No auge do movimento MeToo, Marianne Williamson, uma escritora norte-americana e candidata presidencial pelo Partido Democrata nas últimas eleições, fez uma publicação na sua página de Facebook em que alertava para os excessos do clima persecutório instalado em relação aos homens, dizendo que, no que toca ao assédio, “existe uma diferença” entre um “criminoso” e um “idiota”.
Era de prever: a longa história da dominação masculina, que se manteve quase intacta mesmo depois de todos os combates pelas liberdades e emancipações nos mais diversos domínios políticos e sociais iria desencadear, quando os ventos soprassem de feição, um ambiente de guerra dos sexos e dos géneros. Esse ambiente está instaurado e não há tréguas à vista.
Os vários feminismos, do século XIX ao nosso tempo, foram ainda tentativas pacíficas de reivindicar a igualdade entre homens e mulheres. Tratou-se sempre de reclamar os direitos que os homens já tinham, mas sem pôr em causa verdadeiramente as prerrogativas masculinas. O feminismo procedia pela nomeação e interrogação das mulheres, sobre si próprias e os seus direitos. O movimento #MeToo introduziu um aspecto diferente: nomeou e apontou com o dedo a sociedade patriarcal, masculina; objectivou o que sempre tinha tido o estatuto de sujeito. E fê-lo com uma fúria que tem sido, nalguns momentos, associado a um terror delator. O #MeToo pôs os homens causa, declarou guerra à permanência do patriarcado, assaltou as fortalezas que guardavam os privilégios de género. Não é propriamente um movimento de reivindicação, como foram os vários feminismos, mas de ataque; tem um pensamento estratégico e não se fica pelas tácticas. Em suma: recorreu a alguma violência contra o que jamais se transformaria por meios pacíficos.
Nomear e objectivar o masculino, interrogá-lo e pô-lo em causa, é uma operação da maior importância, na medida em que lhe retira o privilégio que sempre teve: o de ser o próprio lugar da razão (daí, a mulher como bruxa, histérica, irracional, “continente negro”). Trata-se de uma autêntica revolução que muitos ainda não compreenderam ou que relacionam apenas com a guerra em curso e as suas tropas mais avançadas. Mas essa operação alargou-se, está a ser levada a cabo também por outros meios, mais serenos e reflexivos, o que é uma prova de que, para além de todo o ambiente de guerra, há algo muito mais profundo e irreversível que veio a de cima. Ou do qual essa guerra é um sintoma. Um historiador e escritor francês, Ivan Jablonka, tem dado um contributo enorme para uma crítica da sociedade patriarcal, da dominação masculina, tão alienada do exercício de introspecção. No seu último livro, Des hommes justes. Du patriarcat aux nouvelles masculimités, ele define uma moral do masculino, capaz de instaurar uma “justiça de género”. Trata-se, como se diz logo na introdução, de uma utopia. Mas de uma utopia que deve guiar o pensamento e a acção. Essa “justiça de género” obriga, por exemplo, a pensar muito a sério o que se tem revelado muito difícil de pensar, a diferença entre a sedução e o assédio, sem que se acuse de operação “policial” o que é uma prática justa ou, inversamente, sem que a justiça de género se transforme em polícia de género. Ivan Jablonka mostra que não tem nada de bizarro — e responde adequadamente a uma necessidade terminológica — o conceito de “masculinidade tóxica”. É um modo de definir certas formas de masculinidade que consistem na adesão, responsável por modos de alienação masculina, a um certo número de estereótipos. O que é que a masculinidade tóxica aliena? Aquilo a que Jablonka chama as “masculinidades dissidentes”. A masculinidade tóxica coincide com o modelo do macho tradicional (cujo reinado, diz Jablonka, chegou ao fim) como máquina de dominação, não apenas das mulheres, mas também dos homens cuja masculinidade é considerada ilegítima, dissidente ou débil. Por isso, é importante que aquilo que dantes era designado como “drama passional” seja hoje dito com a palavra “feminicídio” porque é disso que se trata: uma mulher que é morta pelo cônjuge ou ex-cônjuge enquanto mulher. A masculinidade criminosa é uma tipologia que não tem equivalente no feminino, o que mostra bem até onde chega a masculinidade de dominação.
A utilização do plural, masculinidades e não masculinidade, é da maior importância no discurso de Jablonka. Desde logo porque permite dissociar a masculinidade da virilidade (a primeira tem um sentido muito mais lato), e depois porque é um modo de dizer que não existe o “eterno masculino”, há muitas formas de ser homem.
Na verdade, o “eterno feminino” foi uma operação retórica através da qual era o masculino que se eternizava, até porque o que sempre se disse, antes e depois de Verdi, é que “la donna è mobile”.
Abro a homepage de quatro jornais, o “Público”, o “Diário de Notícias”, o “Observador” e o meu jornal, o Expresso. Todos os dias faço este exercício, para ver se me engano. Conto as fotografias publicadas dos homens e das mulheres, incluindo as de publicidade ou promoção, as colunas de opinião, as notícias nacionais e internacionais. Corro tudo. Corro a homepage até ao fim e faço a contagem. Excluo as fotografias de grupo confusas e os conjuntos de futebolistas, mas não as repetições, porque as repetições ajudam a compreender o fenómeno da omnipresença. As mulheres não estão apenas em minoria em todas as representações, as mulheres são uma ínfima parte do espaço público e são usadas para ilustração de três coisas básicas: família ou casal, trabalho considerado feminino, como coser ou cuidar dos filhos, e limpeza.
Vamos ao dia em que escrevo, terça-feira, 13h.
No “Público”, um jornal com fama de feminista, conto 39 fotos de homens, onde se incluem chefes políticos, e quatro, 4, fotografias de mulheres. Mesmo as ilustrações de notícias covid, as prisões, a quarentena, quem morre no hospital, fotografias genéricas incluem mais homens do que mulheres, e temos também o homem mais velho do mundo. Haverá uma mulher?
A app da empresa Idealista, publicidade, tem como ilustração um homem, género normalmente escolhido pela publicidade para tudo o que não seja detergente ou cosmética. As fotografias de banqueiros? Homens. De autarcas? Homens. Até a ilustração de uma rua de Londres traz um homem numa trotinete. A opinião masculina tem um destaque fotográfico que a opinião feminina muitas vezes não merece. Tenho vindo a investigar estas discriminações há muitos meses, desde antes da covid, sei do que falo. Nos conteúdos comerciais, as mulheres são largamente postas de lado, exceto na venda de carne a peso, caso das raparigas que entretêm o olhar masculino ou de celebridades. Uma ilustração de sem-abrigo traz um homem, e um abraço plastificado, covid recomenda, é entre pai e filha. A fotografia da possível abertura das escolas? Um grupo de rapazes.
Entretanto, esta semana morreu uma Bond girl, Pussy Galore, com quase 100 anos, e teve destaque nas respetivas homepages, porque Pussy Galore é um protótipo feminino velho como o mundo. A Bond girl, bonitinha e inútil. Mesmo que nada disto se aplique hoje à nossa sociedade, a Pussy teve mais fotos do que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
Vamos ao “Diário de Notícias”. Conto 45 fotos de homens, incluindo publicidade, e 23 de mulheres, incluindo uma promoção à Portugal Mobi Summit, que usa mulheres profissionais como ilustração. Para ilustrar a defesa das mulheres da limpeza do Luxemburgo lá vem uma mulher de vassoura. E no fabrico de máscaras lá está a máquina de costura. Na opinião, o “DN” dá voz a várias especialistas de circunstância, incluindo uma que ensina a sobreviver aos filhos. Numa rubrica, uma mulher aparece agarrada ao telemóvel com o título “Esta não é a altura de mandar mensagens ao ex”. O lugar-comum da ex-namorada histérica e que não larga o osso, assediando ex-namorados.
Num momento histórico em que o abuso e a violência doméstica estão a aumentar devido ao confinamento, não há sobre isto muitas linhas nos jornais portugueses, ao contrário do que fez “The Guardian”. Em compensação, a notícia da série de televisão “A Espia” tem no “Público” a melhor foto de mulheres, uma rapariga bonita e fresca. Os homens velhos aparecem em todo o lado. As mulheres velhas raramente são vistas em página. Falta de fotogenia. As exceções são Lagarde, que aperta os cordões da bolsa, e Merkel, pela mesma razão.
No “Observador”, temos 50 fotos de homens, com repetições, e Cristiano Ronaldo, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa são os reis da repetição em todos os jornais, e 14 fotos de mulheres, com algumas repetições. Lá anda por entre as notícias a nossa Pussy Galore. Um anúncio da Cofidis, “Conta Connosco”, tem um homem por ilustração, porque sabemos que pedir dinheiro emprestado, tal como comprar casas, é privilégio masculino. Na opinião do “Observador”, as mulheres são clara minoria. Em compensação, a opinião masculina abunda e orneia, como diria o Eça ao Camilo.
No Expresso, conto, às 13h06, 44 fotografias de homens e 19 de mulheres, incluindo um torso feminino a ilustrar uma notícia. O destaque feminino vai para uma interessantíssima peça sobre Ming Hsu, a milionária chinesa que doou quase cinco milhões de euros de material médico a Portugal. Este perfil estava em primeiro lugar nos mais lidos, o que demonstra que as boas peças sobre mulheres poderosas são lidas. Mas Ming não é apenas uma mulher poderosa, é apresentável e sobretudo, a avaliar, muitíssimo generosa. Apesar de Ming constar dos “Paradise Papers”, que o Expresso e o Consórcio Internacional de Jornalistas publicaram, ela revela uma “paixão filantrópica” pelos lusitanos e pelo torrão nacional, onde tem investimentos. Tal como a Fosun, do Partido Comunista Chinês, que também doou material médico aos portugueses. Ming, figura nebulosa, recorda-me dois aforismos. O primeiro: a cavalo dado não se olha o dente, com um ponto de interrogação. O segundo: não há almoços grátis.
Tal como Isabel dos Santos, que por aí continua nos rodapés, figuras femininas como as de Ming Hsu ou outras, e há muitas, atraem leitores, mas este tipo de notícias, reportagens ou investigações são minoritárias. O grosso do que é produzido nos media, e não apenas portugueses, é supervisionado por homens para ser consumido por homens, visto e lido por homens. Boys will be boys. O preconceito está tão arreigado que nem as mulheres o notam. Sempre que é necessário produzir uma opinião de potestade, o homem é convocado. A mulher é relegada para a opinião de nicho, moda e design, cozinhados (mas não de chefe, categoria superior), família, filhos, crianças, cuidados, limpezas. Nessa disciplina essencial que é a economia, ou a gestão do dinheiro e da banca, as mulheres foram relegadas para o secretariado e a máquina de café. Olhe-se para a composição do Banco de Portugal ou dos conselhos de administração das empresas. Quando Cláudia Azevedo, filha de Belmiro de Azevedo, sucedeu ao irmão, Paulo Azevedo, como CEO da Sonae, as ações desceram, num sinal de desconfiança, entretanto recuperando. Apesar de tudo, o Governo de António Costa é mais ou menos representativo do “eterno feminino”, mas o PSD de Rui Rio é um imenso patriarcado.
De Jane Austen para cá, parece às vezes que nada mudou. E nem falo da discriminação salarial. As mulheres são quem mais consome informação e cultura, quem compra mais livros e quem mais lê. E votam. Façam as contas.