Rajoy vai prender metade dos catalães? 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/03/2018)

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Daniel Oliveira

Já critiquei várias vezes a utilização exclusiva de argumentos legalistas no debate sobre o que se está a passar na Catalunha. Muitos leem esta crítica como um desprezo pela lei e pela Constituição espanholas, recordando que a democracia também é processo. É neste argumento que Rajoy tem apostado: sem a lei, teremos o caos. O equivoco é não se perceber que a lei não antecede a política. Ela é política. É feita por políticos em determinados contextos políticos. E se a lei cria um beco sem saída ela torna-se num problema político. E o problema da lei espanhola é o de criminalizar o independentismo num Estado cuja maioria, constituída por uma das nacionalidades, se recusa a aceitar a sua natureza plurinacional.

Há duas formas de resolver isto: ou por via política, negociando e procurando um ponto de equilíbrio comum (foi o que Zapatero tentou e Rajoy boicotou); ou através da criminalização da dissidência e da judicialização da política. Este foi o caminho que Rajoy seguiu e que está a levar Espanha a atravessar fronteiras bastante perigosas.

Vários exílios depois, vários governos impedidos de tomar posse através de meios judiciais depois, muitas prisões depois, resta apenas a pergunta: pretende Rajoy prender metade dos catalães?

Já todos perdemos a conta aos detidos e exilados da cúpula política catalã. Os dois principais partidos da maioria independentista (PDeCAT e ERC) têm as suas lideranças decapitadas. A cada nome que surge como possível solução política, sucede-se uma detenção a que corresponde sempre um crime que tem uma natureza essencialmente política. Tudo isto depois da dissolução de um parlamento, de novas eleições e da renovação de uma maioria independentista. A continuação da linha justicialista não resulta de qualquer automatismo imparável, foi a resposta do Estado de Espanha a uma derrota eleitoral com que não contava. Até porque a Procuradoria-Geral, que responde ao governo de Madrid, tem tido um papel central em toda a judicialização deste processo.

A prisão de Puigdemont pela polícia alemã é mais um prego no caixão da democracia espanhola. Sobretudo quando se sabe que um dos argumentos de Madrid para defender a extradição é o crime de rebelião (não está na lista de delitos europeus que tornam a entrega mais fácil mas está no Código Penal alemão), que implica a utilização de violência.

Qual violência? A que provocou lesões a polícias durante o referendo de 1 de outubro, quando cargas policiais deixaram mais de mil catalães feridos, entre eles os que apenas tentavam pacificamente manter abertas as mesas de voto. Isto deixa claro que já não é da aplicação da lei que estamos a falar, é da utilização da lei, torcendo-a se necessário, para reprimir um processo político e prender toda a cúpula independentista.

Vários exílios depois, vários governos impedidos de tomar posse através de meios judiciais depois, muitas prisões depois, resta a pergunta: pretende Mariano Rajoy prender metade dos catalães? Indisponível para retomar uma negociação com vista ao aprofundamento das autonomias, o presidente do governo espanhol começa agora a puxar a Europa para a sua espiral de loucura. Não tem nada a perder. Na Catalunha, o seu partido é um grupelho irrelevante. E na direita castelhana dar porrada em catalães é coisa que rende votos. Rajoy é um líder fraco, sem carisma, irresponsável e desesperadamente agarrado ao poder. Está disposto a tudo. Incluindo, se necessário for, a tornar a unidade de Espanha numa impossibilidade futura.

Apesar dos insistentes apelos de Madrid para que optem pela via da violência, para assim se poder esmagar pela força qualquer sentimento independentista, os catalães têm sabido resistir a isso. Continuam, ao contrário do governo de Madrid, a ficar-se pela resistência política respaldada no voto democrático. É impossível, perante a evidente agenda política das várias prisões organizadas de modo a impedir qualquer solução democrática de governo na Catalunha, continuar tudo a fingir que estamos perante um processo judicial. E todos os movimentos independentistas ou autonómicos por essa Europa fora estão a receber o recado: não vale a pena seguir a linha democrática e política, serão sempre tratados como criminosos. E assim sendo…

Em tempo de guerra, não se limpam as armas?

(Francisco Louçã, in Público, 22/12/2017)

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Os factos são muito teimosos. As eleições na Catalunha deram uma maioria confortável aos partidos cujos dirigentes estão presos ou fora do país, mesmo depois de uma vaga repressiva com a convocação de milhares de guardas civis para impedirem um referendo, a dissolução das autoridades eleitas, a prisão de responsáveis de associações e de governantes e a proibição de, sendo candidatos, participarem na campanha eleitoral. Esse resultado é impressionante e demonstra que o desafio catalão beneficiou de Rajoy.

Esperava Rajoy, que passou a campanha na Catalunha, que o medo destroçasse os independentistas e que o aumento de votação, para uns espantosos 82%, levantasse as cores espanholistas. O resultado não é só um desastre para o seu PP (de 19 deputados em 2012 para 3), mas para os partidos unionistas, que ficam só com 57 deputados contra os 70 independentistas. Arrimadas, coqueluche da nova direita, clama que os seus 25% demonstram que tem a maioria, mas o entusiasmo não substitui a realidade. O facto teimoso é que, mesmo que os deputados presos e exilados não sejam autorizados a vir votar ao parlamento, e mesmo que a CUP não chegue a acordo com os partidos independentistas de centro e de direita, Puidgemont pode ainda assim ser eleito presidente do governo.

O efeito Rajoy foi este: para ocultar a crise judicial do seu partido, acusado de corrupção, desencadeou uma tempestade cujo resultado foi reafirmar o independentismo catalão, que estava mal preparado, sem estratégia e sem plano, mas que passou a mobilizar o sentimento da revolta democrática. Além disso, conseguiu fazer crescer a solução republicana contra os partidos monárquicos.

Não é esse imbróglio, no entanto, o tema desta crónica. O que venho discutir é o princípio de que, em guerra, não se limpam as armas e, em particular, qual foi o papel da imprensa nesta guerriúncula. Veja o seguinte exemplo: o editorial do El Pais, um dos mais importantes jornais de Espanha, perante os resultados de ontem, afirma que “O PS, estável, e os Comunes (Podemos) muito em baixa, pagam o preço dos seus moderantismos e ambiguidades. E o PP de Rajoy recolhe o pior resultado: algo que sem dúvida terá consequências na política nacional”. Os leitores notarão a contradição: esta análise afirma que dois partidos caem porque eram ambíguos e o outro cai ainda mais, mas não era ambíguo. Vale tudo e o seu contrário.

Mas o mais importante é o que foi dizendo o próprio El Pais ao longo desta crise, porque nunca foi ambíguo. O jornal decidiu tomar a mesma atitude que a imprensa tomou em cada país durante a segunda guerra mundial: só interestitulossa a propaganda militar. Ou, já agora, durante a guerra civil espanhola: estar num campo é fazer a apologia dos seus chefes. O El Pais, como outra imprensa espanhola, tornou-se uma arma de guerra, com editoriais inflamados, apoio aos juízes que determinavam a prisão e suspeitas sobre os que hesitavam, pressão sobre o PSOE, cronistas desexpressoembestados como Vargas Llosa, defesa do discurso do rei, promoção das campanhas de Rajoy e de Arrimadas. Correu mal.

Mas o problema de fundo é a própria concepção da função da imprensa. E a questão é também portuguesa, na escala da escaramuçazinha. Lembre-se de que, quando o parlamento terminou os duodécimos que substituíam o subsídio de Natal, os títulos foram “Salário desce em janeiro” e “fim dos duodécimos encolhe salários até 90 euros”, quando o salário total pago é exactamente o mesmo. Imprensa de guerrilha. Ou a capa do Expresso na semana em que a Fitch retirou Portugal do “lixo”: “Metade das casas (em Pedrógão) está por construir” (a boa notícia é que metade já está pronta?). Imprensa de guerrilha. Só pode correr mal.

Prendam esses cães malditos

(Francisco Louçã, in Público, 08/11/2017)

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“Lisboa, tantos de tal de 2014 – A crise política portuguesa ganhou novos contornos quando o PSD e CDS emitiram hoje um comunicado conjunto considerando que a prisão sem fiança de Passos Coelho, Assunção Cristas e outros ministros os constituía como ‘presos políticos’. Como é sabido, o tribunal aceitou a diligência do procurador Silva, que acusa os governantes de ‘associação delinquente’, logo depois do seu quarto orçamento retificativo ter sido considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no que respeita ao corte de pensões a pagamento. O magistrado queixou-se de não haver na ordem jurídica a figura de ‘traição à Pátria’ e explicou que só por isso usou a acusação de ‘conspiração’ para ‘defraudar os pensionistas e subtrair-lhes parte da sua pensão’, considerando que, se todos os orçamentos procuraram o mesmo objectivo, ‘conspiração’ é o termo adequado, não havendo a comparável figura da ‘sedição’ da lei espanhola. O pretendente a rei de Portugal condenou no Facebook a forma contumaz de procedimento do governo agora demitido. O governo de Madrid também emitiu um comunicado apoiando a decisão do tribunal português.”

Antes de pensar em manifestar-se contra qualquer coisa, seja a sobreposição da justiça ao resultado eleitoral legítimo, seja a perseguição aos dirigentes da direita por delito de opinião, seja a utilização do processo judicial para resolver questões políticas, atente o leitor que este despacho noticioso nunca poderia existir em Portugal. De facto, os pesos e contrabalanços têm funcionado: enquanto o governo PSD-CDS aplicavam as medidas da troika, parlamentares e mesmo o presidente então em funções enviaram algumas das disposições do Orçamento para apreciação pelo Tribunal Constitucional (e ganharam sempre). Mas as declarações de inconstitucionalidade – mesmo que repetidas, quase sempre para avaliarem medidas com o mesmo objectivo, cortar pensões – só forçaram à correcção dessas medidas do Orçamento. Não houve prisão dos membros do governo, que aliás continuariam nos orçamentos seguintes a buscar o mesmo desígnio. A declaração de inconstitucionalidade pelo respectivo Tribunal é em Portugal uma forma de verificação do exercício dos poderes, não uma forma de instigar a perseguição aos governantes pelos seus actos ou opiniões.

Em Espanha parece haver um entendimento diferente. Membros do governo catalão estão presos e os parlamentares que votaram uma resolução, depois considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, podem também vir a ser presos. Alguns ministros, apesar de se terem apresentado voluntariamente em tribunal, ao contrário de Puigdemont, aguardam julgamento em cárcere. Teremos portanto eleições com alguns dos principais candidatos presos ou ameaçados de prisão.

Há em consequência dois efeitos nefastos desta estratégia repressiva. Um é a instrumentalização e partidarização da justiça, que se condena a si própria. A segunda é a amplificação do risco para Rajoy: se os independentistas ganham a eleição catalã (o PP de Rajoy é cotado em sondagens com menos de um terço do principal partido independentista), a política do tudo ou nada fica sem recuo possível. A haver um dia independência, é a Rajoy e ao rei que a Catalunha deve agradecer.

Slide1NB- O Correio da Manhã inclui semanalmente uma página de promoção do CDS, titulado pela sua líder sob a designação carinhosa de “Lisboa Menina e Moça”. A última edição inclui quatro fotografias da própria Assunção Cristas, além da que identifica a rubrica: no parlamento, na Câmara, na doca, no partido. Cinco fotos numa só página. Pergunto-me se o mais curioso é esse jornal patrocinar o CDS, ou se quem disso se aproveita preferir ingenuamente a sua própria imagem, espelho meu. Mas, que querem, caros leitores, é mesmo a vida.