Paes Mamede: “Vivemos uma situação que pode dar origem a grandes convulsões políticas”

(Entrevista a Paes Mamede in Público, 26/12/2021)

O ano três da pandemia poderá caracterizar-se por “uma certa desglobalização”, isto é, por um movimento de relocalização da capacidade produtiva para dentro da Europa, de que Portugal poderá sair beneficiado, diz o economista Ricardo Paes Mamede.

Se os problemas de interrupção da produção e do fornecimento continuarem, e a inflação galopar, corremos o risco de voltar às políticas de austeridade de há dez anos, alerta o também professor de Economia Política no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, para quem as desigualdades tornadas mais evidentes pela pandemia deveriam estar no centro das atenções, “porque as sociedades não aguentam níveis muito elevados de desigualdade durante muito tempo sem fortes problemas de instabilidade política”. Quanto aos milhões do PRR, deveriam ser aplicados fundamentalmente no ataque ao problema das baixas-qualificações.

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Conseguiremos escapar a uma nova crise social e económica em 2022?
A evolução da pandemia vai ter um papel fundamental. É completamente diferente a economia estar a funcionar sem ou com restrições. As perspectivas relativamente optimistas sobre as questões da pandemia fazem-nos pensar que vai haver um maior retorno ao normal, como já houve um bocadinho em 2021 por contraste com 2020. Se assim for, haverá mais actividade económica e algumas das tensões em termos da evolução dos preços podem-se desanuviar.

Diria que o cenário global neste momento é relativamente positivo, mas há vários factores de risco e, se alguns deles se realizarem, as coisas podem não correr tão bem.

Admitindo que teremos um 2022 ainda intermitentemente marcado pela pandemia, como mede o risco de os governos retomarem as políticas de contenção que marcaram a resposta à crise de 2008?
Aquilo que vai determinar a acção dos governos e dos bancos centrais, que no fundo são quem decide as políticas económicas relevantes para lidar com as crises, dependerá muito do que for a evolução da inflação, que, por seu lado, também tem alguma relação com a pandemia.

Neste momento, os preços estão a subir bastante mais do que era costume, em parte porque a pandemia está a causar alguma alteração dos padrões de consumo (há produtos que eram pouco consumidos e que estão a ser muito consumidos, e outros com os quais se passa o contrário), e isso cria alguns problemas de fornecimento: sabemos que há postos que estão a funcionar a meio-gás e que há fábricas que fecham e não fornecem os produtos que deviam fornecer. E não há tantos movimentos migratórios, o que também afecta algum tipo de produção que vive muito de mão-de-obra migrante.

Não estou totalmente convencido de que 2022 vá ser um ano em que tenhamos um reforço substancial do poder de compra de quem vive do seu trabalho. E o motivo fundamental é a inflação.

Se estes problemas associados à pandemia continuarem, e a inflação continuar elevada, o que também depende da evolução do preço do petróleo, os bancos centrais vão estar numa situação muito difícil, porque não será possível manter a inflação muito acima dos níveis habituais sem aumentar as taxas de juro, que é uma medida habitual para contrariar a subida dos preços.

Mas se aumentarem as taxas de juro, teremos um grande problema, até para o comum dos mortais: quem deve dinheiro ao banco sabe que, quando as taxas aumentam, tem de pagar mais. E os juros a pagar pela dívida pública custarão mais ao país e implicarão mais impostos.

Os sinais que temos dos bancos centrais é que vão manter os juros baixos, mas se a inflação começar a galopar, isso não será possível. E também há riscos de política económica associados a factores não monetários. A União Europeia (UE), durante estes dois anos de pandemia, decidiu suspender as regras orçamentais, isto é, aquela pressão feita sobre os governos para manterem os défices baixos e reduzirem a dívida pública. O que está previsto é que em 2023 essas regras voltem. Ora, para alguns países, isso representará um grande esforço ao nível da política orçamental, e poderá significar o regresso a algo muito parecido com as políticas de austeridade que tivemos há dez anos.

Esta tensão ainda não está resolvida. Ainda não há sinais claros de que, caso a crise pandémica continue, a suspensão das regras europeias vá ser prolongada no tempo. E, portanto, há aqui algum risco, mas para já ainda é só isso.

Nesse sentido, 2022 será um ano de transição e de clarificação das incertezas?
Pode ser que seja o ano em que tudo isto se resolve, mas também pode ser que, por causa do prolongamento dos problemas, quer na saúde pública, quer na economia, surjam tensões sociais e políticas, porque há um limite para o que as populações são capazes de suportar e para os custos que isto está a ter. Para mim não seria uma surpresa se 2022 fosse um ano de grande instabilidade política associada a estas tensões que foram sendo acumuladas nos últimos dois anos. E isto pode afectar o desempenho económico. Portanto, 2022 é, nesta fase, um ano muito imprevisível do ponto de vista da evolução da economia.

O mundo será menos global em 2022, nomeadamente por causa das perturbações nas cadeias de distribuição?
A crise pandémica constituiu um marco importante no processo de globalização. Foi um momento em que se percebeu que o excesso de interdependência pode constituir um risco grande, não apenas para a saúde pública, porque os vírus se espalham mais rapidamente, mas também para o funcionamento das economias, porque quando as economias estão muito dependentes umas das outras e do que se passa do outro lado do mundo, uma crise de saúde pública ou outra qualquer que ponha em causa os transportes, a circulação de mercadorias, pode causar grandes disrupções.

E, portanto, é relativamente expectável que uma das consequências desta crise seja uma tendência para uma certa desglobalização, pelo menos em alguns domínios estratégicos. Parece-me que esta tendência para algum recuo na interdependência vai existir, mas francamente não sabemos, porque pode haver algum desbloqueio dos estrangulamentos que têm existido.

Como é que Portugal sairá desse eventual recuo para lógicas mais locais?
A vontade de realocar capacidade produtiva para dentro da Europa, evitando uma dependência excessiva dos mercados asiáticos, por exemplo, fará com que os países que têm melhores condições para acolher esse tipo de investimentos possam beneficiar. E Portugal tem vantagens relativas, no quadro da União Europeia, para receber alguns deles.

Estamos a falar da mão-de-obra barata, uma vez mais?
Não. Na Europa existem países com níveis salariais muito inferiores aos portugueses e seria absurdo achar que a solução é descermos os salários para metade, na esperança de ficarmos mais competitivos.

Portugal poderá conseguir atrair investimentos por ter condições favoráveis a um certo tipo de produção, que não exige mão-de-obra muito barata, mas requer custos competitivos e, fundamentalmente, pessoas qualificadas e boas infra-estruturas. E existem, no país, boas infra-estruturas de transportes, de comunicações, de energia. E ainda competências específicas na indústria transformadora, nas tecnologias da informação e em diferentes áreas da engenharia.

Antevê mudanças expressivas em 2022 no mundo do trabalho? Vamos ter um novo aumento do salário mínimo nacional (SMN), mas continuamos a ser dos países da Europa com uma maior proporção de trabalhadores pobres.
A evolução que tem havido nos últimos anos no SMN é muitíssimo expressiva. E 2022, já sabemos, vai ser um ano em que haverá um novo aumento para os 705 euros. Isto é muito importante, porque significa que a probabilidade de termos pessoas que, apesar de trabalharem, são pobres (o que não é aceitável), se vai felizmente reduzindo.

A existência de desigualdades muito grandes (às vezes não apenas materiais, mas também simbólicas) e a falta de coesão social contêm os elementos fundamentais para a explosão de revoltas.

Mas não estou totalmente convencido de que 2022 vá ser um ano em que tenhamos um reforço substancial do poder de compra de quem vive do seu trabalho. E o motivo fundamental é a inflação. Podemos ter aumentos nos salários mais baixos, mas se forem insuficientes para compensar o aumento generalizado dos preços, serão na realidade fictícios, porque o que resta ao fim do mês vai ser igual ou menor.

Em 2022 o teletrabalho estará desestigmatizado?
Creio que o teletrabalho vai ser o grande legado desta pandemia, para o bem e para o mal. Não é que não existisse antes, mas foi massificado e deixou de ser um bicho estranho às organizações.

Tenderia a apostar que 2022 será um ano em que mais organizações, públicas ou privadas, assumirão o teletrabalho, não já como uma resposta necessária e obrigatória face à pandemia, mas como algo que pode ser incorporado nas práticas organizacionais, em benefício quer das pessoas quer da dinâmica das organizações.

O mundo posterior à covid-19 será mais ou menos igualitário?
A pandemia tornou mais claras as desigualdades, e algumas eram bastante invisíveis, como o nível de desprotecção dos trabalhadores informais, mas os problemas já vinham de trás e, se a pandemia se prolongar, vão acentuar-se.

No acesso à saúde, que já era um problema, os estrangulamentos no SNS tornaram ainda mais difícil o acesso à saúde a pessoas sem meios para recorrer a alternativas privadas.

Em alguns domínios houve um agravamento, mas, na verdade, os factores que determinam a desigualdade não são sanitários, são políticos, são decorrentes de decisões quanto à forma de organização da nossa sociedade, de distribuição de recursos, de regras laborais, da forma como funcionam os serviços colectivos.

Espero que os decisores políticos tenham consciência de que, a cada dia que passa em que haja pessoas que, pelas desigualdades a que estão sujeitas, têm menos acesso a serviços essenciais, maior é o risco de perturbação do funcionamento das sociedades democráticas.

Portanto, mesmo que as desigualdades sejam agora mais visíveis, não significa que sejam estruturalmente mais graves: elas já eram graves, e felizmente que agora são mais óbvias. Isto será um problema se não houver respostas eficazes, porque as sociedades não aguentam níveis elevados de desigualdade durante muito tempo sem fortes problemas de instabilidade política.

Não sei se 2022 vai ser um ano com respostas mais eficazes. Espero que os decisores políticos tenham consciência de que, a cada dia que passa em que haja pessoas que, pelas desigualdades a que estão sujeitas, têm menos acesso a serviços essenciais, maior é o risco de perturbação do funcionamento das sociedades democráticas.

O seu colega francês Thomas Piketty considerava há dias, numa entrevista ao El Pais, que vivemos hoje uma situação similar à que levou à Revolução Francesa, em 1789, aludindo aos privilégios dos detentores de grandes fortunas e ao facto de, sobretudo desde a crise de 2008, se ter acelerado a tomada de consciência dos excessos da desregulação financeira. Concorda com este diagnóstico/aviso?
Eu acho que a comparação não é totalmente devida, na medida em que já não vivemos em sociedades em que temos pessoas completamente desprovidas e a morrer à fome. Pelo menos na Europa, as pessoas têm acesso a um conjunto de bens e serviços muito mais dignificantes do que há 250 anos.

Dito isto, a existência de desigualdades muito grandes (às vezes não apenas materiais, mas também simbólicas) e a falta de coesão social contêm os elementos fundamentais para a explosão de revoltas, para o surgimento de extremismos, de populismos. E vivemos, portanto, numa situação que pode dar origem a grandes convulsões políticas. E quando elas começam é muito difícil voltar atrás. Não tenho a certeza de que os responsáveis políticos mundiais tenham percebido isto devidamente, e se perceberam, a verdade é que não estamos a ver medidas suficientes para regressar a uma sociedade mais coesa e igualitária. Gostaria muito de pensar que 2022 vai ser um ano em que a urgência da promoção da igualdade volta a estar no centro das preocupações políticas.

Não está muito convencido disso?
Não estou, não.

Mas a pandemia não pôs a nu precisamente a impossibilidade de manutenção destas desigualdades?
Isto é um pouco um paradoxo, porque é cada vez mais claro que vivemos num mundo em que dependemos todos uns dos outros. Já era claro com as guerras ou o terrorismo, e depois com as alterações climáticas, e agora também com as questões de saúde pública.

Sabemos que não vamos conseguir controlar esta pandemia enquanto a generalidade da população no mundo não tiver acesso a vacinas. Há sinais, às vezes, que parecem indicar que, de repente, os líderes mundiais se aperceberam disto e estão a tomar decisões mais colectivas. Mas do ponto de vista da distribuição de recursos a nível internacional, não vemos isso acontecer.

O que acontece pontualmente é a concessão de alguns apoios acrescidos para ajudar a custear as vacinas, ou subsídios para financiar a transição para modos de produção menos poluentes, mas o problema fundamental da distribuição da riqueza mundial está muito associado ao facto de termos sectores que acumulam cada vez mais poder e riqueza e são capazes de impor regras que lhes são favoráveis.

Há uma ausência de mecanismos de redistribuição e de criação de oportunidades de desenvolvimento sustentado à escala mundial, e nenhum sinal de que isto esteja a ser invertido. E, portanto, temos aqui medidas que se arriscam a ser essencialmente paliativas, por muito impacto simbólico que pareçam ter.

Os problemas que a economia e a sociedade portuguesa têm não se resolvem numa década, lamento informar. São problemas que têm um século.

Os 16,6 mil milhões do PRR vão mudar o país?
Os políticos mais entusiasmados dizem que o dinheiro do PRR vai alterar estruturalmente o país, os mais cépticos dizem que isto vai ser outra oportunidade perdida. Eu tendo a não ver as coisas nem de uma forma nem de outra.

Os problemas que a economia e a sociedade portuguesa têm não se resolvem numa década, lamento informar. São problemas que têm um século: temos um século de atraso na educação e na industrialização; há problemas em termos de qualificações e de capacidade produtiva que demoram décadas a transformar. Mas temos vindo a fazer uma trajectória positiva nos níveis de qualificações e nos tipos de actividade económica que se desenvolvem no país. O que a “bazuca” europeia pode fazer, se o dinheiro for bem aplicado, é contribuir para que este processo continue.

Agora, não esperemos que daqui a oito ou nove anos o país esteja radicalmente diferente. Não estará. Espero é que tenhamos a capacidade de ir, a cada momento, perguntando como está a ser utilizado esse dinheiro, porque, apesar de tudo, ele pode ajudar a encaminhar o nosso futuro colectivo numa direcção mais favorável.

Resolver o problema das baixas qualificações exige que, para lá escola, haja vários mecanismos a funcionar na sociedade portuguesa que permitam que as pessoas não tenham que trabalhar tantas horas e consigam ter mais rendimentos, outro tipo de aspirações, outra auto-estima.

Quais deveriam ser as áreas prioritárias de investimento?
Há na sociedade portuguesa um problema central, que é o das baixas qualificações. E não se resolve facilmente. Não basta decidir que agora toda a gente é obrigada a ir à escola, porque o desempenho escolar das crianças e dos jovens é muito determinado pelo contexto que têm em casa. Ora, se partimos de uma sociedade que é altamente desigual, em que temos famílias completamente desestruturadas, com salários muito baixos, em que os pais não podem dar apoio porque eles próprios não tiveram formação escolar, não podemos esperar que estas crianças e jovens tenham o mesmo desempenho e a mesma capacidade de adquirir competências quanto crianças e jovens de famílias que já são à partida altamente qualificadas.

Portanto, resolver o problema das baixas qualificações exige que, para lá escola, haja vários mecanismos a funcionar na sociedade portuguesa que permitam que as pessoas não tenham que trabalhar tantas horas e consigam ter mais rendimentos, outro tipo de aspirações, outra auto-estima. São problemas complexos e que só conseguimos resolver construindo uma sociedade que seja mais dignificante para as pessoas.

Essa seria a minha preocupação fundamental. Não tenho a certeza, para ser franco, que, não apenas o PRR mas o conjunto de instrumentos de política pública já hoje planeados, dêem a devida prioridade a este assunto e consigam abranger todas as dimensões necessárias para ultrapassarmos estes obstáculos e termos uma sociedade mais igualitária, mais escolarizada e mais produtiva.

Em 2022, quais serão as palavras-chave no sector económico?
As três primeiras palavras são: incerteza, incerteza, incerteza.


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Cantando e rindo, a ditadura fabrica a democracia?

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/08/2021)

Carlos Guimarães Pinto (C.G.P.) ficou ofendido com o meu ensaio sobre “A traição dos liberais” e saltou “Em defesa da democracia liberal” (Revista E de 23 de julho e 6 de agosto), em particular em prol dos seus três principais arautos do final do século XX, Hayek, Friedman e Buchanan. Para apresentar a causa, mobiliza as suas artes de ocultação e de efabulação, para obter um efeito de justificação que é luminoso sobre a deriva autoritária dos liberais.

A EXCLUSÃO COMO CIMENTO DO PODER

O argumento começa assim: os três heróis liberais deram-se por missão “alertar para os riscos da tirania da maioria”, estabelecendo que “uma maioria conjuntural não pode ter poderes ilimitados nem subjugar minorias”. É bonito, mas o problema é que a doutrina foi posta à prova, como lembrei no meu ensaio e C.G.P. delicadamente preferiu esquecer: Friedman e Buchanan fizeram parte da campanha presidencial de Barry Goldwater em 1964, sendo o primeiro um dos seus principais conselheiros, e ambos defenderam que o seu candidato devia recusar as leis dos direitos civis que passaram a abranger os negros. Atribuíram depois o fracasso à falta de energia do candidato contra os direitos igualitários e repetiram que teria sido um erro não persistir nessa “subjugação das minorias” étnicas.

Quando tiveram de escolher sobre as condições de milhões de pessoas, as pretensões teóricas destes liberais cederam à preservação do racismo. O poder que defenderam não seguia os preceitos constitucionais sobre os quais dissertavam. Para conhecer o vilão, é pôr-lhe o pau na mão.

EDUCAR OS DITADORES?

Se C.G.P. prefere ocultar o conservadorismo racista daqueles seus heróis, em contrapartida dedica-se corajosamente à defesa do seu apoio a ditaduras. Para tanto usa dois exemplos.

O primeiro é delicioso. É a carta que Hayek escreveu a Salazar em 1962, acompanhando o seu livro “A Constituição da Liberdade”. Explica C.G.P. que a carta foi escrita porque Hayek “acreditava que Salazar queria fazer uma transição para a democracia”. Parece que C.G.P. prefere apoiar Hayek sugerindo que ele seria tonto: quando a carta foi escrita já tinham passado 36 anos desde a instauração da ditadura, 17 anos desde o fim da II Guerra Mundial, já Humberto Delgado tinha sido assassinado, já começara a Guerra Colonial, não havia qualquer sinal de cedência do ditador. Só que nem a desculpa de uma eventual destituição mental do herói liberal serve, pois a carta apresenta-se, sem álibis, como um contributo para ajudar Salazar “na sua tarefa de desenhar uma Constituição que previna os abusos da democracia”, como Hayek escreve. Fantasiar esta diligência como uma tentativa de ensinar Salazar a “limitar o alcance das decisões maioritárias” é de mau gosto. Era mesmo para “prevenir os abusos da democracia”, o que Salazar ia fazendo à sua maneira.

O segundo exemplo é mais sofisticado. As sucessivas peregrinações dos três liberais ao Chile durante a ditadura de Pinochet, a missiva de Hayek a Thatcher para a convencer a apoiar o ditador, as suas cartas ao “Times” para elogiar o regime, tudo isso é transformado numa “questão moral”: “Deve um economista dar aconselhamento económico a regimes ditatoriais?”, pergunta C.G.P. E responde afirmativamente. Já ficou para trás o princípio grandiloquente que C.G.P. enuncia no início do seu texto, “nenhum governo deve poder violar direitos humanos fundamentais”, pois aqui há uma subtileza muito “moral”: diz o nosso polemista que, sim senhor, os governantes chilenos eram discípulos diletos de Friedman, mas que criaram “um sucesso económico sem precedentes” e “os mercados livres conseguiram o seu trabalho de trazer uma sociedade livre” (notar o “trazer”). De onde e como “trouxeram”, isso é mistério. O que se sabe é que os tais discípulos que eram ministros da ditadura chacinaram alegremente milhares dos seus concidadãos e que, quando os três profetas os visitaram, nenhum teve a presença de espírito de lembrar essa inconveniência dos direitos humanos.

Pior, aqueles liberais escreveram e repetiram que o liberalismo económico pode dispensar a democracia: “é pelo menos teoricamente possível que um governo autoritário atue na base de princípios liberais” (Hayek) e “pode-se ter um alto grau de liberdade social e um alto grau de liberdade económica sem qualquer liberdade política” (Friedman). Pinochet aplaudiu cada uma destas palavras. No isolamento da sua ditadura, o apoio daqueles senhores foi um bálsamo.

CANTANDO E RINDO

C.G.P. alinha com as trôpegas justificações destes heróis cadastrados inventando uma teoria sobre o sucesso económico de Pinochet que teria levado à democracia (foi um desastre, a segurança social privatizada faliu, e a ideia de sucesso sobre cadáveres qualifica o autor). Não sei se é mais cruel este desprezo pelas vítimas ou a sugestão de uma justificação para o abuso.

Mas a tese de que uma ditadura pode ser o caminho para o sucesso de medidas económicas liberais tem colossais consequências e explica tanto a satisfação daqueles homens com Pinochet como a atual deriva autoritária dos seus novos discípulos.

Então, se esta traição ensina alguma coisa é que aqueles profetas da “democracia liberal” renegaram a democracia e, portanto, a liberdade. O relativismo constitucional, a naturalização da violência social e a subjugação da sociedade a uma tirania económica torna-se, assim, o mantra da iliberalidade do liberalismo moderno. Fiel aos seus mestres, C.G.P. chama a isto uma “questão moral” e diz-nos que a história se pode repetir.


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As letras pequenas do apoio europeu

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/05/2020

Daniel Oliveira

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Os apoios anunciados pela Comissão Europeia já não são a fisga que todos temiam. E os critérios de distribuição parecem não ser maus para Portugal. A fundo perdido, serão 15,5 mil milhões de euros. Eles trazem uma boa notícia: graças à bomba relógio italiana, não será cada um por si. Pelo menos os 500 mil milhões que são a fundo perdido não são nem empréstimo, nem adiantamento. É a primeira vez que, perante uma emergência, isto acontece. Graças à bomba relógio italiana. Mas o otimismo que partilho com o Pedro Santos Guerreiro acaba aqui.

É bom reduzir a excitação, porque isto não é uma bazuca e muito menos um Plano Marshall. Basta dizer que o dinheiro previsto para toda a Europa, a fundo perdido, anda próximo de metade dos 994,5 mil milhões que a Alemanha aprovou em subsídios públicos, apenas consigo. Talvez assim seja mais fácil ficar menos impressionado com tantos zeros. Antes de tudo, parem de fazer contas de somar. Só interessam mesmo os cerca de 500 mil milhões. O resto ou são empréstimos, que a nossa dívida não permite contrair sem destruir o país por anos, ou dinheiro previsto para os restantes fundos.

Depois, temos de esperar pelas letras pequenas no contrato. Como temia, este dinheiro vem com condicionalismos. Não devem vir a ser pequenos nem genéricos. Apesar de não ser um pormenor, a questão não é apenas democrática.

Quer dizer que nada nos garante que será gasto no que é prioritário para a nossa economia. O que tem aparecido nos jornais e nas televisões é o New Green Deal. Seria uma revolução na União Europeia. E sendo uma revolução, é razão para desconfiar. Sobretudo quando conhecemos a corrente política que domina a UE.

É prestar atenção ao que disse o comissário europeu para a Economia, quando jurou que isto não era um plano de reajustamento com outro nome. Paolo Gentiloni explicou que a Comissão coordenará as “prioridades nacionais com as prioridades comuns do semestre europeu”. Ora, é no “semestre europeu” que costumam estar as “reformas estruturais” que fizeram o que sabemos ao nosso país, em 2011. É aí que pode ser enfiado o consenso de Bruxelas. Se assim for, a pandemia será mais uma oportunidade para impor modelos económicos e sociais à margem do sufrágio democrático. E o desespero das nações, bem visível no entusiasmo geral, é o momento ideal.

Por fim, nada nos diz que esta proposta vá passar no Conselho. Mesmo com tudo o que escrevi, é bem possível que não passe. Se não passar, a Comissão recorrerá ao orçamento comunitário. Ou seja: recorre a fundos que já estavam previstos. O que quer dizer que estaremos perante um mero adiantamento de dinheiro que não receberemos para a frente. Nem fisga será.

Agora é esperar. E ler com atenção as letras pequenas do contrato. Sou o agoirento? Sou. Os agoirentos são precisos e, lamentavelmente, têm tido razão no que toca à UE.