro do país, teria repudiado a “ilegal e abominável” dívida – como a Argentina fez com êxito – e acelerado um plano para deixar a tão paralisante zona Euro. Mas não havia nenhum plano. Havia apenas a vontade de estar  “à mesa”, procurando “melhores condições”.

A verdadeira natureza do Syriza raramente tem sido analisada e explicada. Para os media estrangeiros não são mais do que “esquerdistas”, ou  “extrema-esquerda”, ou “linha dura” – o habitual cliché. Alguns dos apoiantes internacionais do Syriza tem atingido, por vezes, níveis de ânimo elevados, uma reminiscência da ascensão de Barack Obama. Alguns têm perguntado: Quem são esses  “radicais”? Em que é que eles acreditam?

Em 2013, Yanis Varoufakis escreveu:

“Devemos acolher esta crise do capitalismo europeu como uma oportunidade de o substituir por um sistema melhor? Ou será que devemos apenas encetar uma campanha para estabilizar o capitalismo? Para mim, a resposta é clara. É muito pouco provável que a crise da Europa dê origem a uma melhor alternativa para o capitalismo…

“Inclino-me para a crítica que tenho defendido, que uma agenda fundada no pressuposto de que a esquerda foi, e continua a ser, inteiramente derrotada… Sim, eu gostaria de apresentar [uma] agenda radical. Mas, não, não estou disposto a cometer o  [erro do Partido Trabalhista britânico, na sequência da vitória de Thatcher].

“O que é que de bom foi conseguido, na Grã-Bretanha, no início da década de 1980, promovendo uma agenda de mudança socialista que sociedade britânica desprezou, precipitando-se para a viagem neoliberal de Thatcher? Precisamente nada. O que é que de bom virá de lutar pelo desmantelamento da zona euro e da União Europeia propriamente dita…?”.

Varoufakis omite qualquer referência ao Partido social-democrata que, ao dividir o eleitorado de esquerda, levou ao surgimento do “blairismo”. Sugerindo que as pessoas na Grã-Bretanha  “espezinharam as mudanças socialistas” – quando não tiveram qualquer possibilidade real de fazer tais mudanças – ele repete Blair.

Os dirigentes do Syriza são revolucionários, de um certo tipo – mas sua revolução é a perversa e usual apropriação da social-democracia e das suas representações parlamentares pelos liberais,    formados para cumprir a vulgata neoliberal, ao serviço da engenharia social estabelecida, cujo rosto autêntico é o de Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da Alemanha, um bandido imperial. Como o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, e seus equivalentes entre os antigos partidos social-democratas, considerando-se ainda “liberais” ou até mesmo “de esquerda”, o Syriza é o produto de uma afluente, altamente privilegiada e educada classe média, “escolarizada no pós-modernismo”, como Alex Lantier escreveu.

Para eles, classe é o impronunciável, quanto mais uma persistente luta, apesar da dura realidade da vida da maioria dos seres humanos. Os vultos do Syriza são bem comportados; eles não irão liderar a resistência que os cidadãos almejam, e que o eleitorado grego com tanta coragem demonstrou, mas apenas lutar por “melhores condições” venais dentro do status quo que encurrala e castiga os pobres. Quando se funde com “políticas de identidade” e com as suas insidiosas distrações, a conseqüência não é resistência, mas subserviência. A vida política na Grã-Bretanha exemplifica isso mesmo.

Mas este cenário não tem que ser uma fatalidade, um capítulo encerrado, se despertarmos do longo coma da pós-modernidade e rejeitarmos os mitos e enganos, daqueles que dizem que nos representam, e lutar.

Tsipras no dia seguinte

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/07/2015, diretamente de Atenas)

         Daniel Oliveira

                         Daniel Oliveira

Atenas está incrivelmente calma para o caos habitual das ruas. “É a calma antes da tempestade”, diz uma amiga. Houve alguns pequenos confrontos, ontem. O Partido Comunista Grego fez a sua manifestação pelo voto nulo, muito menos participada do que é habitual para o mais militante dos partidos gregos. Os suicídios políticos não costumam ser muito populares. Mas hoje será a grande noite. O “sim” vai juntar os seus apoiantes no Estádio Panatenaico. O “não” tem um comício com concerto, onde Alexis Tsipras falará, na Praça Syntagma. São os últimos cartuxos. O futuro ficará decidido no domingo à noite. Ficará? Muito provavelmente não. Nem a demissão de Tsipras, caso ganhe o “sim”, nem a saído do euro, caso ganhe o “não”, são totalmente certas.

Os media internacionais interpretaram as declarações de Tsipras, que disse que respeitaria a decisão dos gregos e não cumpriria um mandato diferente daquele que o elegeu, como a promessa de uma demissão em caso de vitória do “sim”. Ele não o disse, na realidade, com tanta clareza. E quando, em política, uma coisa simples não é dita com clareza temos de nos perguntar porquê. Foi isso que andei a fazer em Atenas e, sobretudo, no Syriza. A razão pela qual não o disse é porque há vitórias que podem ser derrotas e há derrotas que podem ser meias-vitórias. É isso que joga dentro do próprio Syriza, uma confluência da sempre complexa esquerda radical, que vai de marxistas-leninistas puros e duros, trotsquistas de várias colorações, ecologias e social-democratas históricos.

Vejamos os três cenários possíveis: o “sim” ganha com grande margem, o “sim” ganha com uma margem pequena, o “não” ganha (a margem é indiferente).

O futuro ficará decidido no domingo à noite. Ficá? Muito provavelmente não. Nem a demissão de Tsipras, caso ganhe o “sim”, nem a saído do euro, caso ganhe o “não”

Se o “sim” ganhar com uma enorme diferença de votos, Alexis Tsipras não tem outro remédio se não demitir-se. Só que a sua demissão não muda o fundamental. A direita não tem ninguém para competir com Tsipras. Tem Antonis Samaras, que, como me explicou um antigo dirigente da Nova Democracia, “é esforçado, tem uma cara apresentável e só se mantém no lugar porque ninguém teve, depois da sua derrota, coragem para pedir que se demitisse”. E pode, quem sabe, voltar a ter Kostas Karamanlis, primeiro-ministro eleito pela Nova Democracia, entre 2004 e 2009, sobrinho de Konstantinos Karamanlis, figura histórica da direita grega. Esta semana quebrou seis anos de total silêncio para apelar ao voto no “sim”, permitindo que se falasse sobre o seu regresso. Ele que é uma figura moderada de uma Nova Democracia em deriva desesperada para a direita, tentando, sem sucesso, segurar os eleitores que lhe fugiram para a Aurora Dourada e o Anel.

Por agora, a Nova Democracia continua a afundar-se nas sondagens, o PASOK é uma ruína irrelevante, os restantes partidos são demasiado pequenos e a Aurora Dourada, que pode subir ainda mais numas próximas eleições, não conta para qualquer solução de governo. Toda a gente aposta, mesmo com uma pesada derrota no referendo, que o carismático Tsipras, visto até por muitos adversários como um patriota, garante, se quiser, uma nova vitória ao Syriza. Mesmo que desça (e as sondagens chegaram a dar-lhe, em abril, quase 45 por cento), ficará, graças ao estado em que está a Nova Democracia, em primeiro. Isso vale os 50 deputados extra garantidos pela lei eleitoral, que tornam o Syriza incontornável. A não ser que haja um enorme cataclismo (sempre possível na Grécia), mesmo que o Syriza fique ainda mais longe de uma maioria, não há como os partidos que defenderam o “sim” terem deputados suficientes para governar.

Segundo as sondagens, parece não parece haver uma ligação perfeita entre o voto nos partidos e no referendo. Na sondagem do empate técnico, 65% dos eleitores do Syriza vão votar pelo “não”. Os restantes estão indecisos. Entre os eleitores do centrista Potami, o mais europeísta dos partidos gregos, 25% dizem votar “não”. O mesmo acontece com 30% da Nova Democracia. E muitos destes eleitores desalinhados não pretendem mudar o seu sentido de voto partidário.

Se o “não” vence, Tsipras vê a sua posição negocial reforçada e começa tudo de novo. Se conseguir arrancar um acordo satisfatório à Europa, o governo grego abrirá uma caixa de Pandora com efeitos políticos noutros países.

Se o Syriza for a votos de novo, apresentará, muito provavelmente, um novo mandato. Deixando claro, como não deixou nas últimas eleições, que levará até às últimas consequências a promessa de Varoufakis: prefere cortar um braço a assinar um acordo onde não esteja uma renegociação da dívida. As últimas consequências não passam por decepar o braço do ministro, mas por não assinar qualquer acordo, o que resultará no fim do financiamento e na inevitável saída do euro. Recorde-se que a Grécia tem até 20 de julho para resolver os problemas com o BCE. Se a Europa quiser criar um caos sem remédio, basta ter essa data como limite. E aí estará a decidir que a Grécia sai do euro.

Um cenário muito mais complexo é se o “sim” ganhar por pouco. Aí, nem todos estão de acordo com a demissão e isso explica a forma pouco clara como Tsipras se comprometeu a lidar com este resultado. Há quem pense que a demissão não é indispensável, até porque, como já expliquei, é bem possível que ela não mude grande coisa. Que mais valeria tentar, apesar de tudo, assinar o acordo que foi proposto antes – isto partido do princípio que a Europa ainda o quer – e tentar continuar a aprovar algumas medidas de esquerda, em especial na lei laboral e no aumento do salário mínimo. Segundo me explicam, não parece que esta posição tenha grande futuro dentro do partido. Mas é possível que seja a de algumas das pessoas mais próximas de Tsipras.

Por fim, o “não” vence, Tsipras vê a sua posição negocial reforçada e começa tudo de novo. O que estará em causa será, para Varoufakis , mais do que as medidas concretas, uma substancial renegociação da dívida que não torne a austeridade eterna. Para a maioria do Syriza será um pouco mais do que isso. Se conseguir arrancar um acordo satisfatório à Europa, o governo grego abrirá uma caixa de Pandora com efeitos políticos noutros países. Coisa que Merkel e, mais do que ela, Rajoy sabem.

Se tudo regressar ao mesmo impasse, o problema posto na possibilidade da vitória do “sim” repete-se. A diferença é que Tsipras não precisa de eleições e de um novo mandato para optar por ir até às últimas consequências. A vitória do “não” dar-lhe-á liberdade de escolha. Mais uma vez, pode decidir entre um acordo um pouco melhor do que tinha e ou a ruptura com Bruxelas e Berlim.

Se o “sim” ganhar com uma enorme diferença de votos, Alexis Tsipras não tem outro remédio se não demitir-se

Ganhe o “sim” ou o “não” é preciso olhar para o mosaico interno que é o Syriza. É ele que pode vir a determinar o caminho desta crise.

O partido está dividido em duas grande fações. A Plataforma de Esquerda, oposição interna, mais radical, é liderada por Panagiotis Lafazanis, ministro do ambiente e da energia. É o maior defensor do “grexit”, junta os sectores mais esquerdistas do partido e tem 30 por cento dos membros do Comité Central do Syriza. Com ele não contarão para qualquer acordo.

Na maioria “presidencial”, metade do partido está com o seu secretário-geral, Tasos Koronakis. Este grupo de apoio condicionado a Tsipras, conhecido como “iniciativa dos 53” e que acabará por decidir o futuro do Syriza, tem uma posição intermédia. Não partilha do antieuropeísmo bastante agressivo de Lafazanis, mas, perante um novo acordo que não corresponda a uma mudança de rumo, preferirá a saída do euro. Desta ala política que, por enquanto, tem apoiado Tsipras, faz parte o economista Eucleides Tsakalotos. Estudou em Sussex e Oxford, fez investigação em Kent e é ministro adjunto dos Negócios Estrangeiros para as relações Económicas. Este marxista mais discreto do que o social-democrata Yanis Varoufakis tem encabeçado as negociações na Europa. Os jornais, sempre pouco informados destas coisas, até o deram como substituto para moderar os excessos do impetuoso ministro das Finanças. Dizem-me no Syriza que se ele disser que assina um acordo, o grupo de Koronakis segue-o e haverá maioria no Syriza, deixando os mais radicais sozinhos.

Restam os dois grupos que se mantêm fiéis ao moderado Alexis Tsipras: um, mais pequeno, da governadora de Attica Rena Dourou e do eurodeputado Dimitrios Papadimoulis; outro, do próprio Alexis Tsipras, que não terá mais do que 20 por cento do partido. Nas recentes eleições internas, na secção de Atenas, esta divisão política ficou clara: 30 por cento para os mais radicais, 40 por cento para o grupo que realmente domina o partido e 30 por cento para os dois grupos que apoiam Tsipras.

Desculpem esta exposição sobre as idiossincrasias do Syriza. Mas sem as compreender andará tudo a chutar ao lado da baliza. É verdade que sem o carisma e a popularidade de Alexis Tsipras o Syriza não teria grandes hipóteses com um eleitorado vindo do PASOK e muito mais moderado do que esta complicada coligação. E os vários grupos mais ou menos radicais regressariam à sua influência política anterior. Mas é impossível prever o comportamento do governo grego depois referendo sem perceber duas coisas. A primeira: por agora, o Syriza não tem grandes razões para temer eleições, já que a direita ainda não conseguiu construir uma alternativa que não faça os gregos recordar o passado. Mesmo na campanha do “sim” sucedem-se, na televisão, ex-ministros, quase tão eficazes a dar votos ao “não” como as filas nos bancos ajudam aos votos no “sim”. A segunda: juntando os mais claros opositores internos a Tsipras com os seus aliados internos mais radicais, que preferem romper com a Europa a assinar um acordo que não seja muito diferente do que foi proposto, o líder do Syriza fica com pouco espaço de manobra negocial. É a situação da direita grega e a correlação de forças internas do Syriza que determinarão muito do que acontecerá depois de domingo.

Linhas verdes e linhas vermelhas

(Isabel do Carmo, in Publico, 30/04/2015)

Isabel do Carmo

        Isabel do Carmo

Seja o que for que suceda com a Grécia, o grito de rebelião da sua população e do Syriza foi uma vitória.

Nós repetimos que “vemos, ouvimos e lemos” e “não podemos ignorar”, mas muitas vezes parece que ignoramos. Perante a escalada de desumanização que nos rodeia, é de ordem política e moral a necessidade de agir. Alguém poderá perguntar daqui a dezenas ou centenas de anos, olhando retrospectivamente: “Eles estavam lá e o que é que fizeram?”

Tal como hoje podemos perguntar aos socialistas, comunistas, outras organizações de luta e aos cidadãos em geral o que é que não fizeram e o que fizeram de errado nos anos que precederam a dominação nazista e fascista na Europa.

É perante a situação actual que podemos reflectir sobre as linhas verdes de coincidência e as linhas vermelhas de limite ao tacticismo e às cumplicidades tóxicas, que deverão nortear a necessidade de unidade à esquerda. Basta andar com os ouvidos atentos à população para perceber que essa necessidade é sentida de forma urgente para fora dos círculos restritos das organizações partidárias, fechadas sobre si próprias, com a sua narrativa interna e o eleitoralismo clubista.

A história que a esquerda se foi contando a partir da revolução francesa deu a aparência de uma linha de tendência ascendente, apesar de algumas quedas terríveis. E de facto não vemos hoje na Europa multidões de andrajosos e famintos a trabalharem dezasseis horas por dia; em muitos espaços mundiais as mulheres têm igualdade de direitos legislada; já não há colónias; a América Latina saiu das ditaduras e da fome: a Ásia não é devastada por milhões de famintos. Quanto à direita, essa não tem história, senão a das “glórias da pátria”, que não podem ser vistas com os nossos critérios actuais. A direita não tem moral, é pragmática. Mas a partir da terceira Revolução Industrial, com a introdução da microelectrónica, novas formas de energia, de produção e de comunicação, o mundo entrou numa espiral, a qual não pode ser lida com as grelhas de leitura do passado. As grandes massas de proletariado vão sendo sucessivamente substituídas por máquinas. As pessoas, as empresas, os países, o mundo, entraram numa espiral de crédito e de dívida, que não tem fim. Um operário da indústria automóvel, com contrato por tempo indeterminado, pode ter uma vida mais estável que um pequeno empresário, individual ou com poucos trabalhadores, endividado nas finanças, no empréstimo da casa, na Segurança Social. Estas dívidas, que são as da “vergonha”, constituem uma mancha de óleo que cobre todo o país e que não parece poder ter correspondência num movimento de massas.

Na situação actual, a leitura da luta de classes não pode ser a da primeira e segunda revoluções industriais. As colónias fora da Europa desapareceram, mas nós, os países do Sul da Europa, somos as novas colónias dos países do Norte, perdemos a soberania e também temos por cá os seus representantes, os novos administradores de tabanca. Por isso seja o que for que suceda com a Grécia, o grito de rebelião da sua população e do Syriza foi uma vitória. Havia outro caminho? Enquanto isto, as proezas geoestratégicas dos países “ocidentais” (estão a ocidente de quê? O mundo é redondo) transformaram o Médio Oriente e o Mediterrâneo num novo holocausto. As desigualdades agravam-se como demonstra Piketty e claro que os desiguais de cima estão dispostos a todas as crueldades para aí se manterem. Tudo isto parece ser a implosão do sistema, mas antes de acabar muito sangue e sofrimento fará correr. Parafraseando o poeta Manuel Pina, “ainda não é o fim, calma, é apenas um pouco tarde”.

Quem não tiver dúvidas que levante um braço. E, com modéstia, lembremo-nos que houve um tempo, em que nós, tal como o Presidente da República, não tínhamos dúvidas e nunca nos enganávamos… A surpresa é que muito do discurso dos partidos de esquerda é hoje, quase sempre, remanescente dessa época. E em vez de uma procura de pontos comuns, há um clubismo e um eleitoralismo, que põem em segundo ou terceiro lugar o mundo real. Ora há convergências possíveis ao nível da educação, da saúde e da segurança social. É possível uma luta comum contra a precariedade. É possível encontrar uma barreira às privatizações. Para tudo isso é necessário ter o espírito de encontrar coincidências e, pelo contrário, não andar a “catar” as divergências, mesmo que prováveis ou possíveis, no sentido de abrir fossos, onde ainda pode haver pontes. Claro que a preservação do Estado social é incompatível com o tratado orçamental (no que é omisso o documento estratégico do PS), que tem que haver pelo menos renegociação da dívida enfrentando o centro de poder na Europa. Mas mais uma vez, o caminho faz-se caminhando, arriscando possíveis erros. A realidade traz-nos surpresas e não é no quietismo narcísico de análise ou na resistência enquistada no seu terreno, tratando sempre os outros partidos da esquerda eleitoral como o inimigo principal, que encontraremos solução para a desgraça actual. Estaremos agora, nos dias após a morte de Mariano Gago e os elogios post mortem, a esquecer as críticas vorazes, sem relevar nunca os lados positivos do seu Ministério, que o acompanharam enquanto foi ministro, só porque o era num Governo PS? Quem se esqueceu que vá aos registos dessa época. E pense.