A guerra do género

(António Guerreiro, in Público, 04/08/2017)

Guerreiro

António Guerreiro

No campo de batalha das ideias, o conceito de género é um pólo de hostilidades e deu origem a uma guerra que em Portugal eclodiu de maneira muito retardada, mas é hoje bem visível. Ela é justamente denominada “guerra do género”. Porque é que há tanta gente que não aceita a substituição da palavra “sexo” pela palavra “género” e faz uma caricatura da teoria do género como pura ideologia, desqualificando-a como instrumento de análise?

Uma resposta breve dirá: porque esse neutro que é o género veio pôr em causa um modelo heurístico baseado nas oposições natureza/cultura e biológico/social. Segundo este modelo, o sexo está do lado da natureza e do biológico, enquanto o género está do lado do social e cultural, historicamente construído O triunfo do conceito de género sobre o sexo “natural” significaria uma vontade de submeter a natureza à ideologia e proceder à afirmação totalitária de um artifício. Este pensamento cristalizado não se reconhece a si mesmo como uma ideologia que de facto é. Em suma, é incapaz de perceber que também o sexo nunca teve nada de natural, nem sequer aquele a que nos referimos quando dizemos “fazer sexo”. A natureza tem as costas largas, como é sabido, e vem de longe a tendência para assentar nela os fundamentos de terríveis edifícios humanos. Os mais birrentos opositores do género (capazes de gritar como as crianças: “eu não tenho género, tenho sexo, provo-o já aqui a quem disser o contrário”), geralmente ainda estão numa fase anterior ao século XIX. Ferrenhos essencialistas, não querem aceitar uma dissociação entre os seres sexuados e as qualidades sexuais, isto é, vêem anomalias quando não há correspondência imediata entre as entidades mulher/homem e as qualidades feminino/masculino. E ainda mais dificuldade têm em aceitar que o género permita pensar para além do modelo binário dos dois sexos, mulheres e homens, e para além de dois géneros.

E no entanto há boas razões para submeter a teoria do género a alguma crítica. Só que essas razões não são as que os seus detractores, em geral, apresentam. O género é uma abstracção que pode esconder ou mascarar a realidade. Se dizemos “violência de género” estamos a usar uma designação que rasura o facto nada abstracto de se tratar de um tipo de violência exercida quase em exclusivo pelos homens sobre as mulheres. De igual modo, é pouco provável que o conceito de género, neutro como ele é, sirva com eficácia a luta contra a persistente dominação masculina e a discriminação de que as mulheres são vítimas no trabalho e na sociedade. Podemos esperar alguma eficácia na luta que se diz contra a “discriminação de género”? O conceito de género, enquanto instrumento mostra-se aqui muito esquivo. Como alguém disse, o “género” pode ser a árvore conceptual que esconde a floresta das “mulheres” na sua realidade, provocando um efeito contrário ao que era visado, na medida em que reproduz o que ele tinha como objectivo suprimir e esconde o que devia mostrar. A teoria do género veio assim reconfigurar o feminismo de uma maneira muito diferente daquele feminismo que teve o seu auge nos anos 70 do século passado. Não é que fosse ainda actualmente plausível e eficaz um feminismo decalcado do modelo da luta de classes. Mas, na verdade, é fácil perceber que o conceito de género não é facilmente transferível da região onde se constrói um campo de pensamento e se organiza o conhecimento para o plano pragmático. Só que estes argumentos pouco interessam aos detractores da teoria do género, obcecados que estão com as classificações — ideológicas em alto grau — que ditam o que é natural e o que é social.

Os homens fazem sexo, as mulheres fazem amor

Sandra Maximiano

                  Sandra Maximiano

(Sandra Maximiano, in Expresso, 09/05/2015)

Esta semana um amigo convida-me para dois dedos de conversa em sua casa. Horas antes, envia uma mensagem dizendo “tem em consideração que sou homem e vivo sozinho, por isso espera alguma desarrumação.” Ao chegar a sua casa a primeira coisa que me saltou à vista não foi a desarrumação, mas uma máquina de costura na bancada da cozinha, que usa para pequenas modificações na sua roupa.

Este meu amigo até pode costurar, lavar, limpar e desempenhar outras tarefas domésticas, como muitos homens do século XXI fazem, mas pressupõe que se fosse mulher teria a casa mais arrumada, ou pressupõe que eu o pressuponho. Mesmo quando não impomos uma divisão clara quanto aos papéis de género no nosso quotidiano, desempenhando tarefas que em geral estão associadas ao género oposto, sofremos de estereótipos ou assumimos que os outros os têm.

A existência de estereótipos é a principal causa para a baixa representatividade das mulheres em altos cargos da administração pública e empresarial e na política. Como o Expresso referiu (na edição de 25 de abril), em quatro décadas de democracia foram nomeados para funções governativas 1609 homens e apenas 127 mulheres.

A assertividade, competitividade, confiança, são ingredientes assumidamente necessários para uma liderança de sucesso e como são traços de personalidade associados aos homens, estes são considerados como líderes ideais. Em comparação, características tradicionalmente femininas, como afetividade, empatia, gentileza, são vistas como mais apropriadas para funções subordinadas e de apoio. Assim sendo, muitas mulheres para ascenderem a cargos de direção optam por uma masculinização da liderança e ao fazê-lo são criticadas e catalogadas como “homens de saias”.

Mas o conceito de uma liderança eficaz está a mudar, em parte produto da crise financeira de 2008 que alterou a estrutura organizacional das empresas, tornando-as menos hierárquicas, mais baseadas no trabalho de equipa e na interação. Assim, ambos os estilos de liderança, femininos e masculinos, têm de coexistir. Ou seja, a igualdade de oportunidades em lugares de topo deve ser então alcançada através de um estilo de liderança mais andrógino. Este tipo de liderança destrói a polarização existente entre os géneros, é livre de estereótipos e incentiva os indivíduos a adotarem um continuum de comportamentos humanos, permitindo uma liderança mais flexível e capaz de responder de uma forma socialmente mais eficaz às exigências organizacionais num mundo em constante mudança.

P.S. — Para que fique claro, uma liderança andrógina não deve ser confundida com orientações sexuais nem com a falta de identificação sexual. Não esquecer que o sexo descreve o corpo físico e o género o papel social que a nossa (in)consciência atribui a esse mesmo corpo.