Os limites de Frankfurt

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 09/12/2016)

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Não é possível compreender o sucesso dos partidos populistas sem perceber que o mesmo é nutrido pela incapacidade reformadora dos governos formados pelos partidos convencionais. A reunião de ontem do BCE é um bom exemplo disso. Todos os observadores e atores esperavam que Mario Draghi apresentasse o prolongamento do programa de compras do BCE, que deveria terminar em março de 2017, pelo menos por mais um semestre, até às eleições gerais alemãs (o programa foi estendido até dezembro). Mensalmente, o BCE adquire 80 mil milhões de euros em ativos diversos. Isso tem dado liquidez à banca, ao mesmo tempo que evita assaltos especulativos aos juros cobrados pela dívida dos Estados mais frágeis, como Portugal. Não é preciso ser um especialista para perceber que o BCE está a combater com medidas de política monetária uma doença que só poderia ser curada com uma terapia orçamental. O BCE está a tomar medidas excecionais desde pelo menos 2011 (LTRO, 2011; OMT, 2012; TLRO, 2014…), e tanto Berlim como Bruxelas continuam a olhar para o lado.

Os sintomas económicos, sociais, e até morais, de degradação da zona euro mostram que os paliativos do BCE, embora úteis, não dispensam a urgência de um investimento maciço e inteligente a nível europeu. Mesmo o anunciado aumento do sempre adiado Plano Juncker não passa de um analgésico disfarçado de antibiótico.

Se a Europa soçobrar, não será por causa da dívida, que é mero sintoma, mas pela absurda ideia de construir uma união monetária sem Tesouro comum e sem mecanismos institucionais de solidariedade entre os Estados membros. Na sigla UEM, o “E”, que deveria ser de uma economia baseada na coordenação e no interesse geral, ou é uma grosseira mentira, ou uma ideia ainda por realizar. E essa é uma tarefa que os governos não podem transferir para a agenda de Frankfurt.

O otimismo de Stiglitz

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/09/2016)

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                       Daniel Oliveira

Em Portugal, muito mais do que noutros países, as palavras dos estrangeiros sobre nós dão sempre notícia. E isso é absurdo. Mas às vezes as coisas óbvias, quando são ditas de fora, tornam-se mais evidentes aos olhos de todos. E com as coisas acertadíssimas que o Nobel da Economia norte-americano Joseph Stiglitz tem dito sobre a Europa, é interessante ouvir o que pensa sobre como Portugal pode sair do “pântano” em que está.

Na entrevista que deu à Antena 1, a propósito do seu livro “The Euro: How a Common Currency Threatens the Future of Europe”, Joseph Stiglitz foi arrasador para a União Europeia e as suas instituições e poderes. E, no entanto, só disse coisas que todos temos o dever de saber. Que o euro retirou aos Estados mecanismos de ajustamento – as taxas de câmbio e as taxas de juro – e que a Europa contou que tudo poderia depender de políticas orçamentais. Que foram impostos limites cegos ao défice que impedem políticas em contraciclo que favoreçam o crescimento económico em tempo de crise. Que o euro nasceu num determinado momento, em que as convicções ideológicas ditaram a lógica a que hoje está presa. Que as políticas monetárias do BCE, que se teria de concentrar mais na inflação do que com o emprego, não chegam para tirar a Europa da beira do precipício, onde brinca há mais de cinco anos arriscando-se a uma nova crise de dimensões arrasadoras.

Que o euro foi criando com base na fezada de que a própria união monetária criaria uma dinâmica política que levaria ao surgimento dos instrumentos necessários ao seu funcionamento. Isso não sucedeu, houve uma crise que demonstrou a enorme fragilidade da moeda única e o ambiente foi o oposto. Hoje, não há um clima político para mudar seja o que o que for a Europa limita-se a arrastar a indecisão até ao limite e no último segundo faz o mínimo dos mínimos para não cair no buraco. Que os alemães insistem na ideia de que a crise europeia resultou de défices orçamentais quando os factos demonstram que isso não é verdade. Que apesar dos números mostrarem o oposto, os alemães continuam a acreditar que os povos do sul são preguiçosos e por isso não estão disponíveis para a solidariedade que lhes é exigida. Que insistem na austeridade quando já toda a gente percebeu que ela não resulta. E que falhando no diagnóstico continuarão a falar na cura. E que a na sua convicção e determinação a Alemanha está agora em desencontro com o resto do mundo (até com o FMI) e impõe este absurdo a toda a zona euro.

Que os alemães têm beneficiado desta moeda e que isso se faz, ao contrário do que se gosta de repetir, à custa do sacrifício dos países mais periféricos. Que as coisas não vão mudar e começa a não fazer sentido esperar que mudem. Que quando e se a Alemanha acordar todas as falências, todos os que emigraram, tudo o que se perdeu dificilmente será reconstruído. Que esta moeda significou uma década perdida para Portugal e pelo menos um quarto de século perdido para a Grécia. E que os países periféricos não deixarão de viver em crise, com crescimentos anémicos, uma dívida crescente e impagável e sem qualquer possibilidade de inverter a queda enquanto se mantiverem neste euro. E que, apesar das “propostas modestas” que faz, bem longe do federalismo norte-americano, lhe falta otimismo para acreditar que venha a haver outro.

Tudo certo, assim como está certa a conclusão a que Stiglitz chega sobre a decisão que Portugal devia tomar. Sair do euro teria efeitos muito negativos, mas ficar no euro será ainda pior. É a escolha entre uma forte crise que cria as condições para um crescimento futuro ou uma crise que não terá fim. Será um modo de vida. Assim, o Nobel da economia diz o que sempre que é dito cá leva a dedos em riste com acusações de radicalismo irresponsável: Portugal deve sair do euro. Essa saída deve ser negociada e não inclui apenas os portugueses.

É quando Stiglitz fala de negociações para sair do euro que percebemos o seu excesso de otimismo. Percebemos que lhe falta um entendimento pleno da situação política que se vive hoje na Europa (é comum acontecer aos economistas). Ao primeiro sinal de vontade de sair do euro a Alemanha, com o apoio dos seus aliados, o silêncio dos mais fracos e a verborreia inconsequente de França e Itália, faria a Portugal o que fez aos gregos. A parte que Stiglitz não compreendeu, e é natural que não compreenda, é que a zona euro já não é uma união voluntária de Estados, mas uma armadilha de onde não se sai vivo. E é por o saber que os portugueses nem se atrevem a pensar no assunto e os gregos ficaram num beco sem saída. Porque ninguém, nem mesmo Stiglitz, sabe como isso se faz sem ser aniquilado pelos nossos supostos aliados.

Há cada vez mais gente a perceber que Stiglitz tem toda a razão: esta moeda será a nossa morte. Não querendo a morte lenta e temendo o revólver que nos apontam à cabeça e que dispararão ao primeiro movimento para fugir dela. Estamos num dilema: ou a coragem de arriscar a morte súbita, ou a cobardia de aceitar a morte lenta.

De nada valem nacionalismos fanfarrões, para nada servem tontas paixões europeístas. Teremos de encontrar uma forma de sair deste buraco onde, de boa-fé, nos enfiámos. Temos o dever de não deixar aos nossos filhos o legado de miséria que significaria a permanência numa moeda que nos mata aos poucos. A questão é como sair. E ninguém, nem Stiglitz nem quem defende esta saída em Portugal, o sabe. Mal se descubra, é começar.

FMI: é para rir ou para chorar?

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 29/07/2016)

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Um órgão independente do FMI (Independent Evaluation Office), que avalia os programas do Fundo, e no qual se encontra o economista português Sérgio Rebelo, acaba de divulgar a apreciação que faz aos processos de ajustamento conduzidos pela troika em Portugal, Grécia e Irlanda. O retrato é razoavelmente arrasador, embora só seja surpreendente por vir de onde vem. Os críticos já tinham dito o que agora se reconhece por escrito.

Diz o relatório que as previsões eram muito otimistas e que os multiplicadores orçamentais estavam errados. Infelizmente, não se reconhece que uma das causas dos erros nas previsões foi o facto do Fundo ter aplicado aos três países o mesmo modelo que aplica a países com moeda própria – e esperar os mesmos resultados.

Também não se reconhece que havia um profundo desconhecimento do tecido empresarial português. A brutal redução do crédito bancário atingiu profundamente as empresas portuguesas, que sempre estiveram subcapitalizadas e funcionavam com base nos financiamentos da banca para as suas operações correntes. Por via disso, as falências dispararam e o desemprego explodiu.

Depois, temos o caso dos multiplicadores orçamentais errados: em vez de por cada euro de austeridade se verificar um impacto no crescimento de 50 cêntimos, afinal esse impacto foi de 80 cêntimos – o que provocou uma recessão bem mais aprofundada do que se esperava (três anos em vez de um, 7% em vez de 4%).

Temos ainda o reconhecimento de que o pacote de financiamento era curto. Como alguns disseram, em vez dos 78 mil milhões, Portugal necessitava de cerca de 100 mil milhões, porque a reestruturação do setor dos transportes públicos exigia mais 20 mil a 25 mil milhões. Resultado: com menos dinheiro carregou-se mais na austeridade, penalizou-se mais o crescimento e causou-se uma dor social bem maior.

Em seguida, quando já era evidente que a coisa ia por mau caminho, insistiu-se ainda mais na receita. É lembrar o enorme aumento de impostos que Vítor Gaspar nos deixou em legado para perceber que fazer sempre a mesma coisa e esperar um resultado diferente só pode dar mau resultado.

E quando tudo já corria mal alguém se lembrou da célebre desvalorização fiscal, que numa sexta-feira no noticiário das oito Pedro Passos Coelho atirou para cima da mesa como se fosse a coisa mais natural do mundo. A reação de indignação foi tão grande que a medida teve de ser metida na gaveta – e a desvalorização fiscal, uma boa ideia, não voltou a sair do papel.

Ah, é claro que saímos do programa e regressámos aos mercados e que as taxas de juro caíram abissalmente. Mas não nos iludamos. Tudo isso se deve essencialmente ao BCE e ao seu programa de compra de títulos de dívida pública da zona euro. Se de repente ele acabar, as taxas de juro treparão imediatamente por aí acima. E sim, há algum crescimento económico e fizemos reformas. Mas o crescimento é anémico e as reformas incidiram essencialmente no corte de salários e pensões, que sempre foram anunciados como provisórios e estão agora a ser revertidos.

O problema é que reconhecer agora os erros do programa de ajustamento não serve de nada a Portugal. O meio milhão de imigrantes não volta, o desemprego estrutural acima de 10% não se resolve, as empresas que fecharam ou foram vendidas deixaram de ter uma lógica nacional, a fragilidade do sistema bancário é assustadora, e a economia não dispõe de mecanismos para ter um crescimento forte e sustentado.

A par disso, este relatório mostra quão esquizofrénico é o FMI, porque mostra os erros que foram cometidos – mas depois chega a Lisboa Subir Lall, chefe da missão do FMI, e repete que temos de aplicar toda a receita que é agora criticada. Enfim, se não fosse para chorar, era para rir. E o certo é que os programas de ajustamentos podem ser melhorados no futuro, mas a devastação social e económica que causaram em Portugal nunca mais será reparada.