O poder das famílias e dinastias

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/04/2019)

Francisco Louçã

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Quando se fala tanto do poder das famílias, talvez convenha descobrir como funciona. Primeiro mecanismo, a fortuna, a base do poder, herda-se, esse é o princípio de tudo. Dois investigadores do Banco de Itália descobriram uma base de dados sobre heranças: usaram os dados fiscais de Florença desde 1427 (quem diz que os italianos são desorganizados?) e verificaram que as famílias mais ricas desse período tiveram uma probabilidade excecional de vir a gerar descendentes bafejados pela fortuna em 2011, quase seis séculos mais tarde. Os autores concluem que há um “efeito duradouro do estatuto socioeconómico dos antepassados”.

Um segundo mecanismo é a fidelidade de classe. Três universitários, da Dinamarca e de duas faculdades da Califórnia, estudaram um caso e fizeram a seguinte pergunta: o que é que aconteceu às fortunas dos proprietários do sul dos Estados Unidos com o fim da Guerra Civil em 1865, sabendo que parte da sua riqueza eram escravos que foram emancipados? Foi um choque, os 10% mais ricos perderam 73% do que tinham. Mas em 1880 os filhos tinham recuperado as fortunas e em 1900 eram mais ricos do que os pais esclavagistas. A razão do sucesso foi a cooperação nas redes sociais dos proprietários. Nas famílias poderosas, a fortuna herda-se e garante sempre um ponto de partida mais à frente.

DINASTIAS

Foi assim que se ergueram as dinastias, que estão por todo o lado. Em Itália, a família Agnelli tem dominado 10% da bolsa (e a Juventus). Embora seja uma grande proporção para o padrão europeu, não é inaudito. As principais 10 famílias de Portugal controlavam 34% da bolsa (até ao colapso, em 2014, do grupo Espírito Santo) e o valor na França e na Suíça é de 29%. Na Suécia, o grupo dominante, a família Wallenberg, tem quase metade do mercado bolsista, com a Ericsson, SAS, SAAB, Electrolux, Atlas Copco, Café Ritazza, a farmacêutica AstraZeneca e outras empresas. Na Alemanha, os Quandts são os principais acionistas da BMW, que inclui a Mini e a Rolls-Royce.

Na Ásia, as dinastias são ainda mais dominantes: as primeiras 15 famílias de Hong Kong detêm 84% do PIB; na Malásia, as 15 mais ricas têm 76% do PIB, em Singapura 48% e nas Filipinas 47%. No Equador, a família Naboa é dona do quinto maior produtor do mundo de bananas e de 40% das exportações. Na Coreia do Sul, os maiores conglomerados são todos familiares, como a Samsung, Hyundai, LG, CJ, Hanwha, Lotte, Hanjin e GS Group.

Nos EUA, seis Waltons e dois Kochs, possuem tanta riqueza quanto 44% da população. Os Waltons têm cerca de 150 mil milhões de dólares — o PIB de um país desenvolvido de dimensão média — com a WalMart, a maior cadeia retalhista do mundo. Os Kochs são os grandes financiadores da extrema-direita no país. O capital move-se em família.

DEMASIADOS HERDEIROS

No entanto, a herança pode ser um problema, o número de herdeiros cresce depressa. Nos EUA, de acordo com a “Forbes”, temos os Rockefellers (200 pessoas com 8,5 mil milhões de dólares), os Mellons (100 com 10 mil milhões) e os Du Ponts (300 elementos com 12 mil milhões); a França tem a família Michelin (400 pessoas com 1,2 mil milhões); a Alemanha tem as famílias Porsche e Piech, donos da Volkswagen (50 com 10 mil milhões), a Boehringer (12 com 10,2 mil milhões) e a Merck (100, donos de 4 mil milhões); no Canadá estão os Bombardiers (7 pessoas com 2,7 mil milhões); e, espalhados pela Europa e pelos EUA, os Rothschilds (10 pessoas com 1,5 mil milhões). Os Wendels empregam mais de um milhar de membros da família nas suas empresas Saint-Gobain e Nippon Oil Pump. Na família Mulliez (dona da Auchan, Decathlon e Leroy-Merlin Boulanger), mais de 600 elementos da família têm ações da empresa-mãe, mas seguem um pacto interno rígido que controla a liderança da empresa.

Na China, 103 descendentes dos “oito imortais” do tempo de Mao Tsé-Tung dirigem grandes empresas estatais. Três deles dominam um quinto da economia chinesa. Na Dalian Wanda, que afirma ter “120 vezes mais funcionários do que o Vaticano” e detém propriedades em Beverly Hills, os cinemas AMC e uma parte do Atlético de Madrid, há ações reservadas para a irmã mais velha do Presidente Xi Jinping e para a filha do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao. As famílias são poder.

HERDEIROS OU EMPRESÁRIOS?

Caroline Freund, antiga economista-chefe do Banco Mundial, estudou se as fortuna herdadas são mais importantes do que as fortunas recém-construídas. Descobriu que a percentagem de multimilionários que devem a sua posição à herança diminuiu em duas décadas de 55% (em 1996) para 30,4% (em 2014). Não obstante, nos EUA o valor chega a um terço e é mais de metade na Europa. Freund notou também que nas economias emergentes o valor das fortunas novas saltou dos 57% (1996) para 79% (2014). Seria esse o caso de Terry Gou, do gigante eletrónico Foxxconn, com um milhão de funcionários; de Zhou Qunfei, a mulher mais rica do mundo, da Lens Technology; ou dos dois gigantes da internet, Jack Ma (Alibaba) e Robin Li (Baidu).

Mas aqui aparecem outras redes de ligações: no nosso século, empresas que já representam 8% da capitalização financeira mundial são geridas por familiares dos líderes políticos dos respetivos países. Foi o poder que fez as fortunas em Angola ou a oligarquia na Rússia, por exemplo.

É melhor levar a sério este poder. Pelo controlo das bolsas, da banca ou de governos, estas famílias são capital que manda no mundo.


Chamem-lhe parvo

Foi Robert Reich, ex-secretário do trabalho de Clinton, quem chamou a atenção, em “The Guardian”, para uma particularidade da carta da semana passada de um poderoso banqueiro aos seus acionistas: Jamie Dimon, chefe do JP Morgan Chase, um dos maiores bancos do mundo, atira-se ao “socialismo” como gato a bofe. O contexto é a missiva anual do CEO a apresentar as contas, e Dimon aproveita sempre a ocasião para expandir as suas opiniões urbi et orbi. Nisso, nada de novo. Ele percorre os assuntos da atualidade e, desta vez, é a nuvem, a inteligência artificial, a privacidade nas redes sociais, o conflito com a China, as relações entre republicanos e democratas. Tudo trivialidades. O que há de novo é o “socialismo”, que “seria um desastre para o nosso país”. Pois é, “não quero dizer que o capitalismo não tenha falhas, que não está a deixar pessoas para trás e que não possa ser melhorado”, mas o socialismo leva a “empresas e mercados ineficientes, enorme favorecimento e corrupção”, escreve Dimon. Mas “não advogo um capitalismo desregulado” e, acrescenta logo, “conheço pouca gente que o defenda”.

Reich lembra que este banco foi resgatado pela voluptuosa nacionalização dos seus prejuízos, quando da crise financeira de 2008, com 25 mil milhões de dólares, um “enorme favorecimento”. Aliás, o favorecimento vem de muito longe, o banco sempre foi protegido pela asa do Estado. Durante a crise, quando estava a ser financiado por dinheiros públicos, o JP Morgan Chase comprou outro banco, o Bear Stearns, infeliz vítima da recessão, pelo valor do edifício da sede; nesse momento, o CEO do JP Morgan, o mesmo Jamie Dimon, pertencia à direção do Banco da Reserva de Nova Iorque, que organizou a venda, ou seja, estava no lugar certo para decidir a compra pelo seu próprio banco do concorrente por tuta e meia. Mais tarde, o Chase teve de pagar uma multa de 13 mil milhões (dos quais onze abatem ao valor coletável futuro) pelos seus desvarios financeiros que o levaram à borda da falência, o tal “capitalismo desregulado” que tem “falhas”. Mas tudo acaba bem, o ano passado o Morgan Chase beneficiou em 3,7 mil milhões da redução dos impostos para o sector financeiro que foram oferecidos por Trump e, generoso, pagou 31 milhões em salário e bónus ao dito Dimon. Uma espécie de “socialismo dos bancos”, que entrega o prejuízo ao Estado quando é tempo de vacas magras e que reduz impostos quando é tempo de vacas gordas.

Reich, deve ser do mau feitio, lembra que os 27,5 mil milhões de dólares pagos em 2018 em bónus aos administradores e agentes financeiros de Wall Street cobririam três vezes os rendimentos dos 600 mil trabalhadores pagos a salário mínimo federal nos Estados Unidos. E que, por isso, quando Dimon diz que não antecipa, mas “estamos preparados para uma nova crise financeira”, ele sabe do que fala. É do “socialismo dos bancos”, que bem “pode ser melhorado”, mas que funcionou como um relógio suíço sempre que foi preciso. Chamem-lhe parvo.157102