O tempo das minorias

(António Guerreiro, in Público, 19/11/2021)

António Guerreiro

Vivemos na época das minorias: culturais, de género, religiosas; e daí nascem as lutas pelo reconhecimento. Esta situação origina uma dinâmica social muito activa e interessante, sobretudo quando começa a haver uma flutuação e uma troca de lugares entre o maioritário e o minoritário, e quando as maiorias começam a sentir-se ameaçadas. É o que acontece, hoje, com os avanços das mulheres, em todos os domínios, tanto em termos simbólicos como efectivos. É verdade que a dominação masculina sobrevive ainda em muitos aspectos da organização familiar, em muitos lugares da sociedade e na hierarquia das empresas. Ainda recentemente, a economista Susana Peralta apontou, na sua coluna semanal no PÚBLICO, o monopólio da “testosterona pensante” nos painéis e nos fóruns de discussão, mesmo quando organizados por instituições que deviam promover a igualdade e a diversidade. Mas tanto em termos simbólicos como efectivos anuncia-se o tempo das mulheres, e é sobretudo nas escolas e nas universidades que esta realidade é mais evidente.

Historicamente, as mulheres não são apenas minoritárias, são a matriz do minoritário. A homossexualidade masculina foi considerada aberrante enquanto foi vista como uma “inversão”, o masculino a colocar-se no lugar do feminino (a categoria dos “invertis” está bem presente em Proust, por exemplo). Essa visão outrora dominante da homossexualidade como inversão obteve uma resposta na paródia do feminino elevada à condição de espectáculo exuberante nos desfiles do Gay Pride.

A noção de minoria é muito mais complexa do que parece, como nos ensinaram Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mille Plateaux. Aí é dito que a minoria não se opõe à maioria apenas segundo um critério quantitativo. Uma minoria pode ser numerosa e até corresponder ao número maior, como é o caso das mulheres. O que interessa são as relações interiores ao número. Ser maioritário implica a adequação a uma medida constante, a um metro-padrão em relação ao qual essa condição é avaliada. O metro-padrão que Deleuze e Guattari propõem (estávamos em 1980) é este: homem-branco-macho-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua standard-europeu-heterossexual. O homem é maioritário porque se inscreve nesta constante, mesmo que não a preencha totalmente e obedeça a outras variáveis (essas variáveis criam combinações que obrigam a outros padrões, também eles variáveis, de avaliação: ser homem e homossexual é ainda maioritário em relação a mulher e heterossexual?). Num outro livro, Deleuze e Guattari lêem Kafka como “uma literatura menor” porque escrever em alemão, na cidade de Praga, significou fazer com que a língua maior entrasse num devir minoritário. E todo o devir é um devir minoritário: não há um devir-homem, há apenas um devir-mulher.

Quando dizemos que estamos na época das minorias, queremos dizer que se aceleraram os devires-minoritários e as antigas maiorias perderam e continuam a perder progressivamente o lugar hegemónico que ocupavam. E às vezes entram em pânico quando percebem que já estão a viver o seu estertor. O facto denunciado por Susana Peralta, dos painéis formados quase exclusivamente por homens brancos, etc. (o etc. está aqui em vez das outras variáveis da condição maioritária), perdeu a “naturalidade” de outrora e passou a ser visto como aberrante.

Significa isto que o maioritário está do lado do mal e do totalitário e o minoritário está do lado do bem e do democrático? Nem pensar. O que nos dizem Deleuze e Guattari (e todos nós o podemos verificar, não faltam exemplos) é que as minorias tendem a recriar no seu interior fenómenos tão nefastos como a dominação exercida pelos grupos maioritários. O fenómeno dos nacionalismos (e, já agora, também dos terrorismos) vem do lado das minorias. E alguns ambientes homossexuais, nas primeiras décadas dos século passado, com as suas derivas fascistas, mostraram que, a par da acção progressista e emancipadora, há também uma lógica interna das minorias que pode seguir um caminho inverso. O exemplo mais eloquente é o do poeta alemão Stefan George (1868-1933), que criou à sua volta um círculo, de carácter ostensivamente homossexual e militar. Militar e homossexual contradizem-se? Não, atraem-se muito mais do que vulgarmente se pensa (isso da guerra ser coisa de homens presta-se a legítimas interpretações) e não é preciso regressar a Alexandre, o Grande, da Macedónia.



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Hoje é Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres e o PSD é nosso inimigo

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 25/11/2020)

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Focando-nos em Portugal, em 2020 foram assassinadas 30 mulheres: 15 em relações de intimidade. Desde 2004, já foram assassinadas 564 mulheres. Sabemos que na esmagadora maioria dos femicídios a violência não acontece num ato isolado, ela é histórica, prolongada e, pior, conhecida de terceiros, que nada fazem. A tragédia de tantas histórias cheias de violência histórica deixou para trás, só este ano, 21 crianças órfãs. A história de cada uma dessas crianças está na sua memória que certamente condicionará a possibilidade do futuro.

Não morremos por acaso. A dimensão de género no femicídio é evidente. Ninguém usa da sua voz pública para quebrar o coro unívoco contra o rio de sangue que todos os anos corre em nome da misoginia. Mas não morremos por acaso. Não somos espancadas, humilhadas e torturadas psicologicamente por acaso.

A violência doméstica, o femicídio, repousam numa permissão histórica: essa de, por defeito, serem os homens que mandam, que podem, que ditam, que têm e que definem.

É por isso que quebrar o ciclo infernal da nossa morte começa, de facto, na educação para a igualdade. O sexismo pode ser desconstruído. A escola tem o dever constitucional de o fazer, já que concretiza, como já escrevi, uma Constituição não neutra em relação à igualdade de género, como de resto à não discriminação racial ou à não discriminação em função da orientação sexual. E, já agora, todas estas (não) discriminações andam de mãos dadas. Os nossos corpos, as nossas existências, sobrevivem de forma diversa consoante os fatores históricos de discriminação se cruzam numa mesma pessoa e a lei ainda não está preparada para responder à mulher que, por exemplo, é pobre, negra e lésbica.

A permissão histórica que referi foi-nos ensinada num contexto português mal acordado de 48 anos de menorização das mulheres não votantes, propriedade dos maridos, adúlteras penais, inibidas em várias profissões, subjugadas aos “chefes de famílias”. Um contexto, assim, até 1974, legalmente sexista e também violentamente homofóbico e racista. A revolução não revolucionou tudo e todos, não varreu mentalidades, não demitiu juízes, pelo que as pessoas da minha geração, nascidas já em democracia, aprenderam direitinho a aceitar a desigualdade como o estado natural das coisas.

As antecâmeras da nossa morte foram experienciadas por todas nós, isto é, a raiz da misoginia que mata, a tal miséria que felizmente agora se despromove, com esforço, nas escolas precisamente educando para a igualdade. Mas eu, como tu e tu e tu, aprendi por defeito a mudar de passeio quando me diziam na rua “comia-te a cona toda”, nunca me ocorreu queixar-me, não é? Aprendi a viver a violência sobre o meu corpo devidamente objetificado perguntando da porção da minha culpa naquilo: então não ouvimos todas as perguntas sem simetria “porque é que lá foste” ou “porque é que subiste” ou “porque é que o deixaste entrar”? Aprendi a falar baixo para não passar por histérica, fiz a escola toda da subjugação estética para agradar os homens ou para parecer respeitável, aprendi a admirar muito, mas muito, homens e mais homens, não nos davam referências femininas e o espaço público era e é o que é. Aprendi a ser inquirida sobre o que fiz e o que não fiz, homens cheios de virilidade convictos de que estavam no direito de averiguar da pureza do meu percurso, confirmando o binómio das putas e dos garanhões.

É por isso que tenho a certeza que podia ter morrido. As mulheres que morreram este ano e nos últimos anos não são abstrações. São mulheres concretas que amaram como nós, que viveram os anos que viveram num país que ainda está longe de nos ver como iguais.

Temos de destruir as antecâmaras da nossa morte, e isso passou, infelizmente, a ser uma guerra inesperada. A ciência sabe que a igualdade só se conquista, após séculos de opressão, se a aposta começar cedo, na educação. Da linguagem aos papéis de género, tudo, mas tudo tem impacto no número de mulheres que em cada ano constam de uma lista infernal.

Acontece que esta simplicidade, de que depende a sobrevivência dos nossos corpos, é negada não apenas por maluquinhos, por Bolsonaros e afins, mas por um novíssimo PSD, que se juntou numa proposta de alteração ao OE2021 ao Chega (e ao inexistente CDS) para a realização de uma “inquirição” sobre a alegada existência de “ideologia de género” nas escolas, ou seja educação para a igualdade.

Se o PSD é Damares e Ventura, em nome das nossas vidas, bem como das pessoas racializadas e LGBT, passou de adversário a inimigo.


A ordem moral das coisas e a identidade de género

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 30/09/2020)

Daniel Oliveira

O que os assusta não é que a menina chegue a casa e diga que quer ser rapaz. É que elas possam ser tão livres ou egoístas como eles. As identidades estão baralhadas porque foram construídas por quem tinha o poder. Sem isso, a genitália não chega para definir o lugar de cada um. Já não dá para pôr a mulher livre no hospício. Por isso, é fundamental que elas continuem a aprender qual é o seu lugar. Tivesse Adelaide nascido neste tempo…


Adelaide Coelho da Cunha teve a sorte ou o azar de ser a legítima herdeira e proprietária do “Diário de Notícias”. E, por despeito ou amor, cometeu o erro ou a audácia de se envolver com o seu motorista e abandonar “o leito conjugal” de um marido que lhe era infiel. O motorista era pobre e muito jovem. Pobre como a criada que o seu filho engravidou, jovem como a amante do seu marido. Mas Adelaide era mulher. E não é normal as mulheres fazerem o que os homens fazem. Porque, diz-se, as mulheres são diferentes dos homens.

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Para além disso, o marido de Adelaide Coelho da Cunha queria vender o “Diário de Notícias” e ela não deixava. E não era normal uma mulher vetar a vontade do seu marido. Pelas duas razões, foi internada num hospício com a ajuda empenhada de homens ilustres, como Egas Moniz e Júlio de Matos. A história de Adelaide Coelho da Cunha é contada em “Ordem Moral”, de Mário Barroso.

Em cem anos mudou muita coisa. Mas há coisas que mudaram menos do que pensamos. Veja-se o caso da rapariga filmada a fazer sexo com dois rapazes, numa carruagem de comboio, que foi achincalhada no espaço público e mereceu uma patologização do seu comportamento que foi dispensada aos seus parceiros, como bem descreve este texto de Fernanda Câncio. A rapariga será maluca, eles serão uns “grandes malucos”. Ou, na pior das hipóteses, um pouco indecentes. Porque os homens, já se sabe como são. Agora, uma rapariga?

Anda por aí, graças a uma moda importada, uma grande preocupação com a identidade de género. De tal forma que os ultraconservadores inventaram uma ideologia para os seus opositores: a ideologia de género. A expressão nasce nos estudos de género para caracterizar as crenças sociais vigentes sobre o lugar da mulher e do homem na sociedade e foi apropriada por Ratzinger, ainda antes de ser Papa, para definir os que contestam essas crenças. Hoje é usada por grupos de extrema-direita e de religiosos radicais. E vai fazendo o seu caminho.

Os ultraconservadores têm medo que esta ideologia de género, que supostamente tomou conta das escolas sem que os professores me consigam dizer em que canto das salas de aulas se escondem, confunda as crianças. Que os seus filhos cheguem a casa e, do nada, lhes digam: “pai, eu quero ser menina”, “mãe, eu quero ser menino”. Espanta-me a pouca confiança que demonstram ter na natureza. Se é tão esmagadoramente natural a diferença entre homens e mulheres não será uma palestra que afastará o rapaz do azul e a menina do cor-de-rosa. Não serão uns livros que retirarão à rapariga o instinto maternal e ao rapaz a testosterona de guerreiro. As coisas acontecerão porque têm de acontecer.

O que temem nada tem a ver com as rasteiras que a ideologia consiga dar à natureza. Temem o que temia a sociedade que meteu Adelaide Coelho da Cunha no hospício: que cada um deixe de saber o seu lugar. É de poder que falamos. O poder que afasta as mulheres do topo de todos os poderes. O que quer continuar a impor a vontade masculina ao aparelho reprodutivo das mulheres. O que lhes reserva o lugar de grandes mulheres atrás de grandes homens. É apenas isso: poder.

O que os assusta não é que, por descobrirem que a homossexualidade existe, os meninos comecem a gostar de meninos. Isso acontecerá se tiver de acontecer, nas suas barbas ou às escondidas. Com o seu apoio se quiserem que os seus filhos sejam felizes ou a sua oposição se preferirem torturá-los. É que isso baralha o papel que cada um dos géneros deve desempenhar na sociedade e na família. O que os assusta não é que a menina chegue a casa e diga que quer ser rapaz. É que a mulher descubra que, como o homem, pode ter amantes e eles podem ser mais novos e mais giros do que os seus maridos. É que elas possam ser tão livres ou egoístas como eles. Que deixem de ser “galdérias” (ou tantos outros insultos que não têm correspondente para os homens) e passem a ser apenas o feminino do “mulherengo” (também não foi inventado). É que elas possam ser chefes deles, ganhar mais do que eles. Aquilo de que têm medo é de perder parte do poder que herdaram e pelo qual nunca tiveram de lutar.

Já não é possível, como no início do século XX, pôr a mulher livre no hospício. Mas dá para lhes continuar a ensinar o seu lugar. Tentam travar o vento com as mãos. As identidades estão baralhadas porque foram sempre construídas por quem tinha o poder para as impor. Sem isso, a genitália não chega para definir o lugar de cada um. E não falta muito para que não chegue ser homem para ter o lugar da frente. Tivesse Adelaide nascido neste tempo…