Da importância da música para pastores e domadores 

(Por Carlos Matos Gomes, in Jornal Tornado, 29/10/2018)

A questão do uso da razão impõe aos intelectuais eficazes um problema muito sério. Para serem eficazes, como actualmente são Trump, Bolsonaro, ou o bispo Macedo têm de se castrarem de um elemento que os intelectuais clássicos costumam prezar: a moral. O intelectual clássico apresenta-se às massas como alguém que utiliza os seus dons de inteligência para o bem delas, foi o caso de Aristóteles, de santo Agostinho, de Hobbes, de Kant. Esses são os derrotados, como Francisco de Assis, que acabou a falar aos peixes. Os intelectuais vitoriosos são os que se despojaram da moral. Os casos mais próximos e à mão são os que ganharam eleições na América, no Brasil, na Itália, são os que inventaram igrejas e deuses-mealheiro. Na realidade esses são os intelectuais eficazes, de grande sucesso, os que sabem tocar a flauta de Hamelin e levar os ratos atrás de si.

Aquilo que hoje define um intelectual não é que reflicta sobre o conflito e o compromisso, mas que saiba tocar a música de levar os ratos a atirarem-se aos abismo a cantar, ou a sambar.


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O drama do fim de férias

.(José Pacheco Pereira, in Sábado, 02/09/2016)

Autor

                     Pacheco Pereira

Poucos dias podem ser mais infelizes do que os últimos dias de Agosto. Ainda são Agosto, ou seja, para a maioria das pessoas, são férias, e já são os últimos, ou seja, anunciam o trabalho. Como o ciclo de vida das pessoas é cada vez mais feito pelos media, ou melhor, por uma combinação entre o que dá na televisão, o que aparece e se discute nas “redes sociais” (que acaba também por ir parar à televisão), e em muito menor grau, o que aparece nos jornais, principalmente no Correio da Manhã (e que acaba também por ir parar à televisão), há uma simbiose profunda entre a “produção de estados de alma” e o consumo desses mesmos “estados de alma”.

A agenda da silly season
A agenda que molda estes últimos dias de Verão ajuda à depressão. Ela é uma forma de síndroma de abstinência, é a difícil saída dos media de uma coisa de que particularmente gostam, a silly season. Como o futebol pára, não há muita política e a que há é demasiado ritual para ter interesse, está toda a gente a banhos, as redacções entregues ao pessoal menor – em bom rigor se fosse ao “maior” era a mesma coisa –, resta a agenda de Agosto que é a mais estereotipada de todas as agendas dos media: incêndios, saída das cidades para férias, retorno do fim das férias, operações da GNR, prevenções da PSP quanto aos roubos nas casas vazias, vinda dos emigrantes, ida dos emigrantes, e muita praia sob todos os pretextos.

A construção da silly season
A partir daqui constrói-se a silly season, que pode ser mais ou menos animada. A silly season é feita por uma combinação de “casos”, crimes, acidentes, catástrofes, para o exercício de uma coisa que a televisão faz muito bem, a masturbação da dor. Este ano tivemos os incêndios, o terramoto em Itália, o espancamento de um jovem por dois irmãos iraquianos, as imagens do rapazinho sírio, e mais uns crimes avulsos, mais ou menos espectaculares, com destaque para o assassinato de umas jovens brasileiras, com o detalhe “gore” de terem sido deitadas numa fossa. O pano de fundo, o cenário, são as “férias dos famosos”, a mais inútil manifestação da silly season, que funciona como a imagem inicial do ecrã dos telemóveis.

São tudo notícias?
São tudo notícias? Seriam tudo notícias se tivessem sido dadas como notícias e não como entretenimento. Num caso, a história e as imagens que correram o mundo do rapaz sírio, que tudo indica ser mais uma das múltiplas manipulações oriundas da Síria, sobre as quais não há qualquer verificação independente, mas que, quando aparecem, ninguém quer saber e é só esperar até à próxima.

São tudo notícias? Seriam. Ao serem dadas como entretenimento, com os longos directos inúteis, com a exploração de declarações mais ou menos exibicionistas do género “eu não vi , mas foi o que me disseram”, com o tratamento das imagens, a mais “poderosa” manipulação que há, os media são nestes meses a maior contribuição para o embrutecimento colectivo. Os media e o Sol a pique. E como já há bastante, bem se podia evitar esta dose. Infelizmente, como quase sempre acontece, ela é oferecida também porque é desejada, numa simbiose de produto e consumo, que inclui uma dose considerável de dopagem, de habituação e de “agarramento”.

Embrutecer
Quando se passa em Agosto por uma festa popular, podemos encontrar mil e uma coisas boas, mas há também uma dose considerável de boçalidade, de rudeza, de má educação, de péssimos costumes de egoísmo, pura procura de auto-satisfação imediata, de violência à flor da pele, de embriaguez, que começa nos adolescentes e continua nos adultos que já os fizeram à sua imagem e semelhança. Assim, como se dizia antes, não se anda para a frente.

E se há uma coisa para que não tenho paciência é para a desculpa de que “lá está o intelectual que não participa nos prazeres simples do povo”. Tretas! Conheço um número considerável de intelectuais que acha tudo isto muito bem, que justifica tudo o que se passa e teoriza o bastante para legitimar tudo o que acontece. Não sou dessa escola, e sempre achei que o pior que se pode fazer ao “povo” é puxá-lo para baixo em vez de o tratar com a igualdade de o desejar mais “acima”, que é aliás o que qualquer pessoa decente, seja qual for a sua educação, modo de vida e profissão, deseja para si e para os seus.

O que se passa neste infeliz País é que há demasiadas coisas a puxar para “baixo” ou a travar o caminho para cima. E como se passa sempre nestes casos não faltam pessoas, muitas por interesse ou elitismo – isso sim verdadeiro elitismo –, a ajudar a manter o estado de coisas.

Aqui, como em muitas outras matérias, há também uma “luta de classes” latente, que encontra um “ópio” (e uso deliberadamente uma das expressões mais viciadas que há) neste embrutecimento colectivo. Com uma classe média a afundar-se na proletarização, dificilmente seria de outra maneira. Mas não há problema, vem aí o futebol…

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Que enigma labiríntico é Pacheco Pereira?

(Jorge Castro Guedes, in Público, 17/06/2016)

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Nota prévia: Como publico a maioria dos textos que Pacheco Pereira vai produzindo, desde o início da Estátua de Sal,  não poderia deixar de publicar também este, no qual o autor tenta responder a questões que eu mesmo já variadas vezes coloquei a mim próprio. As respostas que ele dá, subscrevo-as em grande medida. Aqui fica, com especial dedicatória ao José Neves, que é o crítico de serviço aos textos do JPP que aqui vão sendo reproduzidos. (Estátua de Sal, 18/06/2016)



Tenho dado por mim a interrogar-me por que será que cada vez me identifico mais vezes com o que este homem diz. Será porque ele girou 180 graus? Ou girei eu?… Não me parece. Claro que, como tudo no Mundo, ambos devemos ter girado alguns graus. Mas nem sempre, necessariamente, no sentido de uma aproximação.

Então porquê? Qual será a principal razão?

Também sei que não é por qualquer tipo de tacticismo político dentro de mim. Se o fosse, eu não estaria, certamente, a entrar N vezes em rota de colisão frontal, e violenta, com as “esquerdas”. Mesmo que isso não signifique a mais remota possibilidade de aproximação a estas “direitas” que temos (e não só em Portugal). E talvez seja por isto mesmo que cada vez mais me delicio quando dou conta que estou a pensar com ele. Nem sempre como ele. Mas com a possibilidade de partilhar do pensamento de outro. De um outro que pensa fora do mainstream do politicamente correcto, contrariando mesmo um certo (supostamente) à margem, que é o ramalhete que decora o próprio status quo.

Por acaso – por acaso, como quem diz – é de Pacheco Pereira que estou a falar. Mas poderia (dificilmente no panorama real) ser de uma outra singularidade intelectual numa zona – a dos intelectuais – que fazem o percurso inverso das gerações que os antecederam. Com ou sem razão, às vezes a extremos de práticas profundamente chocantes e, hoje, seguramente condenáveis, eles, que tantas vezes se enganaram (tragicamente o caso dos comunistas com Estaline), representavam verdadeiramente uma consciência do Mundo. Enquanto o sentido centrípeto deste sistema de ideias (travestidas de “pragmas”) os atrai para a ribalta e/ou para o medo de serem confundidos como herdeiros do que já ruiu. Mas não cuidam de saber, de se interrogar, se amanhã não são eles os verdadeiros herdeiros históricos – não ideológicos – dos outros. Ou seja: os que perdem de vista a capacidade crítica para aceitar o inaceitável, mesmo que condicionado pelo ar de época, e se substituem na ideação de um Fim da História, ainda por cima determinista.

Sem complexos, medos ou maravilhamentos, vendo o lado subjectivo da coisa, Pacheco Pereira já exorcizou fantasmas: foi marxista-leninista-maoista (convictamente, penso) e foi (convictamente também, creio) um neoliberal, com ou sem rótulo autocolante. Mas como o que foi – e é – não se atém a estes, não vive no terror de lhe descobrirem o passado ideologicamente criminoso, nem de ter de se justificar dele: seja um ou o outro. Porquê? Ora, exactamente porque o que foi, ou o que é, resulta de pensamento próprio e não de afiliação na marcha da História… Quando, como o próprio diz, a História, afinal, é do que de mais caótico há. Mesmo que se lhe possam aplicar assimptotas, direi eu por mim, não é inteligente tomá-las por leis. Muito menos quando, mesmo ao nível das ciências exactas, a Física Quântica veio estoirar com todos os determinismos.

Julgo que é por isto tudo que, tal como, outrora, certos pensadores, foram tidos como faróis da Humanidade no meio de uma escuridão em que nada se via, a atitude crítica genuína deste homem é a sombra necessária para descansar de um caleidoscópio de sóis artificiais que nos atordoam e cegam. Nele, uma ideia não é reduzida a um sound-byte, nem as sinapses que a originam residem num bit, como uma combinação binária de dois neurónios apenas. Mesmo quando produz um sound-byte, este resulta de uma síntese de algo mais do que os cinco minutos de fama de que Warhol falava. Não creio que Pacheco Pereira corra atrás dos holofotes. Se alguma coisa o atrai na passerelle mediática é percorrer o caminho sem olhar qual a que terceiros desenrolaram à sua frente. Se assim não fosse não referiria Kackzinsky – independentemente da distância que dele tenha – sem receio de interrogar a civilização tecno-industrial. Nem teria, há bastantes anos já, feito a evocação de um adversário político de juventude, mais ou menos desconhecido, de quem a própria família ideológica se esquece: Francisco Sardo.

Isto não é um elogio a Pacheco Pereira, nem sou pacheco-pereirista: coisa que, felizmente, o seu pensamento inesperado não permite ser-se. Aliás, se escarafunchar bem, é provável que sejam mais as ideias que nos separam do que as que nos juntam. Mas junto-me a elas – ou junto-me nelas – porque se tornaram fruto raro da árvore chamada Pensamento, assim com P grande e tudo.

Afinal, não é ele um enigma, nem um labirinto. Enigmático labirinto é este, em que nos meteram em sucessivas little boxes, que Seeger glosava na sua canção.

Encenador, castroguedes9@gmail.com