O combate político é um combate

(José Vítor Malheiros, in Público, 01/09/2015)

José Vítor Malheiros

José Vítor Malheiros

A lata do homem que mais portugueses atirou para a pobreza não tem limites, a sua falta de vergonha é abissal, o seu decoro inexistente.


É possível amalgamar quase tudo, apresentar propostas que são mantas de retalhos de ideias contraditórias, apresentar propostas que nem são propostas mas apenas postas, fazer discursos que são sopas de pedra onde se juntam ingredientes à medida das assistências, atirar ao ar frases soltas de efeito fácil para repetição nos jornais e passagem nas televisões, prometer mundos e fundos, manipular as estatísticas, mentir descaradamente e jurar pela virgem Maria que nunca se disse outra coisa, dizer que agora é que é, que os outros são piores, que os outros são o demo, sorrir para parecer simpático, fazer ar sério para parecer honesto, acenar para parecer popular, tirar a gravata para parecer modesto, pôr a gravata para parecer ponderado. As campanhas e pré-campanhas eleitorais são férteis nisto. São quase só isto. Quem ouça e veja com atenção o que dizem e fazem os políticos do costume em campanha e se atenha a algo mais que os gritos e as bandeiras e os sorrisos e os beijos aos bebés e os olhares às mamãs corre o sério risco de uma indigestão, de uma congestão, de uma apoplexia.

Os partidos são todos assim? Não. Os políticos são todos assim? Não. As campanhas são todas assim? Não. Mas a campanha eleitoral que vemos na televisão é (com as intervenções dos membros do Governo à cabeça) e, para a esmagadora maioria dos portugueses, essa é a campanha eleitoral. A campanha eleitoral do “arco da governação”, seguindo a lógica da Quadratura do Círculo, onde o círculo nem sequer é quadrado mas apenas um triângulo com o PSD, o CDS e o PS como lados. Não houvesse Pacheco Pereira na Quadratura do Círculo e o programa seria o melhor exemplo de manipulação da opinião pública desde que a Fox News começou as emissões. E, nas campanhas eleitorais, não está o Pacheco Pereira.

A campanha das televisões — mesmo com os debates anunciados— será a gigantesca lavagem ao cérebro do Portugal à Frente e o número de equilibrismo da obsessão centrista de António Costa.

As campanhas eleitorais têm uma perversidade intrínseca. Tem vantagem quem mais mente e quem tem maior descaramento. Tudo seria diferente se os media fizessem um papel de verdadeira fiscalização dos poderes, mas os media consideram que publicar um texto ou fazer um programa de fact-checking das aldrabices do PSD e do CDS é uma “reportagem especial” e não a sua razão de ser. É como se o Nicola decidisse que servir café é algo para fazer apenas nos dias feriados.

Um dos problemas da falta de escrúpulo da campanha do PAF e da navegação prudentíssima da campanha do PS é que se tornam indistinguíveis. Passos Coelho chegou agora ao cúmulo de erigir o combate às desigualdades como um dos objectivos de um futuro governo PAF e de garantir que esse sempre foi uma das preocupações do actual Governo. A lata do homem que mais portugueses atirou para a pobreza não tem limites, a sua falta de vergonha é abissal, o seu decoro inexistente. Mas quem o dirá com a veemência que o facto exige?

A campanha eleitoral  cirurgicamente podada pelas televisões das intervenções à esquerda do PS —, que devia ser o local do choque ideológico e do debate de políticas, torna-se o lugar da amálgama morna, sem confronto de políticas alternativas, um choque de imagens onde apenas se pode comentar o sorriso dos oradores, onde cada vez mais se repete que a diferença entre esquerda e direita é uma coisa antiquada que “deixou de fazer sentido”.

A declaração é um dos bons exemplos da manipulação ideológica actual. Uma declaração pretensamente “equidistante dos extremos” que é de facto um grito de batalha, que visa convencer os eleitores de que a “boa governação” não tem cor política e convencer as massas a abdicar da luta de classes e de lutar pelos seus direitos.

Um dos sinais dos tempos no actual combate político, nesta campanha onde Passos Coelho se recém-arvorou em campeão da igualdade, é a ausência dos pobres. Os pobres sempre foram invisíveis mas nunca foram tão invisíveis.

Os desempregados conhecem todos os dias novas indignidades nas bichas dos centros de emprego, nas lojas onde não podem comprar nada. Os velhos e doentes nem sequer podem ocupar a rua, o último lugar do poder. Os remediados degradados para novos pobres aguentam a respiração e tentam adaptar-se à humilhação, tentando passar despercebidos. A responsabilidade da política deveria ser destruir este silêncio, que rouba aos que nada têm a soberania que é sua, devolver a voz aos que não falam, combater a iniquidade, mas a campanha eleitoral, desideologizada, higienizada, soundbitizada, receia fazer aparecer a luta de classes  e isso acontece mesmo à esquerda. Receia parecer radical, mesmo quando a direita lança uma guerra sem quartel aos velhos, aos pobres e aos doentes através dos cortes na saúde e na segurança social. Mas o combate político não é uma valsa. O combate político é um combate, para o qual só poderemos mobilizar vontades com clareza nos objectivos e audácia nas propostas.

Candidato independente às eleições legislativas pela coligação cidadã Livre/Tempo  de Avançar (jvmalheiros@gmail.com)

A fuga de capitais como instrumento da conquista moderna

(José Vítor Malheiros, in Público, 28/07/2015)

José Vítor Malheiros

  José Vítor Malheiros

A corrida aos depósitos bancários, que a União Europeia incentivou na Grécia, é apenas mais uma arma da guerra europeia.


1. Mesmo sem saber tudo, temos hoje uma boa ideia do ambiente das negociações que levaram ao terceiro empréstimo da troika à Grécia e dos argumentos que estiveram em cima da mesa. Sabemos que a discussão não foi uma civilizada troca de argumentos mas uma operação de coacção à boa maneira mafiosa, com a reiterada exposição de um catálogo de ameaças feitas à Grécia pelos “parceiros”.

Sabemos que a negociação não foi um jogo de cedências mútuas, mas algo que um dos participantes comparou a uma sessão de tortura. E sabemos, explicadas por Tsipras, as razões fundamentais que fizeram com que o primeiro-ministro grego não desse o famoso murro na mesa e batesse com a porta, mas acabasse por dizer “nai” às propostas a que uma significativa maioria de gregos tinha acabado de gritar “oxi” nas ruas e nas urnas. Antes de mais, o mandato: Tsipras acha que não tinha mandato para bater com a porta porque os gregos, maioritariamente, num exemplo de distorção cognitiva que ficará para a história, não querem sair do euro. Depois, a realidade: a Grécia não tinha (não tem) nem euros nem moeda estrangeira que permitisse criar uma almofada, por mínima que fosse, para garantir as necessárias compras ao estrangeiro.

Mas há uma outra razão, de não menor peso, que foi referida por Tsipras mas pouco aparece na imprensa internacional: a fuga de capitais da Grécia nos últimos cinco anos, que está calculada em 250 mil milhões de euros. O problema não é só o facto de o dinheiro não estar nos bancos gregos e não poder alimentar o investimento de que a Grécia precisa. O problema é que, num cenário de saída do euro e violenta desvalorização de uma futura moeda grega – há estimativas de 50% – este capital poderia regressar em força à Grécia para comprar tudo o que tivesse valor e adquirir, no cenário de escassez e confusão que ocorreria nos primeiros meses do Grexit, uma influência desmesurada, equivalente à que 500 mil milhões de euros poderiam conferir hoje. Uma invasão não pelo ar nem pelo mar nem por terra mas “por euro”.

Esta particular fuga de capitais – não apenas a preocupação dos detentores do capital em pô-lo a bom recato para evitar uma eventual desvalorização ou mesmo o seu confisco, mas o seu estacionamento num porto de abrigo para regressar com força redobrada para pilhar o que estiver à mão — é algo a ter em conta. Devido a este fenómeno, uma saída do euro pode ter como consequência um movimento de brutal concentração do capital nas mãos das pessoas que tenham a capacidade para o exportar previamente.

2. A fuga de capitais da Grécia não é um normal fruto da crise do euro. Ao contrário, ela foi activamente estimulada ao longo dos últimos meses (desde a eleição do Syriza) e mesmo antes (desde o crescimento do Syriza) por uma campanha internacional orquestrada que tentou espalhar o medo entre os pequenos e grandes depositantes e investidores convencendo-os de que as suas poupanças e investimentos não estariam seguros numa Grécia governada à esquerda. Basta reler as declarações nas últimas semanas de dirigentes da UE, políticos europeus de todos os costados e analistas diversos, constantemente “alertando” para a possibilidade, conveniência ou inevitabilidade de o governo grego impor um controlo de capitais para perceber a mensagem subliminar.
Há um interessante artigo publicado no site do think-tank americano Peterson Institute for International Economics antes das eleições gregas de Junho de 2012, onde a direita receava um descalabro dos partidos tradicionais e uma enorme subida do Syriza, que tem como título, para quem não queira perceber: “How a Bank Run Can Be Part of the Solution” (“Como uma corrida aos bancos pode ser parte da solução”)

Aí se escreve, preto no branco: “Qualquer pessoa que queira manter a Grécia no euro deve retirar o seu dinheiro dos bancos. Ainda que os políticos que são a favor do programa do FMI provavelmente vão ficar calados, o PASOK e a Nova Democracia deviam de facto encorajar a corrida aos bancos. Podiam, por exemplo, publicar no YouTube as imagens das filas às portas dos bancos para tornar a mensagem mais clara!”

E, mais à frente: “O exemplo da Grécia ilustrou um novo factor: o facto de a ameaça de uma corrida aos bancos acontecer em qualquer país que esteja a considerar sair do euro actua como o equivalente de um ataque nuclear preventivo sobre as forças políticas que defendam essa saída. Devido ao exemplo grego, os populistas em toda a zona euro acordaram para uma nova realidade política: serão acusados de uma destruidora corrida aos depósitos se prosseguirem as suas estratégias de saída do euro.”

O autor deste texto, Jacob Funk Kirkegaard, que esteve em Portugal numa conferência que teve lugar na Assembleia da República sobre dívida pública em Dezembro de 2014, é particularmente brutal, mas declarações deste tipo, às vezes suavizadas por um verniz pseudo-democrático, foram feitas a partir de Bruxelas centenas de vezes nos últimos meses por políticos de diversos quadrantes.