(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/10/2022)

Quando, no próximo dia 30, os brasileiros voltarem às urnas para a segunda volta das presidenciais, Lula da Silva terá já feito 77 anos e estará a cumprir a sua sexta candidatura presidencial. Para trás ficaram também os seus quase dois anos de prisão dos nove anos e seis meses a que Sérgio Moro e o tribunal de recurso o condenaram, numa sentença depois revertida em nada pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas se é duvidoso que a condenação de Lula por corrupção não tenha sido assente nos métodos incriminatórios que o nosso Ministério Público também cultiva e acha suficientes em crimes que normalmente envolvem políticos — prova indirecta, suposições e deduções por demonstrar —, não restam dúvidas de que, quer no Mensalão, quer no Lava Jato, tanto o seu Governo como o seu partido estavam enterrados até ao pescoço: corromperam e foram corrompidos.
Atendendo a tudo isto, o melhor que Lula tinha a fazer — pela sua gente, pelas suas ideias e pelo seu próprio passado (ele, que saiu do Palácio do Planalto com a mais alta taxa de aprovação jamais alcançada por um Presidente brasileiro em final de mandato: 87%) — era sair de cena. Mas não o fez na eleição presidencial de 2018, quando, ainda na cadeia, obrigou o PT a centrar toda a campanha do candidato Fernando Haddad, não na pessoa deste, que era um bom candidato, mas na pessoa do próprio Lula e na sua reabilitação. Com o escândalo do Lava Jato ainda fresco na memória de todos, os brasileiros foram chamados a escolher entre alguém que estava preso por isso e que concorria por interposto candidato e alguém que prometia limpar tudo isso, embora fosse evidente que Jair Bolsonaro era tudo menos um mãos limpas. Com isso, Lula ajudou decisivamente a elevar Bolsonaro do estatuto de troglodita ao de Presidente do Brasil.

Quatro anos depois, saído da prisão e apenas reabilitado aos seus próprios olhos e aos dos seus próximos, Lula mostrou não ter aprendido nada. A sua ambição pessoal, mesmo aos 77 anos, e o seu desejo de vingança sobrepuseram-se a tudo o resto e, antes de mais, ao interesse do Brasil e ao interesse do mundo civilizado de se livrar de alguém tão desprezível como Jair Bolsonaro. Com uma taxa de rejeição perto de 50%, Lula sabia que a sua candidatura contra Bolsonaro iria dividir o país ao meio, iria arrastar para a extrema-direita gente que nem era bolsonarista, mas que não suportava ver Lula de regresso, e que, fosse qual fosse o destino final das urnas, iria, no dia seguinte, fazer acordar o Brasil para um país dramaticamente separado por um ódio irreconciliável no Congresso, nas ruas, nas famílias. E para quê, se agora, tentando desesperadamente evitar a derrota na segunda volta, ele está disposto a renegar tudo que fez de bom nos seus mandatos e a negociar com Deus e com o Diabo, com os fazendeiros que destroem a Amazónia, com os evangélicos que minam, passo a passo, a democracia brasileira, ou com o eterno “centrão”, esse jogo de interesses cruzados que é o cancro de toda a política brasileira e foi a razão de ser do Mensalão? Mesmo que ganhe, que fará ele com essa porcaria de vitória?
Mas, infelizmente, nem acredito que vá ganhar. Hoje, creio que, em toda a parte, se aplica à política a Lei de Murphy: se alguma coisa pode correr mal ou bem, corre mal. Creio que Bolsonaro vai ganhar. Vai usar armas sujas e feias, como é próprio do personagem. Vai utilizar em benefício próprio os instrumentos do Governo, o medo, a ignorância, o analfabetismo, a grosseria, as redes sociais, as madraças das igrejas evangélicas.

Quem diria, Lula, que o Brasil — não você — teria de enfrentar, numa luta pela sobrevivência e pela decência, esse pigmeu político que você, por egoísmo e falta de humildade, ajudou a tornar-se num monstro?
2 A responsabilidade pela sabotagem dos gasodutos Nord Stream I e II foi imediatamente atribuída pelos aliados mais próximos da Ucrânia — a Inglaterra e os países Bálticos — a Vladimir Putin. A Ucrânia apressou-se a classificá-la como “um acto de terrorismo de Moscovo”, mas curiosamente os Estados Unidos foram os mais contidos, afirmando que iam investigar. Quanto ao próprio Putin, ele afirmou, preto no branco, que fora “um acto de sabotagem dos anglo-saxónicos”. Entre nós, diversos analistas, como Teresa de Sousa, também não tiveram dúvidas em culpar Moscovo, mesmo sem avançarem uma explicação plausível para tal. Paulo Portas, ex-ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, ensaiou uma, a de que era uma forma de Putin avisar a Europa de que podia atingir as suas infra-estruturas vitais. Parece que a Europa não o sabia antes e não o saberia de outra maneira. Mas um ex-colega de Portas no Governo polaco, acompanhado por vários analistas na Alemanha, e não só, não teve dúvidas em atribuir a responsabilidade pela sabotagem aos Estados Unidos. Para esses, a suspeita da autoria americana tem fundamentos bem mais razoáveis: pôr os gasodutos fora de acção para impedir que o crescente descontentamento da população alemã com a vulnerabilidade da sua situação de abastecimento energético, e com o Inverno a aproximar-se, forçasse o Governo alemão a entender-se com Moscovo para retomar os fornecimentos do gás russo, com paz ou sem ela. (Recorde-se, aliás, que, antes mesmo de a guerra começar, Biden tinha dito a Scholz, na cara dele, que o Nord Stream II nunca iria funcionar: uma ordem.)
A verdade é que se é evidente que a Alemanha, a Europa e a Rússia saem a perder deste caso, é difícil imaginar uma só vantagem que Moscovo possa ter obtido com a sabotagem do canal utilizado para vender à Europa o seu gás. Se queria usar a arma da “chantagem do gás”, como não se cansaram de nos repetir, bastava-lhe fechar as torneiras na origem, não precisava de tentar danificar definitivamente os gasodutos.
E se sabemos quem sai a perder, também sabemos quem, independentemente da autoria da façanha, sai a ganhar: os Estados Unidos, o maior fornecedor alternativo de gás liquefeito à Europa — a 10 vezes o preço a que os russos vendiam e 20 vezes aquele que os americanos pagam. Putin pode ser louco, mas será assim tão estúpido?
3 Cerca de um milhão e duzentas mil pessoas já foram ao Google consultar a distância entre Lisboa e Santarém, motivadas pela notícia de que aí se poderá localizar o futuro aeroporto de Lisboa. O Google informa que a distância é de 83 km pela A1, uma distância a percorrer no tempo de 59 minutos (é claro que se demora menos em excesso de velocidade, mesmo moderado, mas a GNR jamais iria desperdiçar a oportunidade para ali instalar em permanência e abundância uma Operação Aeroporto Seguro, isto é, receita gorda garantida). Mas, mesmo em excesso de velocidade, acrescente-se a distância desde a entrada de Santarém até ao putativo aeroporto, e o tempo desde Lisboa nunca ficaria em menos de uma hora: um negócio de sonho para os taxistas e afins, uma impossibilidade para os particulares, um transtorno acrescido para os passageiros, um crime para o ambiente. Dizem os defensores desta estapafúrdia hipótese que há também o comboio, pois que lá passa a Linha do Norte. Das três, uma: ou esta encrava ali, com comboios constantemente parados para receberem e despejarem os milhares de passageiros do aeroporto, ou se constrói uma nova linha só para servir o aeroporto, com custos astronómicos, ou o comboio não é mais do que uma ficção.
Não é preciso ser especialista na matéria — daqueles que estão há 50 anos para chegar a uma conclusão, com estudos que já nos custaram 90 milhões de euros e vão continuar — para se perceber duas coisas: que o aeroporto de Lisboa só interessa, económica e socialmente, se for de Lisboa — não de Santarém, de Beja ou de Arruda dos Vinhos — e que os supostos investidores privados dispostos a financiar a sua construção em Santarém com mil milhões estão a ver se tomam os contribuintes por parvos.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia