Marcelo Rebelo de Sousa e Volodymyr Zelensky

(José Catarino Soares, 07/09/2023)

Dia 30 de Agosto de 2023, o presidente da república portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, falou mais de duas horas na “Universidade” de Verão do PSD, em Castelo de Vide.

A Ucrânia ‒ país onde Marcelo Rebelo de Sousa tinha estado uma semana antes e onde discursou ‒ foi o tema único sobre o qual quis falar em Castelo de Vide e o tema que, acrescentou, justificava a sua presença naquele fórum partidário.

«Numa longa intervenção inicial, [Marcelo Rebelo de Sousa] procurou fazer uma «pré-história da guerra», passando pela anexação da Crimeia e pelas responsabilidades do ex-presidente Donald Trump no aumento da influência da Federação Russa, e deixou elogios à capacidade de resistência do povo ucraniano e de liderança do Presidente Zelensky» («Marcelo quer ser lembrado como “presidente de proximidade,” apesar dos riscos». Sapo24/Lusa, 31 Agosto 2023).

Se lermos este resumo à luz do discurso que Marcelo Rebelo de Sousa fez na Cimeira da Plataforma da Crimeia que teve lugar em Kiev em 23 de Agosto [1], podemos imaginar facilmente os maus-tratos que a verdade histórica e a realidade geográfica atinente às guerras na Ucrânia terá sofrido na sua intervenção em Castelo de Vide [2].

Seja como for, há dois factos recentes sobre a Ucrânia que ‒ aposto um café com quem quiser ‒ Marcelo Rebelo de Sousa não mencionou, não mostrou, nem comentou aos alunos dessa “universidade”.

1.º Que Zelensky não aceitou a condecoração que ele, Marcelo Rebelo de Sousa, lhe atribuiu em 15 de Fevereiro de 2023 e que ele tencionava entregar-lhe pessoalmente durante a sua visita a Kiev, de 22 a 25 de Agosto. Refiro-me ao Grande-Colar da “Ordem da Liberdade”.

2.º Que Zelensky publicou no Zelensky/Official, o seu canal Telegram, um vídeo de uma sua recente visita à linha de frente, onde o vemos, com um ar circunspecto, a informar-se, junto de Andriy Biletsky, sobre o andamento da grande contraofensiva ucraniana.

Examinemos então, pela mesma ordem, o interesse político destes dois factos.

1. A Ordem da Liberdade para um liberticida patenteado

No sítio oficial de informação da Presidência da República Portuguesa, no separador “ordens honoríficas portuguesas”, subseparador “ordens nacionais”, encontra-se a seguinte informação sobre a Ordem da Liberdade: A Ordem da Liberdade assinalou a Revolução dos Cravos e está associada às causas da luta pela Liberdade e à Defesa dos Direitos Humanos. A Ordem da Liberdade destina-se a distinguir serviços relevantes prestados em defesa dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa da Liberdade.

O Grande-Colar da Ordem da Liberdade é o mais alto grau da Ordem e é concedido pelo Presidente da República a Chefes de Estado estrangeiros. O Grande-Colar pode ainda ser concedido pelo Presidente da República a antigos Chefes de Estado e a pessoas cujos feitos, de natureza extraordinária e especial relevância para Portugal, os tornem merecedores dessa distinção.

Num artigo publicado em 9 de Fevereiro de 2023 no blogue Tertúlia Orwelliana [“Volodymyr Zelensky é “a figura do ano 2022” (para o Financial Times, a Time, etc.), ver aqui. É, de facto, mas pelas piores razões»] [3] ‒ seis dias antes, portanto, de Marcelo Rebelo de Sousa lhe ter atribuído o Grande-Colar da Ordem da Liberdade ‒ demonstrei, com base num grande acervo de factos disponíveis em fontes abertas, que o presidente Zelensky é um LIBERTICIDA consumado e inveterado (cf. secção 4 e 5 do referido artigo), além de um corrupto e nepotista patenteado (cf. secção 2 do mesmo artigo).

Respigo aqui desse artigo, a título de exemplo, apenas dois feitos do extenso currículo de liberticida do presidente Zelensky. Um deles diz respeito ao ataque que Zelensky moveu contra a liberdade de constituição e acção de partidos políticos de oposição ao poder estabelecido. O outro diz respeito à perseguição que Zelensky tem movido aos padres, monges e crentes da Igreja Ortodoxa Ucraniana, pelo simples facto de esta igreja estar ligada há muitas centenas de anos à Igreja Ortodoxa Russa.

Em 21 de Março de 2022, Zelensky invocou a lei marcial para suspender de uma assentada onze (11) partidos de oposição, acusados de serem pró-russos. Em 3 de Maio uma lei do parlamento ucraniano, elaborada pelos deputados do partido do presidente, Servente do Povo, confirmou essa decisão, transformando a suspensão em proibição — lei essa que Zelensky, por sua vez, promulgou em 14 de Maio. Em seguida, em Junho de 2022, os tribunais administrativos de primeira instância ‒ e, nos casos em que houve recurso, os tribunais administrativos de segunda instância e até, pelo menos num caso (o do partido Plataforma da Oposição — pela vida) ‒ o supremo tribunal da Ucrânia, em sessões à porta fechada, onde não foram admitidos sequer jornalistas, determinaram o confisco dos bens destes partidos (sedes, viaturas, etc.) em favor do Estado ucraniano!

Os partidos proscritos abrangem um largo espectro da oposição ucraniana, da direita à esquerda, incluindo a esquerda social-democrata (Partido Socialista da Ucrânia) e também, pela segunda vez, o Partido Comunista da Ucrânia — que agora se apresenta sob a bandeira da coligação Oposição de Esquerda, depois de ter sido banido em 2015. Este partido foi proibido desde essa altura, juntamente com dois outros partidos comunistas, de utilizar a palavra “comunista” e a insígnia da foice e do martelo para se identificar, em virtude das chamadas leis de “descomunização” de 2015, incluindo a lei 317-VII.

Ainda que com manifesta relutância, a Comissão de Veneza do Conselho da Europa, na sua sessão plenária de 18-19 de Dezembro de 2015, não pôde deixar de condenar a lei 317-VII como sendo incompatível com um Estado respeitador das liberdades de expressão, associação, reunião e de realização de eleições, todas elas consagradas na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e noutros instrumentos internacionais e regionais da mesma índole.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…Quem acredita que a Comissão de Veneza do Conselho da Europa fosse capaz, actualmente, de condenar Zelensky por violar onze vezes mais a Convenção Europeia dos Direitos Humanos do que o seu antecessor Poroshenko?

A lista dos 11 partidos proscritos é a seguinte: Plataforma de Oposição — pela Vida (o maior partido de oposição, que dispunha de 43 dos 451 deputados do parlamento ucraniano), Bloco da Oposição (o segundo maior partido dos 11 proscritos, que dispunha de 6 deputados no parlamento), Nashi [= “Nosso”], Oposição de Esquerda, Derzhava [= “país”, “nação”], Partido Socialista Progressista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, União das Forças de Esquerda, Os Socialistas, Partido de Shariy, Bloco Volodymyr Saldo. O partido Solidariedade Europeia do ex-presidente Poroshenko e cinco outros pequenos partidos parlamentares não foram abrangidos por esta proibição porque Zelensky entende, do alto da sua omnisciência, que «dizem a verdade sobre a guerra». Os partidos neonazis, como o Svoboda, Corpo Nacional, Sector de Direita, foram também deixados intocados por esta proibição porque, também eles, no omnisciente entendimento de Zelensky, «dizem a verdade sobre a guerra».

Não é só a liberdade política que foi banida na Ucrânia. Foi também a liberdade religiosa. Em 2 de Dezembro de 2022, Zelensky anunciou que tinha pedido aos deputados do seu partido, Servente do Povo, uma lei destinada a proibir todas as religiões com laços à Rússia, alegando que a medida era necessária para «garantir a independência espiritual da Ucrânia» (!!).

A partir dessa data, a perseguição aos padres, monges e crentes da Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU) tem-se intensificado — tentativas constantes de intimidação dos crentes e do clero da IOU à porta de locais de culto (igrejas e mosteiros) abertos ao público, através de acções de verificação de identidade efectuadas por agentes do SBU [o Serviço de Segurança da  Ucrânia]; rusgas constantes nos locais de culto da IOU, com a alegação de que poderiam albergar sabotadores russos; centenas de detenções para interrogatório de clérigos e crentes da IOU; encarceramento de dezenas de clérigos da IOU acusados de serem agentes russos; repetidas acções de despejo contra os clérigos que habitam no complexo religioso Kiev-Pechersk Lavra, também conhecido como Mosteiro das Grutas de Kiev, que é o santuário histórico da Igreja Ortodoxa Ucraniana desde o século XI, museu nacional e também a residência oficial do seu chefe máximo, Onufrius, Metropolita de Kiev e Toda a Ucrânia.

Perante todos estes ataques, mesmo o New York Times ‒ cujas simpatias por Zelensky, pelo seu governo e pela sua maioria parlamentar são públicas e notórias ‒ teve de reconhecer o que não pode ser negado:

«As igrejas ortodoxas de ambos os países [Rússia e Ucrânia] compartilham os mesmos rituais religiosos, seguem o mesmo credo e rastreiam as suas origens até ao mesmo evento em 988, no Rus de Kiev, o Estado eslavo oriental que tanto a Rússia como a Ucrânia consideram a raiz dos seus países modernos. Nesse ano, o Grande Príncipe Volodymyr ‒ Vladimir para os russos ‒ de Kiev, um pagão, converteu-se ao cristianismo ortodoxo».

Assim sendo,

«Se a Ucrânia [entender, “se Zelensky”] ilegalizar um grupo religioso [entender, “a Igreja Ortodoxa Ucraniana”], ficaria entre dezenas de países que já o fizeram, mas a maioria deles são Estados autoritários que estão muito longe do tipo de democracia liberal que a Ucrânia diz ser» (Marc Santora, “Zelensky Proposes Barring Orthodox Church That Answers to Moscow Ukraine’s president.” New York Times, 2, Dezembro 2022).

Em resumo, Zelensky é um liberticida patenteado. Mas foi este homem que Marcelo Rebelo de Sousa condecorou com o Grande-Colar da Ordem da Liberdade!

Ora, acontece que Zelensky entende que nada fez para merecer condecorações, seja de quem for — afirmação através da qual mostrou ter, por uma vez na vida, toda a razão. Por esse motivo, recusou a Ordem da Liberdade com que Marcelo Rebelo de Sousa decidira agraciá-lo. 

O caso poderia ter ficado por aqui, se Marcelo Rebelo de Sousa tivesse compreendido que a sorte o tinha bafejado ao oferecer-lhe uma saída airosa: regressar a penates com o dito Grande-Colar da Ordem da Liberdade imaculado, a aguardar no seu estojo a ocasião de ser entregue a um candidato merecedor de o receber. Em vez disso, segundo noticiou o jornal Observador no dia 25 de Agosto de 2023,

«Marcelo Rebelo de Sousa omitiu a informação de que o colar não foi entregue, bem como a informação de que, formalmente, Zelensky não é detentor da ordem honorífica porque não a aceitou. Aliás, o nome de Zelensky nem sequer consta do site oficial da Presidência da República onde são listados os detentores do colar. A condecoração também não foi publicada em decreto no Diário da República».

Marcelo Rebelo de Sousa (o senhor de gravata azul) e Vladimir Zelensky. Foto de João Porfírio (em Kiev, na Ucrânia). Observador, 25 de Agosto de 2023.

O sítio de informação Sapo24 (Madremedia) deu-nos, porém, uma versão do acontecido ainda mais rocambolesca, ao noticiar, nesse mesmo dia, que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa mentiu quando afirmou ter entregado a condecoração a Zelensky numa cerimónia privada.

«Recorde-se que esta quinta-feira, quando o presidente foi questionado pelos jornalistas, em Kiev, sobre se Zelensky recebeu a condecoração disse: “Recebeu, obviamente, mas recebeu em cerimónia não pública. De forma discreta, que o caracteriza nesse particular”. De acordo com o jornal [Observador], o objeto chegou apenas aos serviços e não às mãos de Zelensky».

2. Zelensky conferencia com Biletsky

Em 14 de Agosto de 2023, Zelensky publicou no seu canal Telegram um vídeo de uma sua recente visita à linha de frente para se informar in loco sobre o andamento da contra-ofensiva das tropas ucranianas. Zelensky acompanhou o vídeo de um rasgado elogio aos militares ucranianos com quem conferenciou. Ver aqui.

Quem é o comandante que vemos no vídeo, com um ponteiro na mão e um mapa estendido sobre uma mesa, a dar explicações a Zelensky, qual grande estratega militar?  Pois, nada mais nada menos do que Andriy Biletsky.

Biletsky, para quem não saiba, é o fundador e chefe do Batalhão Azov uma formação paramilitar neonazi criada em Maio de 2014, a partir do seu bando armado Patriotas da Ucrânia. Os Patriotas da Ucrânia desempenharam um papel importante no golpe de Estado de Maidan, em 22 de Fevereiro de 2014, que derrubou inconstitucionalmente e pela força o presidente da república livremente eleito, Viktor Yanukóvitch. Uma das medidas tomadas pelo governo saído do golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014 foi a libertação de Biletsky, que estava encarcerado desde 2011 acusado de assassinato. No seguimento dos Acordos de Minsk (2014 e 2015) que proibiam a existência de formações paramilitares autónomas, o Batalhão Azov foi, primeiro, incorporado na Guarda Nacional Ucraniana e, mais tarde, nas Forças Armadas Ucranianas com o estatuto de regimento.

O Batalhão/Regimento Azov foi uma das armas mais mortíferas que os governos de Poroshenko e de Zelensky empregaram para (i) violar diariamente os Acordos de Minsk (2014-2015) durante a primeira guerra na Ucrânia (Maio de 2014-Fevereiro de 2022), (ii) tentarem destruir as Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk pela força das armas e, se tivessem êxito (o que não aconteceu), (iii) conseguirem submeter as populações russófonas e russófilas desses territórios à férula da mais desenfreada russofobia.

Biletsky, o seu comandante, é também o dirigente máximo do partido político Corpo Nacional que ele fundou em 2016. O credo de Biletsky e do Corpo Nacional é idêntico ao de Stepan Bandera (1909-1959) — (i) dirigente máximo da facção mais fanática da Organização dos Nacionalistas Ucranianos e do seu braço armado, o Exército Insurrecto Ucraniano; (ii) colaborador de Hitler no Holocausto, (iii) promovido a herói nacional da Ucrânia independente, a título póstumo, pelo presidente Yushchenko em 2010; (iv) banido desse panteão pelo presidente Yanukóvytch e (v) reabilitado de novo como herói nacional pelos presidentes Poroshenko e Zelensky no regime saído do golpe de Estado de Maidan.

Em 2014, Biletsky reafirmou o seu credo:

«A missão histórica da nossa nação neste momento crítico é o conduzir as raças brancas numa cruzada final pela sua sobrevivência /…/, uma cruzada contra os sub-homens conduzidos pelos semitas» (The Telegraph, 11 de Agosto de 2014).

Podemos vê-lo na foto seguinte, em 14 de Fevereiro de 2020, à frente de um grupo de militantes do seu partido a manifestar-se diante da residência oficial da presidência da república ucraniana, em Kiev, para protestar contra a atitude considerada conciliatória de Volodymyr Zelensky relativamente a Vladimir Putin. Onde isso já vai…! Ontem adversários políticos, Biletsky e Zelensky são hoje aliados.

14 de Fevereiro de 2020. Biletsky e os seus apaniguados do Corpo Nacional em manifestação de protesto em frente à residência oficial da presidência da república ucraniana. Repare-se nos cartazes que seguram nas mãos. Retratam Zelensky como um bebé amoroso do seu papá Putin. Foto de Sergei Supinsky.

Marcelo Rebelo de Sousa disse em Castelo de Vide que nunca alimentou a «russofobia» e que aquilo a que se assistiu [na Ucrânia e no chamado “Ocidente alargado”] neste particular foi um «disparate total».

«Eu nunca alimentei a russofobia. Independentemente daquilo que se pense sobre a guerra é um disparate total aquilo que se assistiu. Que é não se toca mais compositores russos, não se passa mais filmes russos. Toda a história russa é esquecida, toda a cultura russa é omitida. Isso não existe. Isso é uma coisa sem senso. E quem pensa assim, e reage assim, perde boa parte da sua razão quando defende a causa que quer defender. É uma forma estúpida de defender uma causa» («Universidade de Verão do PSD. Marcelo desafia sucessores a serem melhores que ele em Belém». RTP Notícias, 31 Agosto 2023).

Considero ser de elementar justiça que englobemos como objecto desta apreciação de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a russofobia os propósitos da visita que ele fez à Ucrânia e as declarações oficiais que lá produziu na sua qualidade de Presidente da República.


Notas

[1] O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa na “Cimeira da Ucrânia” foi publicado na íntegra pela Rádio Renascença («Discurso de Marcelo na íntegra em Kiev. “A fronteira portuguesa é a fronteira da Ucrânia”». 23 Agosto, 2023 ‒ 14:52, José Pedro Frazão, enviado da Renascença à Ucrânia).

[2] Dois exemplos. No seu discurso na cimeira “Plataforma da Crimeia”, em Kiev, «o Presidente da República voltou a “reafirmar” a posição portuguesa sobre a península da Crimeia, garantindo que Portugal defende que aquele território faz parte da Ucrânia, não devendo ser uma questão separada da restante invasão, até porque os ucranianos entendem que essa invasão começou em 2014, precisamente quando aquele território foi anexado pela Rússia» (António Guimarães.  «“Havia mísseis a caminho” mas Marcelo, que estava com Zelensky, não teve “medo” — teve foi vontade de anunciar um convite especial ao presidente da Ucrânia». CNN Portugal. 23 Agosto 2023).

É falso (i) que a Crimeia faça parte, ou tenha feito parte, da Ucrânia independente e (ii) que a Crimeia tenha sido anexada pela Rússia em 2014. Desmontei essas duas falsidades na secção 3 [“A colossal patranha da anexação de Crimeia pela Rússia”] do meu livro “Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal” (Editora Primeiro Capítulo. Agosto 2023) e, mais pormenorizadamente, no artigo “Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia?”, no blogue Tertúlia Orwelliana. Ver aqui.

Marcelo Rebelo de Sousa afirmou também, no seu discurso, que «embora esteja longe no Ocidente, a nossa fronteira, a fronteira portuguesa, é a fronteira da Ucrânia. E isso deve estar muito, muito claro». O que fica muito, muito claro é que Marcelo Rebelo de Sousa não tem pejo em dizer enormidades que, na boca de um aluno de História e Geografia de Portugal do 5.º e 6.º anos de escolaridade obrigatória do Ensino Básico, atestariam a sua ignorância crassa.

[3] https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/02/volodymyr-zelensky-e-figura-do-ano-2022.html.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Truanismo — o regime de falsificação da história e dos valores

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 27/08/2023)

A propósito da atuação de Marcelo Rebelo de Sousa na presidência da República, António Barreto escreveu na sua coluna no Público (26/08/23) — Grande angular: «O regime está mudar». “O Presidente vetou tudo. Não por motivos constitucionais, jurídicos e constitucionais, mas por razões políticas e programáticas.” (…) “Além do tradicional, o Presidente parece agora desempenhar vários papéis. O de fiscal da ação política, provedor do cidadão, colegislador, responsável pelas políticas públicas.” (…) “ Estamos a assistir a uma mudança de regime” E exalta como exemplo da virtuosidade da ação de Marcelo Rebelo de Sousa e da mudança de regime a patética visita a Kiev para marcar o ponto: “ O Presidente da República desempenhou na Ucrânia, com garbo (hirto a marchar com os braços colados ao corpo em direção ao mural de Bucha) e competência (sic), cultural (sic — deve ter sido quando falou ucraniano) e afetuosamente (é um distribuidor de afetos ambulante, sabe-se), com brilho e distinção” (é uma nota de um examinador amigo).

A António Barreto salta a boca para a verdade e para a contradição quando afirma (para fazer a quadratura do círculo): “Ultrapassou (sic) as tradições de cerimónia. Dentro das margens estabelecidas pela Constituição (definidas por Barreto), foi um verdadeiro Chefe de Estado (uma figura não contemplada na Constituição) e chefe da política externa” (outro pé fora da Constituição).

As contradições no raciocínio de A Barreto são antigas e evidentes. É evidente que Marcelo Rebelo de Sousa subverte a natureza do regime que foi votado pelos portugueses e que está fixado na Constituição. A primeira conclusão a tirar é a de que estamos perante um abuso de poder exercido por quem se arroga do exercício de um cargo em seu proveito e à margem da lei. A António Barreto não interessa referir o pormenor de que a mudança de regime que ele diz estar em curso coloca a velha e decisiva questão de todos os regimes de saber quem julga os juízes! Nos Estados Unidos os presidentes vão a tribunal!

Estes casos de abuso de poder são tão mais perversos e de chocante desonestidade porquanto são praticados pelos que foram eleitos para respeitar os limites dos outros poderes, o que implica serem particularmente exigentes consigo e com os seus. Não é, manifestamente o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, nem do seu apoiante António Barreto, que interpretam a lei segundo o seu interesse, sem limites. Que se colocam permanentemente na posição do soberano atrevido e do truão irresponsável.

A importância e o foco da mudança de regime que o artigo de António Barreto evoca no título não reside, contudo, apenas na corrupção constitucional e no abuso de poder de Marcelo Rebelo de Sousa que, sendo graves, são uma consequência de uma prática que se tem vindo a impor nas chamadas democracias liberais do Ocidente, cada vez menos democracias, menos liberais e mais totalitárias, iliberais e populistas.

Regimes que têm sido definidos, à falta de melhor, por democracias iliberais — em que os cidadãos votam para uma assembleia que os devia representar, mas em que o poder de facto reside noutras instâncias, capturado por “presidentes”, presidentes de estados, de corporações financeiras e da indústria, de instituições, por manipuladores de opinião, civis e religiosos.

Marcelo Rebelo de Sousa é mais um na linha desse tipo de políticos populistas que incluem personagens como Reagan, como Bush jr, Obama, Blair, Boris Johnson, como João Paulo II ou o bispo da IURD, como Trump, ou, recentemente, como Ursula Von Den Leyen e Zelenski.

É o surgimento destas novas personagens como figuras de efetivo e real poder que carateriza os regimes políticos no espaço civilizacional que reuniu a tradição e a filosofia grega, inglesa e francesa que eram, sublinhe-se, regimes aristocráticos, em que o soberano (mesmo que formalmente presidente de uma república) se deificava, exercia o seu magistério de forma distante, raramente sujava as mãos e se expressava através de vassalos, o mais eficaz dos quais era o truão. O truão, uma palavra de origem provençal, era sustentado pelos reis, pago para fazer passar com zombarias e bobagens, sem tumulto e de forma indolor, as ações mais subtis e perversas do exercício do poder real.

Os novos poderes, os novos regimes a que A. Barreto associa Marcelo Rebelo de Sousa, têm como novidade essencial a tomada do poder pelos truões. Os truões deixaram de ter um soberano para quem trabalhavam e passaram a ter eles o poder. Um processo que já havia sido previsto por George Orwell em O Triunfo dos Porcos e que tem levado vários atores ao poder real, Reagan, Trump, Johnson, Zelenski. Marcelo Rebelo de Sousa era, recorde-se, um popular comentador político nas televisões!

O truanismo de Marcelo Rebelo de Sousa manifestou-se em pelos menos três casos exemplares. O primeiro na triste viagem de salamaleques a Londres para celebrar o Tratado de Aliança Luso-Britânico. O tratado é tudo menos merecedor de hinos e cortesias de dobra da espinha por parte de Portugal. O tratado serviu os interesses dos ingleses, que utilizaram Portugal continental como base de combate a Napoleão e passaram a ter direito ao comércio do Brasil. O tratado transformou (ou oficializou) Portugal numa colónia inglesa, o que não é motivo para os ademanes de Marcelo Rebelo de Sousa perante uma outra figura de decoração, Carlos III, ademanes, vénias e sorrisos que transmitem a mensagem que Portugal e os portugueses se sentem muito bem, felizes, como fiéis servidores e vassalos de suas majestades britanicas. Marcelo Rebelo de Sousa pode ter o dorso moldado para servir de montada, mas não essa atitude não consta do cartão do cidadão.

A segunda exibição truanesca ocorreu com a visita do Papa, durante a Jornada da Juventude: ver um Presidente a fazer de sacristão não é um bom estímulo para nós, enquanto portugueses, nos interrogarmos sobre o papel das várias instituições na nossa sociedade. A beatice de Marcelo pode ser-lhe confortável, mas revela falta de respeito pela responsabilidade individual dos portugueses que decidem por si, segundo o seu livre arbítrio. Os que não pertencem a um rebanho e dispensam pastores não se revêm nestas atitudes.

Por fim, esta risível (talvez seja o melhor qualificativo) visita a Kiev. Em termos políticos é uma prova de vassalagem, de truanismo: o presidente de Portugal está com os Estados Unidos, como Durão Barroso já estivera com Bush na invasão do Iraque e Santos Silva havia estado com Trump a apoiar Guiadó na Venezuela. A visita está nessa linha de vassalagem de um truão. E, não satisfeito com essa tarefa, Marcelo Rebelo de Sousa atribui o colar da Ordem da Liberdade a Zelenski! O qual, suprema ironia, recusa porque é modesto e não quer ficar como único responsável pelo desastre que se prevê venha a ser o futuro da Ucrânia. Nem com a glória, na versão otimista. Por fim, declara que as suas palavras e atitudes comprometem Portugal e os portugueses no seu todo e para sempre! Assim nega o presidente que exerce a função num regime de liberdade, logo de pluralidade, o direito à diferença. A mudança de regime detetada por António Barreto não parece trazer nem liberdade, nem responsabilidade, nem senso das realidades, nem respeito pelos direitos dos cidadãos.

Mas o truanismo, a farsa da atribuição da Ordem da Liberdade a Zelenski nem assenta na personagem Zelenski, nem no processo que o levou ao poder, e que ali o mantém, nem na natureza do regime ucraniano, mas sim na corrupção feita por Marcelo Rebelo de Sousa do conceito de Liberdade que a atribuição (falhada ou não) da Ordem significa a vários títulos. O primeiro dos quais é o presidente da República Portuguesa, professor doutor, constitucionalista e político de relevo desde a mais tenra idade, confundir Liberdade — um valor ético — com Independência — um valor político.

Na Ucrânia o regime no poder luta pelo que entende ser a Independência política e pelos interesses a ela associada. Não luta pela Liberdade. O regime ucraniano e os seus dirigentes não clamam por liberdade (que abafaram): clamam por integração em instituições multinacionais que lhe retiram liberdade sob a forma de parcelas de soberania. Em última estância, o presidente português ofende os ucranianos (não colocando como exigência da perda de soberania que eles se pronunciem livremente) e confunde os portugueses com o abuso da entrega da Ordem da Liberdade a quem pede sujeição, mesmo com o pretexto de se defender de uma invasão, esquecendo o que fez ou não fez para a provocar ou para a evitar. As causas da guerra são não temas para os fiéis que cumprem o seu dever de presença.

A contradição final: Quem impede que a Ucrânia e Zelenski entrem para NATO e para a União Europeia não é a Rússia, são a NATO e a União Europeia que negam a liberdade da Ucrânia, não a recebendo. Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de um Estado membro da NATO e da U E, outorga a Ordem da Liberdade a um Estado a que os seus parceiros negam a liberdade de aderir a esses dois esteios da Liberdade! E depois ri-se tira uma selfie. Em que gaveta, caixote ou armário ucraniano estará metido neste momento o colar da Ordem da Liberdade?

O truanismo segue impante e sem se deter com ninharias.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Cavaco Silva – Uma assombração

(Carlos Esperança, in Facebook, 21/05/2023)

Ontem, para fazer esquecer a melhoria da perspetiva da notação da dívida soberana pela agência americana Moody’s, surgida na véspera (ver aqui), apareceu a liderar a oposição de direita o rancoroso Professor Aníbal.

Substituiu Marcelo, convicto de que, à semelhança das águas residuais, que podem ser recicladas, os ativos tóxicos podem ser branqueados.

Aníbal Cavaco Silva, catedrático de Literatura pela Universidade de Goa, Grande Colar da Ordem da Liberdade por desvario de Marcelo, não se livrará do passado onde teve a sorte de as intrigas de Marcelo e as assinaturas falsas o fazerem, na Figueira da Foz, presidente do PSD contra o democrata João Salgueiro.

Marcelo, Júdice e Santana Lopes fizeram-no PM; Marcelo, Durão Barroso e Ricardo Salgado, ingratamente abandonado, prepararam na vivenda do último a sua candidatura vitoriosa a PR.

Mas não se julgue que o político videirinho foi apenas um salazarista beneficiado com a democracia, a que pretendeu abolir, conluiado com Passos Coelho, os feriados identitários do País, 5 de Outubro e 1.º de Dezembro.

Com o reiterado absentismo na Universidade Nova, para dar aulas na Católica, obrigou o reitor, Alfredo de Sousa, que o fizera catedrático, a levantar-lhe o processo disciplinar que o despediria por faltas injustificadas. Teve a sorte de ter como ministro da Educação João de Deus Pinheiro que lhe relevou as faltas e receberia em recompensa o Min. dos Negócios Estrangeiros.

O ressentido salazarista não foi apenas venal na docência, “mísero professor” no léxico cavaquista, foi igualmente no negócio das ações da SLN, para ele e filha, e no suspeito negócio da Vivenda Gaivota Azul, na Praia da Coelha.

Apesar de exigir que se nasça duas vezes para alguém ser tão sério como ele, há boas razões para pensar que sobra uma. Os seus negócios foram tão nebulosos como as razões do preenchimento da ficha na Pide, com erros de ortografia.

Ontem, o Professor Aníbal veio bolçar o ódio que o devora, depois de ter sido obrigado a dar posse ao primeiro Governo de António Costa, de ter então esbracejado e denunciado à União Europeia o perigo de um PM apoiado pelo PCP e BE. Exigiu que António Costa pedisse a demissão, apareceu nas televisões, rádios e cassetes piratas, e regressou aos sais de fruto enquanto a oposição de direita continuará a ser liderada por Marcelo.

O homem é assim, o salazarista inculto e primário que o marcelista culto, empático e igualmente perverso está a substituir com mais êxito.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.