Impostos e gordura

(Isabel do Carmo, in Público, 24/02/2016)

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Isabel do Carmo

O neoliberalismo faz mal à saúde. Isto anda mesmo tudo ligado.


Tanto o Estado Social como o Estado Austeritário baseiam a sua estrutura económico-financeira sobre os impostos. O que se tem que analisar é de quem tiram e para onde tiram. E em qual dos conceitos é que se baseia o poder instalado em Bruxelas e nos “mercados”, quando tomam a nova solução governamental portuguesa como um inimigo a perseguir, tanto mais quanto pode ser um mau exemplo.

O fundamento do Estado Social estabelecido na Europa depois da II Guerra Mundial, pelo qual lutaram trabalhadores e o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha e os Partidos Socialistas e Sociais-Democratas do Norte europeu, consiste numa forma de redistribuição do rendimento em que se vai buscar impostos a um lado, para tornar possível um Orçamento de Estado disponível para uma estrutura social com saúde e ensino universais e gratuitos e uma segurança social assegurada. É uma estrutura da sociedade que não é revolucionária, nem socialista, nem aspira ao comunismo. É uma forma de compensar as desigualdades de nascimento, de família, de habitação, que são de base no sistema capitalista em que vivemos. É esta coincidência de propósito dos programas dos quatros partidos em acordo parlamentar, embora com modos e tempos muito diferentes, que julgo estar na base da governação possível. Mas a ordem mundial não está para Estados Sociais. Após as turbulências dos anos sessenta e setenta do século XX, Margaret Thatcher em 1979 e Ronald Reagan em 1980 iniciaram o contraciclo que se mantém triunfante. Não é preciso detalhes para descrever os efeitos do reino da Wall Street e da City, dos “mercados”, da concorrência, do individualismo, para a vida quotidiana, o desemprego, a pobreza, a ansiedade das pessoas. Triunfou o aprofundamento das desigualdades, no mundo e em cada país. A realidade está aí. A União Europeia, que era um sonho do pós-guerra que não foi cumprido, teve a mesma evolução. As suas estruturas e actores de topo estão lá como guardiães de um mundo, que não vive para os seres humanos, mas sim para as mercadorias, sendo que a mercadoria-dinheiro já não tem presença física, é virtual. Mas é poder. Somos portanto governados à distância. Com o governo austeritário, os impostos passaram a ter um grande peso sobre o rendimento do trabalho, as pensões, as reformas, os funcionários públicos. Os cortes foram feitos nos serviços de Saúde e na Educação. E serviram para pagar os juros da “dívida”, para diminuir o “défice” (calculados como e quando?). Isto é, o circuito fez-se ao contrário do da redistribuição social – tirou-se aos pobres e “remediados”, que passaram a pobres. E deu-se a um poder mundial sem rosto.

E é esta a ordem das coisas em Bruxelas, mesmo que haja contradições e alguns executores sejam “socialistas”. Para a população, os impostos e os cobradores de impostos passaram a ser o inimigo e desconfia cada vez mais do Estado, grande parte não percebendo que a Saúde, a Educação e os seus agentes também são Estado.

Com esta lógica, as propostas da nova governação à esquerda só podem ser combatidas pelo poder centrado em Bruxelas. Este Orçamento repõe os salários dos funcionários públicos e alivia reformados e pensionistas. Aumenta o salário mínimo nacional. Dá um pouco mais para a investigação em Ciência e Tecnologia e para o Ensino Superior, após os grandes cortes anteriores. Em contrapartida taxa mais a banca e os Fundos Imobiliários, que estavam muito aliviados de impostos. E taxa um pouco as transacções financeiras, as tais que custam tanto quanto carregar num botão. Aumenta as taxas sobre os automóveis e os combustíveis (que beneficiam da descida do preço do petróleo) que são taxas ecológicas e sobre o álcool e o tabaco que são impostos a favor da saúde. É pena não terem logo metido a taxação sobre as bebidas açucaradas, medida que já foi tomada em vários países, com reflexos sobre o seu consumo e sobre a prevenção da obesidade infanto-juvenil. Neste caso, como no do tabaco e no código da estrada, não se vai lá com “educação”. Vai-se com legislação. Este Orçamento de facto aumentou alguns impostos, mas tirou de um lado para pôr no outro, ou seja do lado do trabalho e dos mais desprotegidos. Tentou fazer o circuito de redistribuição ao contrário do Governo anterior. Por isso sofre a perseguição de Bruxelas e Schäuble e Dombrovskis têm a lata de falar publica e autoritariamente contra o orçamento português, eles também “como donos disto tudo”. E quanto a alguma comunicação social portuguesa, particularmente alguns canais de televisão, age como inimiga declarada do governo, como delegada da ordem das coisas dominante. Faz parte também desta perseguição que os “mercados” tenham subido os juros, só para assustar.

E quanto a “gorduras do Estado” cada um fala das que quer e tenhamos esperança que a actual Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa tosquie a burocracia e a compra de assessorias externas que são a grande gordura intra-abdominal, a que faz mal à saúde.

E a propósito de gordura: cada vez há mais investigação relacionando a economia com a epidemia de obesidade nos países desenvolvidos. O neoliberalismo tem-se relacionado com o aumento da obesidade. Na Grã-Bretanha a obesidade passou para o dobro em 20 anos. Nos Estados Unidos tem crescido como se sabe. Para esta análise o National Bureau of Economic Research nos EUA construiu um modelo de cálculo com 27 variáveis sociais e concluiu que elas explicam 37 por cento do aumento do Índice de Massa Corporal, 42% da obesidade total e 59 por cento dos seus Graus II e III. O neoliberalismo faz mal à saúde. Isto anda mesmo tudo ligado.

Médica, Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa

Linhas verdes e linhas vermelhas

(Isabel do Carmo, in Publico, 30/04/2015)

Isabel do Carmo

        Isabel do Carmo

Seja o que for que suceda com a Grécia, o grito de rebelião da sua população e do Syriza foi uma vitória.

Nós repetimos que “vemos, ouvimos e lemos” e “não podemos ignorar”, mas muitas vezes parece que ignoramos. Perante a escalada de desumanização que nos rodeia, é de ordem política e moral a necessidade de agir. Alguém poderá perguntar daqui a dezenas ou centenas de anos, olhando retrospectivamente: “Eles estavam lá e o que é que fizeram?”

Tal como hoje podemos perguntar aos socialistas, comunistas, outras organizações de luta e aos cidadãos em geral o que é que não fizeram e o que fizeram de errado nos anos que precederam a dominação nazista e fascista na Europa.

É perante a situação actual que podemos reflectir sobre as linhas verdes de coincidência e as linhas vermelhas de limite ao tacticismo e às cumplicidades tóxicas, que deverão nortear a necessidade de unidade à esquerda. Basta andar com os ouvidos atentos à população para perceber que essa necessidade é sentida de forma urgente para fora dos círculos restritos das organizações partidárias, fechadas sobre si próprias, com a sua narrativa interna e o eleitoralismo clubista.

A história que a esquerda se foi contando a partir da revolução francesa deu a aparência de uma linha de tendência ascendente, apesar de algumas quedas terríveis. E de facto não vemos hoje na Europa multidões de andrajosos e famintos a trabalharem dezasseis horas por dia; em muitos espaços mundiais as mulheres têm igualdade de direitos legislada; já não há colónias; a América Latina saiu das ditaduras e da fome: a Ásia não é devastada por milhões de famintos. Quanto à direita, essa não tem história, senão a das “glórias da pátria”, que não podem ser vistas com os nossos critérios actuais. A direita não tem moral, é pragmática. Mas a partir da terceira Revolução Industrial, com a introdução da microelectrónica, novas formas de energia, de produção e de comunicação, o mundo entrou numa espiral, a qual não pode ser lida com as grelhas de leitura do passado. As grandes massas de proletariado vão sendo sucessivamente substituídas por máquinas. As pessoas, as empresas, os países, o mundo, entraram numa espiral de crédito e de dívida, que não tem fim. Um operário da indústria automóvel, com contrato por tempo indeterminado, pode ter uma vida mais estável que um pequeno empresário, individual ou com poucos trabalhadores, endividado nas finanças, no empréstimo da casa, na Segurança Social. Estas dívidas, que são as da “vergonha”, constituem uma mancha de óleo que cobre todo o país e que não parece poder ter correspondência num movimento de massas.

Na situação actual, a leitura da luta de classes não pode ser a da primeira e segunda revoluções industriais. As colónias fora da Europa desapareceram, mas nós, os países do Sul da Europa, somos as novas colónias dos países do Norte, perdemos a soberania e também temos por cá os seus representantes, os novos administradores de tabanca. Por isso seja o que for que suceda com a Grécia, o grito de rebelião da sua população e do Syriza foi uma vitória. Havia outro caminho? Enquanto isto, as proezas geoestratégicas dos países “ocidentais” (estão a ocidente de quê? O mundo é redondo) transformaram o Médio Oriente e o Mediterrâneo num novo holocausto. As desigualdades agravam-se como demonstra Piketty e claro que os desiguais de cima estão dispostos a todas as crueldades para aí se manterem. Tudo isto parece ser a implosão do sistema, mas antes de acabar muito sangue e sofrimento fará correr. Parafraseando o poeta Manuel Pina, “ainda não é o fim, calma, é apenas um pouco tarde”.

Quem não tiver dúvidas que levante um braço. E, com modéstia, lembremo-nos que houve um tempo, em que nós, tal como o Presidente da República, não tínhamos dúvidas e nunca nos enganávamos… A surpresa é que muito do discurso dos partidos de esquerda é hoje, quase sempre, remanescente dessa época. E em vez de uma procura de pontos comuns, há um clubismo e um eleitoralismo, que põem em segundo ou terceiro lugar o mundo real. Ora há convergências possíveis ao nível da educação, da saúde e da segurança social. É possível uma luta comum contra a precariedade. É possível encontrar uma barreira às privatizações. Para tudo isso é necessário ter o espírito de encontrar coincidências e, pelo contrário, não andar a “catar” as divergências, mesmo que prováveis ou possíveis, no sentido de abrir fossos, onde ainda pode haver pontes. Claro que a preservação do Estado social é incompatível com o tratado orçamental (no que é omisso o documento estratégico do PS), que tem que haver pelo menos renegociação da dívida enfrentando o centro de poder na Europa. Mas mais uma vez, o caminho faz-se caminhando, arriscando possíveis erros. A realidade traz-nos surpresas e não é no quietismo narcísico de análise ou na resistência enquistada no seu terreno, tratando sempre os outros partidos da esquerda eleitoral como o inimigo principal, que encontraremos solução para a desgraça actual. Estaremos agora, nos dias após a morte de Mariano Gago e os elogios post mortem, a esquecer as críticas vorazes, sem relevar nunca os lados positivos do seu Ministério, que o acompanharam enquanto foi ministro, só porque o era num Governo PS? Quem se esqueceu que vá aos registos dessa época. E pense.