Histórias do PS – Como Sócrates chegou ao Poder

(Dieter Dellinger, 09/08/2018)

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(Como diz o melífluo Lobo Xavier num dos separadores da Quadratura do Círculo, “há aqui muitas histórias mal contadas”. Sim, há muitas histórias por saber e por contar sobre a política portuguesa das últimas décadas. Este artigo ajuda a esclarecer alguns detalhes de acontecimentos que, vistos de fora, não foram, à época, muito bem entendidos. Mas que, vistos de dentro, ficam claramente elucidados em termos da sua ocorrência e posterior desenvolvimento. 

Se outra não tivesse, advirá dessa elucidação a valia deste texto. Obrigado Dieter.

Comentário da Estátua, 09/08/2018) 


Quando o então PM Guterres se demitiu da chefia do governo e da liderança do PS, Mário Soares era deputado ao Parlamento Europeu e foi com os outros deputados do PS ao PE, António Campos e Sérgio Sousa Pinto, ao gabinete do então comissário Vitorino para saber o que ele pensava. Vitorino colocou-se fora da corrida.

Ferro Rodrigues tinha ficado como Secretário-Geral do PS e estava também a ser vítima dos magistrados que colocaram o nome do político no processo Casa Pia porque Paulo Pedroso tinha sido assistente de Ferro Rodrigues quando este era professor no ISEC e alguém escrevinhou um reles papel sem assinatura a dizer que Ferro Rodrigues estaria implicado e o reles juiz de instrução, sabendo que isso não era verdade deixou que o papel fosse para o processo.

Mário Soares compreendeu que estava em causa uma operação contra o PS que, por falta de provas contra Paulo Pedroso, os juízes foram obrigados a condenar outras pessoas que nada tinham a ver com a política e, talvez, nunca foram pedófilos como se está a provar agora. Os ditos miúdos foram “indemnizados” (comprados) com boas quantias, pelo que disseram tudo o que queriam que dissessem.

Soares ficou aborrecido com a demissão de Guterres e disse que foi uma pena perder-se uma pessoa tão qualificada com uma vasta cultura e uma capacidade oratória notável e gritava no gabinete de Vitorino que era preciso encontrar um SG de qualidade e com mau feitio, isto é, capaz de se impor, digam o que disserem dele.

Guterres tinha um defeito, acrescentou, é uma pessoa boa demais. Não é capaz de se vingar dos que o atacam é um verdadeiro cristão e dá a outra face, precisamos de alguém com qualidades e que tenha mau feitio e saiba impor-se, principalmente na administração pública em que muita gente julga que a liberdade democrática é fazer o que se quer ou não fazer o que deve ser feito.

O Sérgio lembrou o nome de Sócrates e Soares ficou eufórico porque conhecia a determinação dele como Ministro do Ambiente. Combinaram meter-se num avião e vir jantar com o Sócrates num pequeno restaurante perto da Boca do Inferno em Cascais. O Soares estava a chegar ao restaurante quando ouviu na rádio que o filho João se tinha candidatado a SG do PS mas disse que apoiaria o Sócrates e que era o SG com o feitio e a necessária capacidade de ação, mas voltava para casa desesperado com atitude do filho. Jantou o António Campos e o Sérgio com o Sócrates garantindo-lhes o apoio do Mário Soares.

Na verdade, todos estavam de acordo que tinham o homem certo com todas as qualidades de um grande político e um péssimo feitio, capaz de ter fúrias quando aquilo que mandou fazer não é feito. E fez um notável trabalho no ambiente ao acabar com mais de 300 lixeiras a céu aberto, substituindo-as por poucas centrais de tratamento e compostagem de lixos que nenhum concelho queria receber e ter iniciado o reordenamento da costa portuguesa, mandando deitar abaixo milhares de construções clandestinas de enchiam as melhores praias do País.

O eng. Sócrates na Boca do Inferno não deixou que lhe repetissem a proposta e pôs-se logo a trabalhar com aquele vigor que tanto o caracterizou. Mal sabia que a prazo se iria meter num Inferno apesar do seu bom Governo, mas a magistratura não perdoa que alguém que ganhe eleições e venha da esquerda. Eles odeiam a democracia.

Sócrates era o homem de “mau feitio” que a Pátria necessitava, dado que até a Igreja Católica atacou o católico militante Guterres por não ter querido cumprir a Lei da Programação Militar, comprando submarinos, caças F-16 e novas armas automáticas para substituir as G-3. O major-general capelão das Forças Armadas tinha feito essa crítica numa entrevista à rádio. Anos depois, noutra entrevista, mostrou-se arrependido e disse que não competia à Igreja querer armas para matar pessoas. Foram generais e bispos que lhe encomendaram o sermão.

Depois, os fundadores almoçaram com ele num restaurante perto das Janelas Verdes para mostrar que as mais profundas bases do PS estavam com o jovem candidato.

Sócrates com a sua energia e imensa capacidade oratória e cultura política ganhou o Congresso e as eleições que se seguiram, apesar do o Santana Lopes ter inventado a intriga do Freeport através do seu chefe de gabinete mancomunado com dois pulhas, um inspetor da PJ e um deputado municipal do CDS do Montijo. Já não havia meios para meter Sócrates também no processo da Casa Pia que ficaria todo desacreditado, apesar de me dizerem que ainda tentaram com um escrito anónimo.

Ajustes de contas

(In Blog O Jumento, 18/02/2017)

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Mas não foi isso que Cavaco veio fazer e muito menos dizer; se graças à esquerda perigosa as suas parcas pensões já dão para as despesas, as suas contas vão continuar por saldar, não esclareceu muitas dúvidas que existem em torno de alguns dos seus negócios ou dos seus golpes políticos. O que Cavaco fez foi vir a público para espumar. A raiva acumulada contra Sócrates não foi acalmada pelo Caso Marquês, os ciúmes e relação a Marcelo são insuportáveis ao ponto de não terem aguentado um ano.

Cavaco nunca se seguiu por ideologias, de social-democrata pouco ou nada tem, o PSD serviu-o. Quanto a valores, os seus negócios, os queixumes e outras intervenções descuidadas dizem mais sobre a personagem do que as encenações cuidadosamente preparadas por assessores. Cavaco odeia Sócrates, invejava a dimensão cultural de Soares, sente ciúmes pela popularidade de Marcelo.

O homem que depois de tantas vitórias saiu da Presidência da República sem prestígio não suporta que Marcelo tenha mais popularidade do que alguma vez ele teve. Reedita com Marcelo a ciumeira que tinha da família Soares; o homem que saiu de Boliqueime mas cuja dimensão permanece junto à bomba da gasolina não suporta a classe do citadino Marcelo. A razão aconselhava-o a sofrer em silêncio, em esperar por melhor oportunidade, mas os ciúmes que lhe corroem a alma são mais fortes.

Odeia Sócrates, o ex-primeiro-ministro sempre teve o condão de o irritar e, ainda por cima, nunca perdia a oportunidade de o provocar. Tinha de se vingar de Sócrates, tinha de o apanhar ainda na mó de baixo, nunca lhe perdoou a destruição da sua imagem de austeridade durante a campanha presidencial, sempre pensou que Sócrates esteve por detrás das notícias que o demonstraram. Não poderia esperar mais tempo, tinha que usar o Caso marquês como se fosse o leitor mais inculto do CM.

Não, Cavaco não tem ideologia, nada tem de social-democrata, é ele o seu espelho, é ele e os seus ódios, raivas, ciúmes e vinganças. Cavaco não saldou contas, veio dizer-nos que nunca estaremos enganados a seu respeito, foi o pior Presidente da República, vai ser o pior ex-presidente da República. Cada vez que aparece apenas mostra que as eleições que venceu foram os maiores erros dos eleitores; sim porque como se viu com Trump os eleitores também escolhem o que não desvia ser escolhido.

Cavaco não veio ajustar contas com terceiros, veio ajustar contas com os seus fantasmas.

Coragem

(José Pacheco Pereira, in Sábado, 13/01/2017)

Autor

              Pacheco Pereira

Nos depoimentos, declarações, artigos e memórias sobre Mário Soares começa a esboçar-se uma espécie de censura ao Mário Soares do seu último combate político: contra a troika, contra o governo de Passos Coelho e contra as sucessivas violações da Constituição em que este era contumaz. Ou seja, a iniciativa da Aula Magna. Soares estava já muito enfraquecido, tinha lapsos de memória, mas sabia muito bem o que queria e era uma máquina de vontade sem hesitações, levando tudo à sua frente, como sempre fizera em toda a sua vida. Telefonava a este e àquele e pude assistir como comentava de forma pouco amável quem se escusava por razões de conveniência ou receio, e foram alguns. Soares detestava tudo aquilo que lhe parecia cobardia política, e essa era uma das distinções que fazia com frequência, entre os que os tinham e os que não tinham.

Soares tinha tido um papel na ascensão de Passos Coelho contra Manuela Ferreira Leite. Convidou-o e elogiou-o publicamente, coisa de que eu sempre lhe lembrava quando ele vociferava com o governo amigo da troika. Desculpava-se: “Parecia um rapaz tão bem-educado…” E depois a frase continuava como se previa, de forma irreproduzível numa publicação séria.

No combate da Aula Magna não contou, como muitas vezes aconteceu na sua vida política, com o PS. O PS esteve lá representado, alguns socialistas lá foram por si próprios, mas a iniciativa da Aula Magna parecia muito excessiva à prudência respeitosa dos socialistas da época. Mas Soares queria unir numa iniciativa comum todas as forças da esquerda à direita que se opunham à política da “austeridade”, e num certo sentido foi precursor da actual solução governativa.

Teve lá o PCP, o BE, muito da esquerda desirmanada e independente, a ala esquerda do PS com convicção e a ala direita por envergonhada obrigação, e algumas abencerragens vindas do mundo da social-democracia em extinção, como era o meu caso.

Há muita coisa que ainda não veio a público sobre a Aula Magna, mas a iniciativa de Soares permanece a mais consequente tentativa de unir forças contra a política do “ajustamento” numa altura em que se transpirava inevitabilidade. Cortar da biografia de Mário Soares este episódio é politicamente conveniente para muitos, mas não respeita a sua memória.

Intuição política moldada pela coragem
Há uns anos o Público estava a preparar um filme sobre Mário Soares e pediu-me um depoimento, que agora republicou. Nesse depoimento utilizei uma fotografia que eu, Mário Soares e Vítor Alves tirámos em Moscovo diante do sinistro edifício da Lubianka, a sede do antigo KGB. Depois perguntou-me que palavra usaria para descrever Soares e eu presumia que a palavra “coragem” seria aquela que mais gente entrevistada escolheria. Mas era difícil fugir à “coragem” e por isso utilizei uma fórmula que incluía a “coragem” como lubrificante da sua intuição política.

Soares errou muitas vezes, mas tinha uma característica incomum: aquilo que achava que devia fazer, fazia. Não tinha as baias da cobardia que aparece muitas vezes disfarçada de ponderação e de prudência. Ia por ali adiante para terrenos desconhecidos, que ele mudava com a força da sua vontade. Os seus maiores sucessos e as suas maiores asneiras vinham daí. Não é que ele não fosse “oportunista”, no preciso sentido que esta palavra tem em política. Mas era-o em coisas menores, quando via uma qualquer vantagem para as suas intenções não hesitava em fazer coisas de pura circunstância e muitas vezes pouco edificantes. Mas nos grandes combates, e Soares como Cunhal sabiam quais eram os grandes combates, ele varria tudo à frente, sem hesitar.

Vi-o algumas vezes muito exausto – na campanha das presidenciais de 1985 desmaiou no Porto, facto que foi sempre ocultado -, mas nunca o vi hesitante quando estava em combate e ele estava quase sempre em combate.