A fortuna bumerangue de MacKenzie Scott

(Ricardo Lourenço, in Expresso, 21/05/2021)

MacKenzie Scott

(Esta história dá que pensar. Enquanto milhões de seres humanos sonham sair da miséria, outros por muito que doem da sua fortuna, não conseguem deixar de ficar ainda mais ricos. É estranho mas é, na verdade, o sistema económico que temos, é o capitalismo a funcionar em todo o seu esplendor e em todo o seu absurdo.

Estátua de Sal, 24/05/2021)


A terceira mulher mais rica do mundo comprometeu-se a doar a fortuna em vida, mas a fonte dos seus milhões, a Amazon, complicou-lhe a vida.


Pormenores íntimos chegavam a conta-gotas às capas das revistas cor de rosa. A estrela de Hollywood, vencedora de um Óscar, não entendia como.

De forma furtiva, ao longo de anos, o próprio pai lucrara com a fama da filha. Quando se apercebe da sua traição, Jessica parte de Los Angeles com destino a Las Vegas para confrontá-lo.

Durante a viagem de carro, da costa do Pacífico ao deserto do Nevada, cruza-se com três mulheres distintas, que, tal como ela, atravessam momentos de crise.

Dana é uma guarda-costas perita em operações especiais, capaz de desativar bombas e efetuar cirurgias de emergência, mas que treme sempre que pensa em casar com o homem que ama. Vivian tenta proteger os seus gémeos recém-nascidos de um velho namorado abusador, herança de um passado como prostituta. Lynn luta contra o alcoolismo.

Ao longo de quatro dias, as mulheres refletem sobre o que as preocupa, o que as deixa tolhidas, retorcidas como uma nota de um dólar, queixando-se da má sorte e dos erros ao longo do tempo.

Apercebem-se depois de que todas aquelas “armadilhas da vida”, como lhes chamam, são os momentos de maior apreço. No fundo, não os trocariam por nada.

Saiba mais aqui

“O que não me mata torna-me mais forte”, repetem, transformando o aforismo de Friedrich Nietzsche sobre a capacidade de resistência à adversidade numa máxima do poder feminino.

Este enredo paradoxal serve de base para o segundo livro de MacKenzie Scott, “Traps”, publicado em 2013, altura em que a escritora ainda assinava MacKenzie Bezos. Ex-mulher do homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, também ela saiu da sombra de alguém que viu a vida privada exposta nas páginas de um tabloide, o “The News of the World”.

O caso extraconjugal de Jeff Bezos com a apresentadora de televisão Lauren Sánchez tornou-se conhecido depois de o casal ter anunciado o divórcio, na sequência de uma separação amigável.

Descobrir-se-ia que a vida de Jeff também fora vendida aos tabloides, depois de fotos e mensagens íntimas dos amantes aparecerem, sem se saber como, na primeira página da publicação.

Uma investigação paga pelo multimilionário, revelada pelo “The Wall Street Journal”, apontou a culpa ao irmão de Sánchez, que lhe pirateou o telemóvel e alegadamente vendeu o material por cerca de 200 mil dólares (166 mil euros).

O diário “The Guardian” acrescentou uma hipótese alternativa: a de que os serviços secretos da Arábia Saudita arquitetaram o roubo, em reação à cobertura feita pelo “The Washington Post”, de que Bezos é proprietário, sobre as violações dos direitos humanos perpetradas por Riade. O próprio Governo americano garante que agentes sauditas assassinaram Jamal Khashoggi, um dos colunistas do “The Washington Post” e crítico da ditadura.

Por fim, o “The New York Times” esclareceu que a explicação era menos elaborada no que concerne à apropriação de dados pessoais. Todos os indícios apontavam para a mão criminosa do irmão de Sánchez.

Com tanto drama à mistura, esperou-se um daqueles divórcios com roupa suja lavada em público e com as câmaras da TMZ (canal televisivo dedicado a celebridades) em perseguições aos protagonistas. Nada disso se passou.

Entre o anúncio do fim da relação, em janeiro de 2019, e a conclusão do divórcio, três meses depois, ambos se mantiveram em silêncio. O primeiro tweet de MacKenzie sobre o assunto serviu para apaziguar os ânimos dos acionistas da Amazon, o gigante de comércio eletrónico construído de raiz pelo casal desde 1994.

Entregando o controlo quase total da empresa ao ex-marido, a escritora recebeu 30 mil milhões de dólares (25 mil milhões de euros) e, ainda, 4% das ações da Amazon, cujo valor pulou de 38 mil milhões de dólares (31 mil milhões de euros) para os atuais 60 mil milhões de dólares (50 mil milhões de euros).

Naquele momento, que poderia ser descrito no livro “Traps” como uma das tais “armadilhas da vida”, MacKenzie reorientou a mesma. Com entrada direta para o terceiro lugar da lista das mulheres mais ricas do mundo, ela dedicou-se à filantropia sem pedir fama em troca — até hoje, concedeu apenas duas entrevistas, recusando milhares de pedidos todos os anos, incluindo o do Expresso, explicaram assessores próximos.

Numa delas, dada a Charlie Rose em 2013, no antigo programa diário da PBS (estação pública de televisão), jurou que apenas pretende uma “vida normal”. Pressionada pelo semblante desconfiado do decano do jornalismo americano, reconheceu que o desejo provavelmente nunca se concretizará.

A culpa é da Amazon, que jorra dinheiro detentor de um efeito bumerangue. Todos os dólares gastos regressam, por muito que MacKenzie se queira ver livre deles.

APRENDIZ DE NOBEL

“É um pouco indiferente. Ela sempre quis ser escritora”, diz ao Expresso Carole Glikfeld, professora de Literatura da magnata na Universidade de Washington durante os anos 90. “Enquanto o marido vivia obcecado pelos números, ela usava o tempo livre para melhorar os instrumentos de escrita”, revela.

Naquela conversa com Charlie Rose, MacKenzie confessou, meio envergonhada, que se tornou rica sem saber como. Mas o embaraço desapareceu quando começou a falar dos livros.

Além de “Traps”, publicou em 2005 “The Testing of Luther Albright”, a história de um engenheiro civil, perito na construção de barragens. Pai e marido devoto, convenceu-se de que propiciaria felicidade eterna à família através da bolha em que viviam, reprimindo as próprias emoções.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Um tremor de terra com origem na falha de San Andreas, na Califórnia, pôs tudo em causa, e o mundo que Luther construíra começou a ruir. Os filhos revoltaram-se e a mulher distanciou-se. Até a casa que erguera com as próprias mãos ganhou fissuras em todas as paredes.

MacKenzie confessou à revista “Vogue” (na outra entrevista que deu) que demorou 10 anos para acabar a obra, que arrecadaria o American Book Award. O trabalho e as crianças (os Bezos têm quatro filhos) impediram dedicação total.

O facto de ser o primeiro trabalho levou-a a mergulhar fundo, a ter cuidado extremo, chegando a chorar compulsivamente sempre que pensava no personagem principal. “Quantas vezes as lágrimas escorreram-me do rosto enquanto levava os meus filhos para os treinos de futebol”, afirmou.

A paixão pela escrita manifestou-se logo aos 6 anos, quando redigiu “The Bookworm”, um rol de observações sobre flores e árvores. Impressionada, uma avó exigiu que os pais fotocopiassem as 142 páginas, não fossem as mesmas perderem-se. Quando uma inundação as destruiu, todos se arrependeram de não terem ouvido a anciã.

A mãe de MacKenzie, Holiday, era uma alegre dona de casa e o pai, Jason, um conselheiro financeiro que receberia um ordenado capaz de sustentar um estilo de vida de classe média. Esta versão contada pela autora esbarra no facto de a família possuir, na altura, duas mansões na Califórnia.

Artigos de imprensa do início dos anos 70 mostram fotos de Holiday em jantares de beneficência, como os realizados no Fine Arts Museum of San Francisco, famosos em todo o país graças à ementa de nove iguarias só ao alcance de alguns.

Na verdade, Jason chefiava uma firma de investimento, e até o próprio liceu que MacKenzie frequentou, o Hotchkiss, no estado de Connecticut, repleto de lagos artificiais e com um campo de golfe, destaca-se como escola de elite.

Elizabeth Meyer, antiga colega em Hotchkiss, recorda ao Expresso que “MacKenzie só tinha amigos nerds — nada de betos. Lembro-me de que tinha bastantes dificuldades nas atividades desportivas e sugeriu várias vezes à direção da escola para trocá-las por aulas de escrita, mas não aceitaram”.

MacKenzie sonhava em frequentar a Universidade de Princeton e as aulas de Toni Morrison, a escritora americana ex-Prémio Nobel da Literatura e Pulitzer, falecida em agosto de 2019. “Encolhía­mos os ombros e ríamo-nos”, detalha Elizabeth.

Anos mais tarde, não só Toni Morrison foi sua professora de Escrita Criativa como lhe orientou a tese de licenciatura. Após a passagem por Princeton, ambas permaneceram em contacto, e Morrison pediu-lhe várias vezes para não abdicar da carreira de escritora.

Carole Glikfeld, a professora de Literatura da magnata na Universidade de Washington, comunicou-lhe o mesmo receio: “A pressão da vida familiar poderia deitar tudo a perder.”

AS GARGALHADAS DE BEZOS

Banido do mundo da finança por um período de 25 anos, Jason deixou de ser o pilar da família. Numa decisão judicial, datada de 1990, lê-se que “os gastos luxuosos impediram a firma de reembolsar os clientes dos investimentos feitos”. Nada se sabe sobre o que lhe aconteceu após esse episódio. Quanto a Holiday, acabou por abrir uma loja de roupa em Palm Beach, na Florida.

Os vários biscates ajudaram MacKenzie a pagar as propinas de Princeton, que ao valor de hoje rondam os 50 mil dólares (41 mil euros) anuais. Pousados os livros, MacKenzie temeu que a escassez de dinheiro lhe comprometesse os planos, o que a forçou a atravessar o estado de New Jersey e a empregar-se numa firma de investimento em Manhattan, Nova Iorque, paredes-meias com Wall Street.

O interior do edifício era um labirinto ziguezagueante de corredores e microgabinetes, todos eles divididos por separadores muito finos. Ao lado do seu, Jeff, que a entrevistou para o cargo, passava o dia à gargalhada enquanto conversava com os clien­tes ao telefone.

“Todos os dias a ouvi-lo. Aquele riso fabuloso… Como era possível não me apaixonar por ele?”, lembrou a amigos durante a boda, três meses depois do primeiro encontro.

O casamento foi a primeira mudança. Em 1994, ambos deixaram Nova Iorque e partiram para Sea­ttle. Jeff queria abrir uma livraria online. Dado o crescimento exponencial da internet, a perspetiva de uma loja com prateleiras quase infinitas assemelhava-se a uma máquina de fazer dinheiro.

Com apenas 23 anos, MacKenzie seguiu o sonho do marido e prescindiu do seu. O primeiro livro teria de esperar. Sem um pingo de empreendedorismo nas veias, ganhou paixão pelo projeto, em parte por se tratar de um negócio de arte. Mais prosaico, Jeff considerava-o um meio para atingir a fortuna.

Assim como muitas outras empresas americanas, a dos Bezos começou numa garagem. Com o acumular dos cifrões, mudaram-se para um armazém numa zona industrial abandonada. Os gigantes do sector, como a Barnes & Noble e a Borders, pareciam atordoados e incapazes de reagir ao novo rival.

MacKenzie trabalhava como guarda-livros. Jonathan Kochmer, um dos primeiros empregados contratados, lembra ao Expresso alguns pormenores daquela época: “Nunca sonhámos que ela teria uma carreira como escritora. Parecia tão satisfeita com o que fazia. Anos mais tarde, quando li que passara por Princeton e pelas aulas de Toni Morrison, fiquei boquiaberto.”

O sucesso imediato da Amazon talvez tenha contribuído para a felicidade descrita pelo antigo funcionário. A notabilidade da empresa consolidou-se após um artigo de capa no “The Wall Street Journal”.

Aos poucos, a livraria online transformou-se num supermercado. Dos livros passou para a música e por fim tornou-se uma plataforma de venda para terceiros. “Sapatos? Velas? Brinquedos sexuais? A Amazon vende tudo”, parodia Kochmer.

A RAINHA INVISÍVEL

Com a entrada da Amazon em Bolsa em 1997, os ganhos dispararam e a revista “Time” nomeou Jeff como figura do ano, apelidando-o de “Rei do Cibercomércio”. Sobre a rainha, nem uma palavra.

MacKenzie nunca demonstrou desagrado pelo facto de o sucesso da Amazon ser atribuído em exclusivo ao marido. Porventura, preferirá o anonimato, tal como Jessica no livro “Traps”, a personagem eremita e em parte autobiográfica.

“O Jeff é muito diferente de mim”, revelou em 2013 à revista “Vogue”. Nesse mesmo ano, na conversa com Charlie Rose, explicou-se melhor: “Ele gosta de gente. É um tipo muito sociável. As festas, para mim, são uma dor de cabeça. Detesto conversas de ocasião, prefiro analisar os diálogos, as palavras.”

Em 2014, com dois livros publicados e uma fortuna conjunta com o marido avaliada em 25 mil milhões de dólares, MacKenzie vivia para as crianças, na altura com idades compreendidas entre os 8 e os 13 anos. Jeff era presença assídua em jantares de gala com celebridades.

O gosto pela alta-costura e por carros topo de gama contrastava com o estilo calças de ganga e t-shirt branca da mulher, reconhecível na vizinhança por conduzir uma carrinha Honda azul amolgada, sempre com os filhos no banco traseiro.

Num discurso do magnata em Princeton, em 2010, por ocasião do final do ano letivo, provou-se de novo a invisibilidade de MacKenzie. Embora ambos fossem produto da Universidade, apenas ele teve direito a tratamento especial. Até quando Jeff se referiu à mulher — “uma apoiante desde a primeira hora e que está aqui na segunda fila” —, as câmaras e os presentes ignoram-na.

“Talvez se Jeff tivesse dado um pouco mais de contexto, aquela gente perceberia a importância dela para a Amazon”, conta-nos Carole Glikfeld, a antiga professora de MacKenzie. “À medida que me apercebia da disparidade de tratamento, temia que ela partisse a loiça.”

UMA REVOLUÇÃO NA FILANTROPIA

O divórcio concretizou-se há dois anos. Com a tinta ainda fresca e 60 mil milhões de dólares ao dispor, MacKenzie entrou no The Giving Pledge, uma organização filantrópica formada por mais de 200 multimilionários que se comprometem a doar em vida quase toda a sua fortuna.

Warren Buffett e Bill e Melinda Gates — que, entretanto, anunciaram o fim de uma relação de 27 anos — figuram como os mentores da iniciativa. No total, 600 mil milhões de dólares (493 mil milhões de euros) serão investidos em projetos filantrópicos.

Jeff, hoje a pessoa mais rica do mundo, permanece de fora. Num artigo publicado no jornal “The Seattle Times”, em 2012, a Amazon é descrita como “ausente do cenário altruísta”, enquanto “foge” das críticas sobre “contabilidade criativa” que lhe permitirá pagar pouco ao Fisco.

O canal televisivo CBS revelou, em 2018, que a Amazon comunicou aos investidores o pagamento de uma taxa de 1,2% em impostos federais, bastante abaixo dos 14% exigidos ao vulgar americano.

No ano passado, MacKenzie doou 6 mil milhões de dólares (5 mil milhões de euros). “A pandemia destruiu a vida de muitos, especialmente daqueles que já sofriam”, justificou num post publicado no seu blogue pessoal. “As perdas têm sido maiores para mulheres, minorias e pobres. Ao mesmo tempo, as grandes fortunas aumentaram.”

Em vez de criar fundações ou empresas com um objetivo predefinido — Bill e Melinda Gates dedicaram-se à cura da malária, enquanto Mark Zuckerberg e Priscilla Chan financiam projetos na área da Educação —, a nova benemérita abre os cordões à bolsa e prefere que não lhe agradeçam. “A abordagem de Bill e Melinda funciona, mas não envolve os profissionais no terreno, que possuem mais conhecimento sobre as verdadeiras necessidades das comunidades desfavorecidas”, constata Elizabeth J. Dale, professora da cadeira de Liderança no curso de Gestão na Universidade de Seattle.

Esta especialista acredita que a abordagem de MacKenzie “revolucionou” a filantropia. “Quando os doadores confiam naqueles que estão na linha da frente, as pessoas mais necessitadas passam a controlar o seu destino. Isso significa que existe uma mudança na dinâmica de poder. Na sociedade americana, fortuna equivale a poder, logo um doador rico pode ter imensa influência sobre uma organização, a menos que faça o que MacKenzie fez. O que ela lhes diz é o seguinte: ‘Aqui têm o dinheiro. Confio em vocês. Boa sorte.’”

A Point Foundation foi uma das beneficiadas pelos milhões de MacKenzie. “De um dia para o outro”, lembra a sorrir Jorge Valencia, fundador da organização, que oferece bolsas e apoio escolar a estudantes de minorias sexuais. “Com a pandemia, foi uma complicação para encontrar um lugar seguro para eles ficarem”, conta ao Expresso. “Quería­mos ter a certeza de que continuariam a ter acesso à comida e à internet, dada a nova realidade do ensino virtual.”

Valencia nota que a recolha de fundos passou, no último ano, para o ciberespaço, devido à pandemia. Temeu, por isso mesmo, que as ajudas diminuíssem, até porque muitas empresas e particulares também passam por dificuldades.

A revista “The Chronicle of Philanthropy” descreveu esta agonia num artigo publicado em maio de 2020. Dois meses depois, representantes de MacKenzie contactaram o ativista, informando-o de que um depósito chorudo estava a caminho.

Apesar de não revelar o montante do “presente” — termo usado por MacKenzie —, Valencia garante-nos que se trata de “uma verba nunca vista” e “sem qualquer compromisso associado”. “Somos menos de 20 na Point Foundation. Após o anúncio, julgo que ninguém conteve as lágrimas.”

Em meados do verão passado, MacKenzie tornou claro o que a move. Novamente no seu blogue, escreveu que os tais “presentes” são fundamentais, porque “uma civilização tão desequilibrada é mais do que injusta — é insustentável”.

Pouco depois, o ex-marido testemunhou no Congresso americano a propósito de suspeitas de violação da lei da concorrência. As respostas agradaram de tal maneira ao mercado financeiro que nos dias seguintes as ações da Amazon bateram recordes.

Em menos de uma semana, MacKenzie recuperou quase todo o dinheiro que doara até então. A tendência de crescimento da Amazon intensificou-se ao longo da crise de saúde pública provocada pela covid-19, que obrigou grande parte do comércio convencional a fechar portas. “A pandemia foi boa para a Amazon”, graceja, mais uma vez, Jonathan Kochmer, ex-empregado da empresa.

Tendo por base registos do início deste mês, o gigante da internet vale perto de 1,5 biliões de dólares (1,2 biliões de euros). O preço de cada ação ronda os 3300 dólares (2700 euros). A tal fortuna que MacKenzie disse que nunca procurou colou-se-lhe.

O desejo de ser “alguém normal”, tal como lembrou na conversa com Charlie Rose há oito anos, persistirá. No início deste ano, MacKenzie casou-se com Dan Jewett, um professor de Ciências dos filhos. Os vizinhos de Seattle confirmam que a velhinha Honda azul ainda circula, um tanto ou quanto por milagre, dado o crescente número de maus-tratos infligidos pela condutora, ainda e sempre vestida de calças de ganga e t-shirt branca.

No final da entrevista a Rose, o jornalista manteve-se admirado com a simplicidade das aspirações da convidada, que, em resposta, arregalou os olhos e disse: “Seria maravilhoso!”


O poder das famílias e dinastias

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/04/2019)

Francisco Louçã

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Quando se fala tanto do poder das famílias, talvez convenha descobrir como funciona. Primeiro mecanismo, a fortuna, a base do poder, herda-se, esse é o princípio de tudo. Dois investigadores do Banco de Itália descobriram uma base de dados sobre heranças: usaram os dados fiscais de Florença desde 1427 (quem diz que os italianos são desorganizados?) e verificaram que as famílias mais ricas desse período tiveram uma probabilidade excecional de vir a gerar descendentes bafejados pela fortuna em 2011, quase seis séculos mais tarde. Os autores concluem que há um “efeito duradouro do estatuto socioeconómico dos antepassados”.

Um segundo mecanismo é a fidelidade de classe. Três universitários, da Dinamarca e de duas faculdades da Califórnia, estudaram um caso e fizeram a seguinte pergunta: o que é que aconteceu às fortunas dos proprietários do sul dos Estados Unidos com o fim da Guerra Civil em 1865, sabendo que parte da sua riqueza eram escravos que foram emancipados? Foi um choque, os 10% mais ricos perderam 73% do que tinham. Mas em 1880 os filhos tinham recuperado as fortunas e em 1900 eram mais ricos do que os pais esclavagistas. A razão do sucesso foi a cooperação nas redes sociais dos proprietários. Nas famílias poderosas, a fortuna herda-se e garante sempre um ponto de partida mais à frente.

DINASTIAS

Foi assim que se ergueram as dinastias, que estão por todo o lado. Em Itália, a família Agnelli tem dominado 10% da bolsa (e a Juventus). Embora seja uma grande proporção para o padrão europeu, não é inaudito. As principais 10 famílias de Portugal controlavam 34% da bolsa (até ao colapso, em 2014, do grupo Espírito Santo) e o valor na França e na Suíça é de 29%. Na Suécia, o grupo dominante, a família Wallenberg, tem quase metade do mercado bolsista, com a Ericsson, SAS, SAAB, Electrolux, Atlas Copco, Café Ritazza, a farmacêutica AstraZeneca e outras empresas. Na Alemanha, os Quandts são os principais acionistas da BMW, que inclui a Mini e a Rolls-Royce.

Na Ásia, as dinastias são ainda mais dominantes: as primeiras 15 famílias de Hong Kong detêm 84% do PIB; na Malásia, as 15 mais ricas têm 76% do PIB, em Singapura 48% e nas Filipinas 47%. No Equador, a família Naboa é dona do quinto maior produtor do mundo de bananas e de 40% das exportações. Na Coreia do Sul, os maiores conglomerados são todos familiares, como a Samsung, Hyundai, LG, CJ, Hanwha, Lotte, Hanjin e GS Group.

Nos EUA, seis Waltons e dois Kochs, possuem tanta riqueza quanto 44% da população. Os Waltons têm cerca de 150 mil milhões de dólares — o PIB de um país desenvolvido de dimensão média — com a WalMart, a maior cadeia retalhista do mundo. Os Kochs são os grandes financiadores da extrema-direita no país. O capital move-se em família.

DEMASIADOS HERDEIROS

No entanto, a herança pode ser um problema, o número de herdeiros cresce depressa. Nos EUA, de acordo com a “Forbes”, temos os Rockefellers (200 pessoas com 8,5 mil milhões de dólares), os Mellons (100 com 10 mil milhões) e os Du Ponts (300 elementos com 12 mil milhões); a França tem a família Michelin (400 pessoas com 1,2 mil milhões); a Alemanha tem as famílias Porsche e Piech, donos da Volkswagen (50 com 10 mil milhões), a Boehringer (12 com 10,2 mil milhões) e a Merck (100, donos de 4 mil milhões); no Canadá estão os Bombardiers (7 pessoas com 2,7 mil milhões); e, espalhados pela Europa e pelos EUA, os Rothschilds (10 pessoas com 1,5 mil milhões). Os Wendels empregam mais de um milhar de membros da família nas suas empresas Saint-Gobain e Nippon Oil Pump. Na família Mulliez (dona da Auchan, Decathlon e Leroy-Merlin Boulanger), mais de 600 elementos da família têm ações da empresa-mãe, mas seguem um pacto interno rígido que controla a liderança da empresa.

Na China, 103 descendentes dos “oito imortais” do tempo de Mao Tsé-Tung dirigem grandes empresas estatais. Três deles dominam um quinto da economia chinesa. Na Dalian Wanda, que afirma ter “120 vezes mais funcionários do que o Vaticano” e detém propriedades em Beverly Hills, os cinemas AMC e uma parte do Atlético de Madrid, há ações reservadas para a irmã mais velha do Presidente Xi Jinping e para a filha do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao. As famílias são poder.

HERDEIROS OU EMPRESÁRIOS?

Caroline Freund, antiga economista-chefe do Banco Mundial, estudou se as fortuna herdadas são mais importantes do que as fortunas recém-construídas. Descobriu que a percentagem de multimilionários que devem a sua posição à herança diminuiu em duas décadas de 55% (em 1996) para 30,4% (em 2014). Não obstante, nos EUA o valor chega a um terço e é mais de metade na Europa. Freund notou também que nas economias emergentes o valor das fortunas novas saltou dos 57% (1996) para 79% (2014). Seria esse o caso de Terry Gou, do gigante eletrónico Foxxconn, com um milhão de funcionários; de Zhou Qunfei, a mulher mais rica do mundo, da Lens Technology; ou dos dois gigantes da internet, Jack Ma (Alibaba) e Robin Li (Baidu).

Mas aqui aparecem outras redes de ligações: no nosso século, empresas que já representam 8% da capitalização financeira mundial são geridas por familiares dos líderes políticos dos respetivos países. Foi o poder que fez as fortunas em Angola ou a oligarquia na Rússia, por exemplo.

É melhor levar a sério este poder. Pelo controlo das bolsas, da banca ou de governos, estas famílias são capital que manda no mundo.


Chamem-lhe parvo

Foi Robert Reich, ex-secretário do trabalho de Clinton, quem chamou a atenção, em “The Guardian”, para uma particularidade da carta da semana passada de um poderoso banqueiro aos seus acionistas: Jamie Dimon, chefe do JP Morgan Chase, um dos maiores bancos do mundo, atira-se ao “socialismo” como gato a bofe. O contexto é a missiva anual do CEO a apresentar as contas, e Dimon aproveita sempre a ocasião para expandir as suas opiniões urbi et orbi. Nisso, nada de novo. Ele percorre os assuntos da atualidade e, desta vez, é a nuvem, a inteligência artificial, a privacidade nas redes sociais, o conflito com a China, as relações entre republicanos e democratas. Tudo trivialidades. O que há de novo é o “socialismo”, que “seria um desastre para o nosso país”. Pois é, “não quero dizer que o capitalismo não tenha falhas, que não está a deixar pessoas para trás e que não possa ser melhorado”, mas o socialismo leva a “empresas e mercados ineficientes, enorme favorecimento e corrupção”, escreve Dimon. Mas “não advogo um capitalismo desregulado” e, acrescenta logo, “conheço pouca gente que o defenda”.

Reich lembra que este banco foi resgatado pela voluptuosa nacionalização dos seus prejuízos, quando da crise financeira de 2008, com 25 mil milhões de dólares, um “enorme favorecimento”. Aliás, o favorecimento vem de muito longe, o banco sempre foi protegido pela asa do Estado. Durante a crise, quando estava a ser financiado por dinheiros públicos, o JP Morgan Chase comprou outro banco, o Bear Stearns, infeliz vítima da recessão, pelo valor do edifício da sede; nesse momento, o CEO do JP Morgan, o mesmo Jamie Dimon, pertencia à direção do Banco da Reserva de Nova Iorque, que organizou a venda, ou seja, estava no lugar certo para decidir a compra pelo seu próprio banco do concorrente por tuta e meia. Mais tarde, o Chase teve de pagar uma multa de 13 mil milhões (dos quais onze abatem ao valor coletável futuro) pelos seus desvarios financeiros que o levaram à borda da falência, o tal “capitalismo desregulado” que tem “falhas”. Mas tudo acaba bem, o ano passado o Morgan Chase beneficiou em 3,7 mil milhões da redução dos impostos para o sector financeiro que foram oferecidos por Trump e, generoso, pagou 31 milhões em salário e bónus ao dito Dimon. Uma espécie de “socialismo dos bancos”, que entrega o prejuízo ao Estado quando é tempo de vacas magras e que reduz impostos quando é tempo de vacas gordas.

Reich, deve ser do mau feitio, lembra que os 27,5 mil milhões de dólares pagos em 2018 em bónus aos administradores e agentes financeiros de Wall Street cobririam três vezes os rendimentos dos 600 mil trabalhadores pagos a salário mínimo federal nos Estados Unidos. E que, por isso, quando Dimon diz que não antecipa, mas “estamos preparados para uma nova crise financeira”, ele sabe do que fala. É do “socialismo dos bancos”, que bem “pode ser melhorado”, mas que funcionou como um relógio suíço sempre que foi preciso. Chamem-lhe parvo.157102

Um multimilionário a defender o aumento dos salários!

(Estátua de Sal, 19/11/2018)

plutocrata

Aconselho a todos que vejam este vídeo e a postura de um multimilionário americano que propõe aumentos do salário mínimo e investimentos públicos nas funções  de redistribuição do Estado Social.

Heresia para os economistas da vulgata neoliberal! Terá o homem endoidecido? Será um perigoso radical marxista? Nada disso. Tal como Keynes avançou com as suas teses de estímulo à procura agregada para salvar o capitalismo da derrocada,  assim também Nick Hanauer avança com estas propostas com o mesmo objectivo.

Seria de enviar o vídeo ao Saraiva da CIP, aos teóricos do FMI, à Dra. Teodora, aos burocratas da Comissão Europeia, ao Passos Coelho e a todos os que se rebolam de susto  quando ouvem falar em aumentos no salário mínimo.

Agradeço ao meu amigo Guilherme da Fonseca Statter ter publicado o vídeo no Facebook, onde dele tomei conhecimento. Está legendado em português o que só facilita a nossa compreensão.