Uma história de aflição

(José Sócrates, in Expresso Diário, 17/01/2023)

O antigo primeiro-ministro e arguido na Operação Marquês critica o ex-camarada António Costa por, tal como André Ventura, “presumir a culpa” do presidente demissionário da Câmara de Espinho, preso preventivamente por suspeitas de corrupção. E diz que o PS está a atacar “com mais violência” do que a oposição os governantes que se viram obrigados a demitir-se na sequência de vários escândalos. Para Sócrates, estamos a caminho de uma “República Penal”


Diz o líder da extrema-direita que a prisão do Presidente da Câmara de Espinho é uma vergonha. Em resposta, o primeiro-ministro apressa-se a concordar – quando um político é preso, diz ele, todos os outros se sentem envergonhados. Como só temos vergonha da culpa, não da inocência, o que os dois estão a dizer é que presumimos a culpa de quem é preso.

E pronto, assim dito, com a solenidade do que é dito no Parlamento, a República muda de natureza – deixamos de presumir a inocência, agora presumimos a culpa. Nem direito a defesa, nem direito a julgamento, nem sentença transitada em julgado. O Estado português, segundo o primeiro-ministro e o líder da extrema-direita, já não precisa de acusar, já não precisa de provar, já não precisa de julgar – basta prender e presumir a culpa. A República a caminho de uma República penal.

O Presidente da Câmara é companheiro político do primeiro-ministro, o que torna tudo ainda mais difícil para o primeiro. Para este último, o primeiro-ministro, se não há escrúpulos com a Constituição, também não haverá com a decência pessoal. O respeito pela dignidade do outro, seja ele quem for, que impõe ouvir primeiro o que o visado tem a dizer em sua defesa, já não vem ao caso. Naquele partido fazem-se agora condenações sumárias.

Quando no governo, o partido socialista parece já não reconhecer as garantias constitucionais nem os limites ao poder estatal. Nem o valor supremo da liberdade individual na ordem penal. O princípio geral do direito democrático de aguardar o julgamento em liberdade é lentamente substituído pela exceção da prisão preventiva, justificada, na maior parte dos casos, por motivos absolutamente fúteis, falsos e enganosos.


O discurso que se ouviu no parlamento não só não respeita os direitos fundamentais como não respeita também os mais básicos deveres de cidadania que todos temos uns para com os outros. E muito menos os deveres de camaradagem, palavra que já significou alguma coisa naquela organização política. Naquele momento do debate a única coisa que parece interessar é o cálculo, a carreira e o instinto de poder. E a covardia política, já agora. Esta última convenientemente disfarçada de “superior interesse do partido”. E, no entanto, seria tão fácil usar a correção e a seriedade. Bastaria lembrar a presunção de inocência, bastaria lembrar que é preciso esperar para ouvir o que o visado tem a dizer, bastaria lembrar que tendo sido alguém preso, compete agora ao Estado, aos órgãos penais do Estado, a responsabilidade de apresentar as provas da conduta criminosa.

Vem, aliás, a propósito lembrar que na operação “teia”, três anos depois das prisões de presidentes da Câmara (as prisões são de Maio de 2019) o Estado ainda não apresentou nem as provas nem as acusações contra os arguidos. Não apresentou nada, a bem dizer, a não ser a habitual campanha televisiva de difamação dos principais visados. O flagrante abuso do poder judicial seria escandaloso em qualquer outro país democrático, mas o jornalismo português insiste em normalizá-lo, lembrando todos os dias que tem a última palavra quando se trata de considerar o que é e o que não é escandaloso. Mas regressemos ao episódio parlamentar para concluir que, bem vistas as coisas, o evento apenas ilustra a mudança de cultura política.

Já houve alturas em que naquele partido nenhum fim social era considerado legítimo se não respeitasse os direitos e garantias constitucionais. Nenhum interesse coletivo seria aceitável se implicasse o sacrifício do princípio de presunção de inocência, base do direito moderno. Parece que não mais. No mesmo momento em que aplaudem o seu líder os deputados socialistas enterram também a sua Declaração de Princípios: “O Partido Socialista considera primaciais a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos”. As palmas dos deputados homenageiam um outro sucesso – o da extrema-direita. Bravo.

No dia a seguir, mais informações. As suspeitas de que o pior foi pensado são absolutamente e completamente confirmadas – a indagação prévia de futuros membros do governo foi proposta ao Ministério Público, quem mais? Vitória total da corporação – o direito de veto político, finalmente. Não a responsabilidade de governar, mas o poder de dizer quem pode e quem não pode entrar no jogo político. Não mais ser o garante da legalidade democrática, mas, em última análise, transformar-se no “grande avaliador” da política e da qualidade dos membros do governo – tudo isto, claro está, em substituição do Parlamento e em violação do princípio da separação de poderes. Mas nada disso parece vir ao caso, o que interessa é que se alguém se portar mal, se aplicar políticas das quais discordemos, tirar-lhe-emos o alvará e pronto.

No fundo, no fundo, regressaríamos ao antigo regime e aos atestados de bom comportamento moral e cívico passados pelas autoridades. Lembram- se da declaração feita à polícia política por um antigo Presidente? Lá chegaremos, mais tarde ou mais cedo. Ou mais cedo do que tarde. Para já, ficámos a saber que a intenção do primeiro-ministro era sujeitar futuros governantes a responder a inquéritos policiais antes de exercerem funções.

Sim, inquéritos policiais, visto que a autonomia de investigação das policias foi há muito eliminada pelo Ministério Público que agora escolhe os chamados órgãos de polícia criminal de acordo com critérios de obediência e de servilismo. Segundo os jornais, que são quem manda, quem investiga são os procuradores – eles investigam, eles acusam e, no futuro, eles julgarão, dispensando os tribunais e os juízes independentes, que só atrapalham. A República a caminho de uma República penal.


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O gravíssimo conluio da investigação criminal com os media

(António Galamba, in Ionline, 24/05/2021)

Ao longo dos anos, temos assistido a sistemáticas violações do segredo de justiça com fugas para a imprensa destinadas a destruírem a eficácia útil da presunção de inocência.


Não devíamos, mas estamos assim no Estado de Direito Democrático português. Ele há a lei, que deveria ser geral e abstrata, aplicada a todos, num quadro de direitos, liberdades e garantias, e depois existem os intervenientes no processo, os destinatários (todos nós), os fiscalizadores e os sancionadores dos incumprimentos. Mas, não. O sistema insiste em gerar arbítrio, porque não trabalha o que devia, porque não tem os recursos adequados à complexidade das realidades modernas, porque está viciado e prisioneiro de esquemas de distorção, confortado com a complacência dos titulares de cargos públicos que deveriam assegurar o normal funcionamento das instituições e o respeito pela Constituição da República.

Ao longo dos anos, temos assistido a sistemáticas violações do segredo de justiça com fugas para a imprensa destinadas a destruírem a eficácia útil da presunção de inocência e a materializarem julgamentos sumários na praça pública, sem que sejam inteligíveis os critérios que fazem com que determinado cidadão seja objeto de tal sorte e outro ao lado não. É uma questão de humores, de acaso, de trocos ou da dedicação dos titulares dos processos de investigação ou judiciais aos canais oleados das “fontes de informação jornalísticas”, sujeitas a várias proteções, desde logo, as corporativas.

Ao longo dos anos, temos assistido a reiterados conluios entre o sistema de investigação criminal e o sistema judicial que, a pretexto do direito à informação, violam o segredo de justiça, sem que a evidente inobservância da lei por parte dos informadores seja objeto de qualquer consequência. O sistema alimenta-se bem, uns com uns cobres pela cedência de informação, outros com a venda de jornais ou a conquista de audiências na selva da competição pelos mesmos nichos de mercado de atenção e de públicos.

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Num país normal, em termos de direito, o que se passou na semana passada teria feito rolar cabeças no sistema de investigação criminal e judicial, mas estamos em Portugal e está quase tudo demasiado distraído com as espumas de todos os dias para que alguém se preocupe com o essencial. As iniciativas de investigação criminal e as expressões judiciais podem estar sujeitas a vicissitudes de oportunidade, de circunstância ou afins, mas nunca tínhamos assistido, com tamanha acutilância, à visualização pública de uma operação abortada, com o avanço desembestado da respetiva narrativa mediática acordada. Foi com o Futebol Clube do Porto, poderia ter sido com qualquer um e é assustador num Estado de Direito Democrático.

Há anos que é evidente o conluio, pelo menos de negócios, dinâmicas e interesses, entre a gestão do Porto e a do Portimonense. Há anos que consta existirem investigações. Há dias foram emitidos mandados judiciais para a concretização de diligências do Ministério Público e da Polícia Judiciária. Alguém acertou a operação de violação do segredo de justiça com os media para propiciar as tristemente tradicionais imagens da chegada dos investigadores judiciais aos locais visados. Alguém acertou com os media, pelos canais regulares de fontes de informação, a natureza das diligências, a fundamentação e as narrativas conexas que passavam por contribuírem para o branqueamento judicial e de imagem de um cibercriminoso. Vejam bem que até tramou Pinto da Costa na sua colaboração com a justiça, à margem da legislação em vigor. No dia aprazado, alguém se esqueceu de informar os canais de violação do segredo de justiça nos media de que as diligências de investigação não aconteceriam (sabe-se lá porquê), e as narrativas jorraram em “última hora”, a par das suspeitas de falsificação de testes à covid-19 pelo clube a norte e um laboratório conhecido.

No final do dia, saem comunicados a desmentir a concretização das diligências judiciais anunciadas com pormenores e volta tudo ao quotidiano, como se nada de grave para o Estado de Direito Democrático se tivesse passado. A indiferença de quem manda, às violações e distorções, só pode acontecer porque existem cartas marcas de proteção que os coloca a salvo do mau funcionamento do sistema. Se o risco de envolvimento em situação de arbítrio, de disrupção ou de falência do normal funcionamento existisse, quem tem responsabilidades públicas e políticas não permitiria que o risco por ser contrário à Constituição. Ou, então, se o sentido de responsabilidade democrática e comunitária tivesse outra latitude e longitude de exigência, além da manutenção diária dos poderes, posicionamentos e centralidades no quadro do sistema, não ficaria tudo na mesma depois dos aberrantes acontecimentos. Tudo não, até houve quem tivesse sido promovido. E há os que são diariamente promovidos por omissão, pela complacência de quem deveria zelar pelo normal funcionamento do Estado de Direito. Os conluios proliferam, alimentam a perceção popular de injustiça, minam as instituições e geram oportunidades de afirmação do populismo. Não dizer nada ou agir, é ser agente ativo da destruição da Democracia. Nunca contarão com a nossa anuência. Se querem fazer, façam dentro da lei ou, atempadamente, alterem a lei e os meios ao dispor.

NOTAS FINAIS

GUINADA À ESQUERDA. O risco de pulverização do sistema político é real e foi potenciado pela anterior solução de governo à esquerda. Agora que o Bloco de Esquerda quer reatar o namoro, criticando as chantagens, mas impondo as suas chantagens para aceder a novas viabilizações políticas, e que Louçã sonha com as Finanças nas mãos de Mortágua, é sempre oportuno relembrar que muitos dos casos e problemas que emergiram no entretanto resultam de falta de atenção às realidades que não estão no radar das negociações partidárias e dos seus nichos eleitorais. Continuar a ter foco em questões acessórias para viabilizar poder, sem atacar o essencial, é, para além dum banquete aos populistas, garantia de problemas estruturais futuros e de novas mudanças de opções políticas com outras maiorias.

GUINADA AO LADO. É espantosa a complacência partidária, pública e mediática com as acusações a Rui Moreira, em mais um exultante exercício de dois pesos e várias medidas. Quantos, no Poder Local, em situações similares – no patamar da acusação –, não foram cilindrados pelos mesmos que agora brandem a presunção de inocência.

GUINADA À SOLTA. Está escrito nas estrelas, ano de eleições autárquicas, profusão de denúncias anónimas e de buscas às autarquias locais, com evidentes efeitos partidários e políticos. A justiça como a Democracia não podem estar suspensas, mas também não é preciso só acordarem ao fim de cada três anos e meio.


O Direito e a Política: o caso Domingos Farinho

(Ana Paula Dourado, in Expresso Diário, 25/07/2018)

ana paula

(Este texto fez-me recordar o adágio: “bem prega Frei Tomás”. Pois é, Dra Dourado e restantes lentes da Faculdade de Direito de Lisboa. Lá ensinar e praticar a presunção de inocência como pedra angular do Estado de Direito só vos fica bem. Mas devem incidir mais nessa temática e chumbar à bruta quem não tiver 20 valores nessa matéria,  porque há por aí muito juiz que não leu bem as sebentas, a começar pelo juiz Alexandre, e outros juristas de pacotilha da nossa praça. 

Comentário da Estátua, 25/07/2018)


“O que interessa não são as opiniões políticas dos juízes, mas se eles as podem pôr de lado e fazer o que a lei e a constituição exigem. Tenho o prazer de dizer que encontrei, sem dúvida, essa pessoa”, afirmou o presidente [Trump], antes de anunciar o nome de Kavanaugh para juiz do Supremo Tribunal Norte-Americano.

Não imaginava começar um artigo de opinião a citar Donald Trump. Num tempo em que se judicializa a política e politiza os tribunais e assim também o papel dos juristas, é importante lembrar que a função das Faculdades de Direito é ensinar a diferença entre ambos, e dar o exemplo.

Esse exemplo foi dado pelo Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 4 de abril de 2018, na nomeação definitiva, por unanimidade, de um professor auxiliar. Trata-se de Domingos Farinho, arguido em processos associados ao caso Marquês e ao ex-primeiro ministro José Sócrates. 21 votos, entre os quais o meu, a favor da nomeação. 21 votos de professores de todas as gerações e quadrantes políticos, e pertencentes às três listas existentes e representadas no Conselho Científico.

Notícias vindas a público levantavam suspeitas sobre o envolvimento de Domingos Farinho na elaboração de dois livros de José Sócrates. Caso gravíssimo se as suspeitas se confirmarem em tribunal.

Terão os professores agido bem?

A Universidade de Lisboa e as faculdades que a compõem têm órgãos de governo, cujas competências assentam na separação de poderes, e todas se distinguem da função judicial.

O Conselho Científico está vinculado à lei, e pronuncia-se sobre a conclusão do período experimental dos professores, com base em critérios de mérito científico e pedagógico. A probidade intelectual também releva na análise desse mérito, mas neste caso prevalece a presunção de inocência.

O Reitor tem o poder disciplinar, e em regra delega-o nos Diretores das faculdades.

Nesse contexto, a direção da Faculdade de Direito discutiu se havia indícios suficientes para a instauração de um processo disciplinar. A direção entendeu que, estando o processo em segredo de justiça, não tinha naquele momento elementos para instaurar o processo.

O LUGAR DA UNIVERSIDADE

O papel das Universidades em distinguir Ética, Direito e Política foi sempre difícil, e a tentação de os confundirem, elevada.

O exemplo da história mais marcante é o de Martin Heidegger. Li e reli o seu “Rektoratsrede”, estupefacta, em Freiburg-am-Breisgrau, ainda não tinha trinta anos.

Reitor da Universidade de Freiburg, Heidegger, o grande filósofo do século XX, discípulo (e amigo) do grande Husserl (judeu) e mentor (e amigo) de Hanna Arendt (judia), expulsou ou contribuiu para expulsar Husserl e os judeus das Universidades alemãs. Quando tomou o seu lugar de reitor, em 1933, após demissão do social-democrata Von Moellendorf, prosseguiu a Gleichschaltung, processo de unificação política e ideológica exigido pelo novo regime. Heidegger pôs em prática um projeto de política universitária de grande alcance, “contra a mera mediação e equilíbrio”.

O risco de confusão entre Ética, Direito e Política é maior nas Faculdades de Direito. Criada pela República, o primeiro Diretor da Faculdade de Direito de Lisboa foi Afonso Costa, destacado republicano, Ministro da Justiça e Culto e mais tarde das Finanças; a Faculdade foi encerrada em 1928 por desentendimentos com o novo Governo, era Oliveira Salazar Ministro das Finanças; no Estado Novo, Marcelo Caetano foi Reitor da Universidade, e foi confrontado com os levantamentos estudantis de 1961 e 1962 e as prisões dos estudantes; o Presidente da República agora em funções é Professor da Faculdade de Direito; muitos ex-alunos e professores estiveram e estão na política.

Em 1975, a Faculdade de Direito de Lisboa fez saneamentos políticos, e algumas cicatrizes ainda não fecharam.

Na nossa história, a Faculdade de Direito de Lisboa sempre correu o risco de não ensinar a diferença entre Direito e Política. O legado escrito dos muitos Professores ligados à política prova, quase sempre, que conseguiram marcar essa diferença no ensino.

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E OS FAZEDORES DE OPINIÃO PÚBLICA

Num Estado de Direito, os órgãos da universidade têm de agir dentro das suas competências legais, e resulta da Constituição Portuguesa que esses órgãos têm de respeitar o princípio da presunção de inocência.

Também em qualquer Estado de Direito, a presunção de inocência é um princípio que pretende garantir que a justiça seja pública e não privada.

Isso significa que todos os responsáveis por cargos ou funções que envolvam um juízo ou avaliação sobre um cidadão não condenado, não o devem avaliar negativamente antes de uma sentença transitada em julgado.

Mas o respeito pela presunção de inocência não recai apenas sobre aqueles responsáveis. Os cidadãos com poder de influência na sociedade, tal como os fazedores de opinião pública, não têm de ser especialistas em Direito, mas devem ter especial cuidado, pela responsabilidade que têm, em não conduzir a julgamentos de Lynch.