(Francisco Louçã, in Expresso, 08/09/2018)
As fortunas herdadas pesam, mas vão pesando cada vez menos. No caso dos mais poderosos da economia portuguesa só estão registados herdeiros
A lista do “Jornal de Negócios” sobre os 100 mais poderosos em Portugal é um curioso exercício, que mistura empresários, governantes e outras profissões (este vosso escriba lá figura numa modestíssima posição). Mas olhemos para a parte da riqueza. Pelo topo da lista encontramos os óbvios: Pedro Soares dos Santos (na foto), Paula Amorim, Paulo Azevedo, Queiroz Pereira (e agora as suas filhas), Vasco de Mello. O que têm em comum é óbvio: a fortuna, as empresas, a influência são herdadas de avós ou pais. No topo da lista de empresários não entra mais ninguém.
Não é só pecadilho português. Um terço da riqueza total do 1% mais rico no mundo é herdada e, nos próximos vinte anos, 500 pessoas deverão deixar aos seus mais de dois milhões de milhões de dólares, mais do que o PIB da Índia, quase duas vezes Espanha. Mas então onde está o empreendedorismo, o capitalismo inventivo?
A CONFORTÁVEL HERANÇA
Uma pesquisa curiosa levada a cabo por dois investigadores do Banco de Itália sobre o fisco da Florença de 1427 revelou que, verificando os apelidos, as famílias ricas de então tiveram uma probabilidade muito mais elevada do que os outros de vir a gerar descendentes bafejados pela fortuna quase seis séculos mais tarde, em 2011. Os autores notam um “efeito duradouro do estatuto socioeconómico dos antepassados”.
Essas heranças são notórias em Itália, onde a tradição e os novos empresários surgem a par: na lista da “Forbes” temos cinco Pradas, a mais antiga família italiana de negócios, e os mais recentes, quatro Benettons, um Dolce, um Gabbana e um Armani. Aliás, grandes empresas mantêm o nome do fundador, como é o caso da Ferrari, comprada pelos donos da Fiat-Chrysler, os Agnellis, que dominam 10% de todo o mercado bolsista italiano (e a Juventus), o que, embora seja muito para os padrões europeus, é comum noutras paragens. Na Ásia, as dinastias são mais fortes: as primeiras 15 famílias de Hong Kong detêm riqueza no valor de 84% do PIB; na Malásia, a riqueza das 15 famílias mais ricas equivale a 76% do PIB, em Singapura a 48% e nas Filipinas a 47%. Em Portugal, as principais 10 famílias controlavam 34% da capitalização de mercado até ao colapso, em 2014, do grupo Espírito Santo. Em França e na Suíça são 29%. No caso da Suécia, os dois maiores grupos detinham 63% de todo o valor da bolsa. O grupo dominante, a família Wallenberg, representa quase metade, controlando a Ericsson, SAS, Nasdaq, SAAB, Electrolux, Atlas Copco, Café Ritazza, a AstraZeneca e dezenas de outras empresas. Na Alemanha, os Quandts, a nata da nata, são os principais acionistas da BMW, que agora inclui os Minis e Rolls-Royces.
A história repete-se ainda mais frequentemente nos países em desenvolvimento. No Equador, a família Naboa é dona da produção de bananas (a marca Bonita, quinto maior produtor mundial) e de 40% das exportações nacionais. Na Índia, os colossos são herdeiros: as famílias Tata (Tetley Tea, Jaguar, Land Rover e durante um tempo o maior produtor de aço da Grã-Bretanha), Birla (um conglomerado desde 1910) e Hinduja (petróleo, media, manufatura, saúde e banca). Na Coreia do Sul, os maiores conglomerados são heranças familiares, a Samsung, Hyundai, LG, CJ, Hanwha, Lotte, Hanjin e GS Group.
OS HERDEIROS ESTRAGAM TUDO?
Estas histórias nem sempre são de sucesso. O quadro geral é, aliás, soturno. Nas famílias grandes, a herança dispersa o poder. Se olharmos para o universo conhecido dos grupos familiares mundiais, apenas 30% dos herdeiros continuam a deter o poder na segunda geração, somente 12% na terceira e uns meros 3% na quarta e seguintes. A taxa de fracasso é elevada e após algumas gerações (regra geral, nunca mais de três ou quatro), a maior parte das dinastias colapsa. Mesmo sendo bastantes, os que sobrevivem são exceções, não são a regra.
Uma razão é que, com o tempo, o número de herdeiros cresce e pode atingir números avantajados. Na família Mulliez (dona da Auchan, Decathlon e Leroy-Merlin Boulanger), mais de 600 elementos da família possuem ações da empresa-mãe, seguindo todos um pacto interno rígido que garante a coesão da liderança da empresa. A família francesa Wendel emprega mais de um milhar de membros da família nas suas empresas Saint-Gobain e Nippon Oil Pump.
De acordo com um estudo da “Forbes” sobre a riqueza dinástica, nos EUA os Rockefellers são 200 (com uma riqueza de 8,5 mil milhões de dólares), os Mellons são 100 pessoas (com 10 mil milhões) e os Du Ponts 300 (com 12 mil milhões); a França tem a família Michelin (400 pessoas com 1,2 mil milhões); a Alemanha as famílias Porsche e Piech, donos da Volkswagen (50 pessoas com 10 mil milhões), a Boehringer (12 membros que possuem 10,2 mil milhões) e a Merck (100, donos de quatro mil milhões); no Canadá encontramos a família Bombardier (sete pessoas com 2,7 mil milhões); e, espalhada pela Europa e pelos EUA, está a velha família Rothschild (10 elementos com 1,5 mil milhões de dólares).
Na China, nada menos do que 103 descendentes dos “oito imortais”, dirigentes da revolução de Mao Tsé-Tung, chefiam empresas estatais. Três deles gerem empresas cujos ativos, combinados, são um quinto da economia chinesa. Na gigantesca empresa Dalian Wanda — que afirma ter “120 vezes mais funcionários do que o Vaticano” e tem propriedades em Beverly Hills, os cinemas AMC e 20% do Atlético de Madrid —, há ações reservadas para a irmã do Presidente Xi Jinping e para a filha do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao.
HERDEIROS E EMPRESÁRIOS
Caroline Freund, antiga economista-chefe do Banco Mundial, estudou a ascensão dos herdeiros, comparando-os com as fortunas emergentes recentes. A sua pesquisa baseia-se na lista de multimilionários da “Forbes”, e verificou que a percentagem dos que devem a sua posição à herança tem vindo a decair, embora ainda seja elevada: passou em duas décadas de 55% em 1996 para cerca de 30% em 2014. Não obstante, nas economias mais ricas, esse valor ultrapassa a média, chegando a um terço nos EUA e no mundo, e a pouco mais de metade na Europa.
Cá está, as fortunas herdadas pesam, mas vão pesando menos. A pergunta que então fica é: porque é que neste tipo de listas portuguesas só estão registados herdeiros que começaram a vida com a colher de prata na boca? A resposta é que são só eles, pois os capitalistas que criaram a sua empresa não chegam lá. Prometeram-nos uma sociedade mais horizontal, é mais vertical; mais democrática, mas está mais fechada; mais aberta, mas é só para a geração dos herdeiros.
A riqueza é de direita?
Dois estudos recentes sobre o enviesamento político da elite económica ou, como antigamente se dizia, da burguesia, apresentam resultados esclarecedores. Três professores das universidades de Northwestern e Vanderbilt, Page, Bartels e Seawright estudaram as opiniões do 1% do topo da escala social nos Estados Unidos, quem tem mais de 40 milhões de dólares. Esta gente, revelam os seus dados, tem uma taxa de participação eleitoral que é o dobro da média nacional, dois terços deles financiam campanhas políticas, sendo mais de metade republicanos e menos de um terço democratas. O mais interessante, embora não surpreendente, é a sua profunda assimilação da ideologia conservadora e neoliberal contra a intervenção do Estado, mesmo na educação e na saúde. Este 1% de mais ricos, que em 30 anos viu a sua fortuna crescer 300% (os 50% de baixo ficaram na mesma), tem alma trumpista.
Outros dois investigadores, Derek Epp, da Universidade do Texas, e Enrico Borghetto, da Universidade Nova de Lisboa, estudaram nove países europeus por um longo período, entre 1941 e 2014, e fizeram a seguinte pergunta no seu artigo “Desigualdade económica e agenda legislativa na Europa”: com o crescimento da desigualdade, como evolui a agenda legislativa? Responde às dificuldades sociais ou agrava-as?
A resposta da sua massa de dados sobre as legislações destes países é conclusiva: quando aumentou a desigualdade, a agenda parlamentar e governativa tornou-se mais enviesada e vulnerável aos interesses da elite social, mais míope nas questões sociais. O que foi reforçada foi a legislação sobre a ordem social, a contenção da imigração e a defesa, e não a que trata de redes de segurança social.
Ou seja, se a vida parlamentar e a responsabilidade governativa são tão vulneráveis a interesses, este sistema oligárquico é cada vez mais deficitário em democracia.