(Por oxisdaquestao, in Blog oxisdaquestao, 03/05/2023)
A menção da ida de Augustinho SS a Kiev fotografar-se com um dos maiores corruptos do planeta não ficaria completa se não se dissesse que com ele seguiu uma delegação da AR composta por deputados pró-NATO, fidelíssimos, democratas ocasionais e apreciadores das refeições a bordo dos aviões.
A comitiva seguiu muito animada e sempre atenta aos jornalistas de turno e às câmaras infatigáveis. Talvez o voo não tenha sido da TAP que, como se sabe, está presa ao Ventura e ao seu Chega; e de tal forma que enquanto houver TAP, há Ventura e vice-versa.
Como é da praxe, mandado pela dona Úrsula e transcrito pelo sr. Borrell, os visitantes devem mal aterrem dar notícia em todas as redes sociais, TikTok opcional por ter vagamente uma ligação chinesa. O nosso herói, PR da AR, já postou no Tweeter o seu discurso de 240 caracteres e as fotos programadas. Já disse que.
A previsão de que as fotos incluiriam gorilas e teriam como pano de fundo um edifício chamuscadonão se concretizou; o pessoal de Zelensky passou a ambientes políticos mais formais com mesa extensível e bandeiras coloridas, no caso, por desgosto, pouco hitlerianas e nenhuma da NATO. De notar que o presidente anfitrião continua a usar roupa desportiva em tom militar.
O nosso PR da AR teve ocasião de verificar que as calças do presidente eram oferta de Gomes Caínho, confecção e linhas nacionais. Esta circunstância aproximou de imediato as duas figuras num ambiente que os fotógrafos ucranianos, do público, da CMTV e da CNN não desperdiçaram. Esperam-se mais fotos quando a comitiva for até à noite de Kiev beber uns copos nos bares entupidos de oligarcas e seus políticos além dos traficantes de armas emprestadas pelo Ocidente. E gente bonita para os portugas amigos e salvadores …
Ventura não aparece, entusiasmado que anda com a TAP e a corrupção no Brasil do outro. De resto o homem do Chega não acredita que em Kiev se faz a maior lavagem de dinheiro dos nossos tempos, pode lá ser! Nisso até concorda com o seu recente opositor, Augustinho SS, PR da AR. Que o pessoal da NATO e os ianques não controlem é uma coisa, que os nazis são uns tipos honestos e de contas a toda a prova, outra. De Zelensky nem se fala!
Por último e por cá: o Galamba que lhe olhe nos olhos!
O problema secular das democracias é terem de tolerar e de viver com quem não é democrata mas apenas se aproveita das suas liberdades e, na primeira oportunidade, em podendo, trata logo de suprimir a democracia e a liberdade dos outros. Por isso é que só depois de muitos e muitos anos, de várias gerações educadas na cultura democrática, é que começamos a acreditar que ela está consolidada e é imune a crises, a populismos ou a modas. A nossa democracia, que “apenas” tem 50 anos, é um bom exemplo disso, continuando a ser uma democracia em processo de educação colectiva e individual. Portanto, quando todos os anos se pergunta aos portugueses se estão satisfeitos com o 25 de Abril, uma larga franja responde que não, porque confunde a democracia e a liberdade de que goza — a razão primeira do 25 de Abril — com a conjuntura económica ou com o seu bem-estar pessoal, coisas com as quais os portugueses jamais estarão satisfeitos ou acharão que lhes cabe alguma responsabilidade, mesmo após terem recebido 150 mil milhões de euros de ajudas europeias ao longo de 37 anos. Para o português comum, a culpa do nosso crónico atraso é sempre “deles”, enquanto o mérito de vivermos em liberdade é do povo, a quem, segundo Marcelo, pertence o 25 de Abril — muito embora não se consiga escamotear que, se no dia 1 de Maio de 1974 havia 8 milhões de portugueses antifascistas nas ruas, uma semana e todos os anos antes havia não mais do que umas dezenas de milhares de membros activos daquilo a que se chamava a “oposição” ao regime. Mas isso, já se sabe, é História, e a História é uma infatigável lavandaria.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
Portanto, os nossos fascistas, de ideologia ou de oportunidade, sempre estiveram aí, dissimulados e contendo o seu despeito em silêncio, até que o Dr. Ventura e as redes sociais, território de eleição dos cobardes, lhes deram o conforto de poderem emergir à luz do dia, sabendo que, afinal, não estavam de todo desamparados. Mas até nisso nós somos pequenos. Eu entrevistei o dirigente regional do VOX em Madrid, nas últimas legislativas espanholas, e assisti ao comício final da campanha do VOX, em que discursaram os principais dirigentes, terminando no líder, Santiago Abascal. E o que vi e ouvi meteu-me medo, coisa que o Chega não mete nenhum. O Chega mete dó e nojo, o VOX mete medo, porque tem um discurso estruturado, duro e impiedoso, assente na História, e um programa de Governo que poderia começar a executar amanhã. Mas do Chega, nem sequer os seus fiéis seguidores, acantonados nas caixas de comentários do “Observador”, são capazes de apontar uma só ideia do que quer que seja em termos programáticos: economia, saúde pública, educação, política externa, segurança social, agricultura, ambiente. Nada. O Chega, além de estar de serviço permanente ao racismo e ao combate aos imigrantes pobres, não passa de um guarda-nocturno da política: recolhe a cada noite os despojos do dia, para então, vasculhando no caixote do lixo, desencantar qualquer pequeno escândalo ou qualquer causa populista, onde esgota toda a sua forma de estar e de “servir a pátria”.
Eu olhei para aqueles 12 alarves parlamentares, a quem a pátria, um por um, nada conhece de recomendável, entretidos a insultar o Presidente do Brasil, e só não me encolhi de vergonha porque, felizmente, Lula da Silva é bem mais inteligente do que qualquer um deles e percebeu bem que feios, arruaceiros e maus cada país tem os seus e cada democracia tem de tolerar os que tem.
Sendo, porém, inquestionável que, como diz Ventura, eles têm o mesmo direito de se sentar no Parlamento que quaisquer outros deputados eleitos, pergunta-se o que fazer com esta gente sem princípios democráticos nem hábitos de educação. Este é um tema inesgotável, e a solução não é fácil, mas, em princípio, parece-me que a saída não pode ser nem ignorá-los nem dar-lhes palco acriticamente. Por exemplo, quando Ventura cavalga o “escândalo” do perigo de prescrição de alguns dos crimes de que José Sócrates é acusado, como se a responsabilidade disso fosse do Governo ou das manobras dilatórias do acusado, é preciso contar a história toda. Começando por lembrar que Sócrates esteve preso 10 meses para que o Ministério Público investigasse à vontade. Na altura, a tese é que ele traria dinheiro da Suíça para Portugal, levando-o daqui para Paris, onde vivia, em notas acomodadas em caixas de sapatos transportadas de carro pelo seu motorista — uma tese tão anedótica que rapidamente foi esquecida. Depois passou a ser suspeito de corrompido pelas farmacêuticas, a seguir pelo Grupo Lena e pela Venezuela — teses também abandonadas. Veio então a suspeita de corrupção pela PT, activada por um simples depoimento de Paulo Azevedo, não esquecido da nega à OPA da Sonae à PT — mas essa suspeita era contrariada por todos os dados de facto da história e não havia como sustentá-la. E chegou-se enfim ao testemunho salvador de Helder Bataglia, a quem o MP suspendeu o mandado de captura internacional que tinha lançado contra ele por aventuras próprias em troca de ele vir a Lisboa implicar Sócrates como corrompido pelo Grupo BES. E nisto se gastaram cinco anos para deduzir uma acusação com dezenas de milhares de páginas, de caminho ainda cometendo o “deslize” de contrariar a regra do juiz natural para que o processo fosse parar às mãos de quem o MP queria — um “deslize” que Sócrates obviamente explorou, como era seu direito e até seu dever, recorrendo para a Relação, que não lhe deu razão mas não conseguiu demonstrar que ele não a tinha. E quando o processo chega enfim às mãos de outro juiz de instrução e este demora, salvo erro, mais um ano a conseguir digerir os milhares de páginas e todas as questões levantadas, já alguns dos crimes estavam prescritos, e o essencial do que restou Ivo Rosa estilhaçou. E o MP, tal como o arguido, obviamente, recorreu e espera. Mas tudo poderia ter sido diferente se o MP tem seguido as directivas de evitar os megaprocessos e tivesse resistido à tentação de fazer deste o “processo do regime”, metendo tudo lá dentro e passando anos a atirar o barro à parede a ver o que podia colar, em lugar de se concentrar naquilo que achava que tinha pernas para andar e avançar com isso. Não sei se Sócrates quer ou não ser julgado. Mas se acabar por não o ser é uma vergonha para a Justiça, e o responsável é o MP. É função da imprensa contar a verdadeira história e nisto, como no resto, desarmar as falsidades e o populismo fácil do Chega e dos seus seguidores.
2 Consta que reina uma efusiva alegria no MNE a propósito da “vitória” da nossa diplomacia sobre a brasileira, consumada na inclusão da palavra “justa” a acrescentar à palavra “paz” no comunicado conjunto da visita de Lula a Portugal. Nós teremos imposto o acrescento de “justa” à afirmação de que é necessário procurar uma solução de paz para a guerra na Ucrânia, e isso terá sido uma vitória, saudada até em Bruxelas. Pois, talvez, fiquem então muito contentes. Mas também, que eu saiba, é a primeira vez que Portugal ou um país europeu reconhece por escrito a necessidade de se encontrar uma solução de paz — e essa não é ideia nossa, mas do Brasil. Que seja justa, sem dúvida, mas só se pode chegar lá começando a negociar. E, para isso, é preciso começar a pensar em parar a guerra, como sempre se faz antes de negociar. Porque da frase de Nuno Severiano Teixeira, que já vi citada duas vezes (“Se a Rússia parar, acaba a guerra; se a Ucrânia parar, acaba a Ucrânia”), só esta última parte é verdadeira: se a Rússia parar, nem assim acaba a guerra.
3 Vêm aí os célebres radares de velocidade média, a última invenção da Prevenção Rodoviária Portuguesa para fazer do uso do carro um negócio de extorsão pública ainda mais assanhado do que já o é. Se estivessem antes empenhados em tornar as estradas mais seguras, conforme é sua obrigação primeira, eu poderia indicar-lhes centenas de locais onde a sinalização ou a falta dela é um convite ao acidente. Mas é mais rentável instalar um radar na A6, por exemplo, onde em 90% do tempo o único perigo é adormecer ao volante.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Não é surpresa para mim a reação de parte da direita face ao Chega, sobretudo agora que tem um grupo parlamentar numeroso na Assembleia da República. Não me surpreende porque as mesmas pessoas que se dedicam à senda de normalizar (ou mesmo defender) a extrema-direita estão somente a replicar, tal qual, a reação que tiveram com a eleição e presidência de Donald Trump. Recordo-me bem destes tempos: foi com profundo horror que assisti à satisfação com o fenómeno Trump de pessoas que considerava politicamente próximas e, enfim, decentes.
Sabemos bem que a presidência Trump descambou numa tentativa de golpe de estado (atabalhoada, violenta e incompetente, é certo) com o objetivo de subverter resultados de eleições. Mostrando que os ataques à democracia da extrema-direita não são mera fanfarronice, mas incompatibilidade real com a convivência democrática. Os normalizadores do Chega sabem-no igualmente, e ainda assim persistem em repetir os pecados da direita americana. Não os devemos considerar inocentes e distraídos agentes políticos.
As tentativas de normalização e relativização do Chega são narrativas que vão em várias linhas, todas muito sonsas. Porque a direita que promove o Chega não quer assumir que o promove e que, na verdade, não se incomoda com nada que o partido propõe e representa. Quer manter a pertença à sociedade civilizada e polida enquanto age para abrir as portas ao mundo das cavernas.
A primeira narrativa de promoção, relativização e normalização do Chega é dirigida aos que se opõem com vigor ao Chega. Não é que o Chega seja coisa boa e de aroma floral e refrescante. Nada disso. É tudo péssimo. Uns grunhos do pior. Sucede que, infelizmente, os opositores do Chega são bem mais malvados. Maus, maus, mesmo retintamente maus são os socialistas e a esquerda no geral. Desses, sim, vem o verdadeiro perigo para a democracia. Mesmo a esquerda moderada, centrista, que governa com as contas públicas mais controladas da democracia é semelhante a Mao Zedong nos seus tempos de alucinação da Revolução Cultural. Pelo menos. Uns protocomunistas impenitentes, todos corruptos ou, no mínimo, cúmplices de corrupção. Perante isto, estas sensíveis almas veem-se obrigadas a ficar ao lado do Chega para combater o mal absoluto que é o socialismo. Não é que gostem, estão a ver? Lá agora. Mas o Chega é a inconveniência menor contra o perigo vermelho que vai destruir o nosso modo de vida.
Curiosamente (ou não), as críticas ferozes e virulentas que oferecem à esquerda nunca encontram simétrico em críticas (que não fazem) ao Chega. O partido é muito mau, claro, mas de forma difusa, nunca concretizada. A indignação que oferecem à aleivosa esquerda nunca é replicada para o Chega, que é, no máximo, admoestado afetuosamente como se de uma criança endiabrada se tratasse.
A segunda narrativa é novamente dirigida aos opositores daquele produto político tóxico. Péssimo, o Chega, estamos de acordo. Mas tenham paciência, fiquem lá calados, não protestem, porque qualquer contestação só serve para o Chega se vitimizar e beneficia-o. Portanto – querem fazer-nos acreditar estas luminárias da direita – temos de estar em silêncio para derrotar o Chega. Falar, protestar, denunciar, contrariar isso tudo só serve para lhes dar pontos.
O argumento é tão tonto que custa a acreditar como é feito por pessoas com ligações significantes aos partidos políticos de direita ou opinadores conhecidos que, supostamente, querem o seu nome respeitado. Pretende fazer crer que a forma eficaz de combater a extrema-direita é deixar o Chega propor as suas enormidades sem oposição. Tratar com extrema deferência e tolerância, e ademais de forma muito institucional, um partido que diz ser antissistema e almeja destruir o sistema. Porque, supostamente, tudo o que não seja facilitar a vida ao Chega rega-lhe e faz crescer o eleitorado. Combater o Chega é, garantem-nos, responder com silêncio às enormidades que crescentemente virão daquele partido. Deixar as suas propostas sem contraposição veemente.
Obviamente pretendem condicionar e calar quem se opõe ao Chega. E permitir a este partido não ser trucidado pela opinião pública, bem como deixar as calamidades que propõem passar como se de propostas normais se tratassem – afinal ninguém rasga as vestes com elas. Mas, pronto, fica melhor no CV fingir.
As mesmíssimas pessoas esclarecidas que agora argumentam para calar quem se opõe ao Chega diziam ser erros tremendos o ressurgimento do feminismo para responder aos ataques aos direitos das mulheres que Trump e aliados praticavam diariamente, o acicatar dos movimentos antirracistas perante a deflagrada retórica racista e por aí em diante com quaisquer contestatários. Nada de protestar contra eventuais tiradas ofensivas de Trump, porque ver os democratas, as mulheres e os negros de cabeça arrebitada e voz projetada espicaçava muito potenciais eleitores trumpistas que correriam a votar só para contrariar os contestatários. Viu-se.
A terceira narrativa de promoção, relativização e normalização do Chega vai na linha de dizer que temos de respeitar os eleitores do Chega e não devemos menorizar os seus deputados eleitos. Pobres dos eleitores do Chega, que estão cheios de zangas justificadas com a vida (sobretudo os das zonas endinheiradas de Cascais) e nós temos de respeitar muito estes estados de espírito. Claro que as mulheres, os imigrantes, os ciganos, os negros, os que recebem RSI, enfim, todos os alvos dos ataques torpes do Chega não merecem semelhante solidariedade e compreensão. Esses (regressemos aos parágrafos anteriores) devem ter paciência e permanecer calados. E oferecendo respeito a quem lhes quer suprimir os direitos, se faz favor. Do mesmo modo, a qualidade de todos os deputados pode ser posta em causa (desde logo pela extrema-direita), porém não se pode reputar de menos que intelectualmente brilhantes e tremendas boas pessoas os eleitos pelo Chega, entenderam?
O manual para normalizar a extrema-direita está em uso desde os tempos de Trump. A única novidade é termos cá pessoas dos partidos ditos de direita democrática tomando as dores do Chega, partido que nem sequer é o seu, para o defender dos mauzões da esquerda. A IL em peso tomou para si a causa da eleição de um vice-presidente da Assembleia da República do Chega. Pessoas do PSD (e do defunto CDS) igualmente. Bom, é uma tomada de posição ideológica, política, de escolha de lados. Fica anotado.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico