Vacinas e UE: já nem gananciosos conseguimos ser

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 08/02/2021)

Daniel Oliveira

Depois de despejar dinheiro no desenvolvimento da vacina, a UE depende dos “melhores esforços” das farmacêuticas. Agora, não se trata de nacionalizar ou expropriar. Trata-se de receber em tempo útil aquilo que se pagou. Com a cedência das patentes a preços decentes ou libertando-as, como permite a Declaração de Doha, para as produzir. Julguei que a Europa tinha mostrado ganância, não garantindo vacinas para os países pobres. Mas a fraqueza perante as grandes empresas já nem defende os países ricos. Mendiga o que pagou.


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Escrevi, no Natal, que tudo se preparava para que os países mais pobres ficassem de fora das contas das vacinas contra a covid-19. Que os países mais ricos trataram de si e não garantiram um sistema que permitisse a mais rápida vacinação do máximo de pessoas em todo o planeta. E que isso tinha um futuro: o encerramento das fronteiras do primeiro mundo para se defender da pobreza infetada. Estava a léguas da verdadeira dimensão do problema. Longe vão os tempos em que os Estados do primeiro mundo tratavam de si. Não tinha consciência, devo confessar, da fragilidade dos contratos que estavam a ser assinados com as grandes farmacêuticas. Como não são integralmente públicos, não sou inteiramente culpado.

Como todos sabem, a muito elogiada e rápida caminhada para a vacina foi financiada por apoios públicos nunca vistos. Como se recorda aqui, os riscos ficaram totalmente cobertos pelos Estados e pela UE. Da fase de investigação e desenvolvimento aos seguros de risco, tudo foi garantido às farmacêuticas. Os países mais ricos queriam acelerar o processo e garantir para si a primeiras boias de salvação. A pressão política era grande e compreende-se. Mas deixaram as patentes incondicionalmente nas mãos das farmacêuticas, oferecendo-lhes numa bandeja todo o poder de gerir a oferta, apesar do financiamento público estratosférico que receberam. Saiu-lhes a sorte grande: o CEO da Pfizer vendeu uma parte das suas ações depois dos primeiros ensaios positivos e Moderna e Pfizer prometem encaixes financeiros de milhares de milhões aos seus acionistas.

Disse-se que a nova Comissão Europeia tinha nesta crise o teste em que os seus antecessores chumbaram, quando chegou a crise financeira. A reprovação é clamorosa. É o investigador-chefe do Centre for European Policy Studies que o diz: “é claro que a compra conjunta de vacinas pela União Europeia falhou.” De tal forma clamorosa que o Reino Unido consegue, neste momento, vender sem qualquer dificuldade as vantagens do Brexit. Já nem falo da figura que fazemos ao lado da Rússia e da China, que aproveitam a suas vacinas para fazer diplomacia.

Depois de despejar rios de dinheiro público no desenvolvimento da vacina, a União depende dos “melhores esforços” das farmacêuticas. Charles Michel insinua que os laboratórios estão a gerir a produção e distribuição em função dos seus interesses comerciais. Mas, perante sucessivas violações do contrato, que podem nem sequer o chegar a ser de tal forma são curtas as defesas de quem pagou adiantado, sobra a ameaça de litigância em tribunais. Neste momento, servem para nada.

Os mais otimistas fazem coro com os apelos de Tedros Ghebreyesus, para que as farmacêuticas disponibilizem a “receita”, aumentando rapidamente a produção que salvará muitas vidas. Não desmereço o esforço e junto-me a ele. Mas já não acredito no Pai Natal. Espero mais do que apelos. O poder de meia dúzia de grandes empresas não se pode sobrepor à vida de milhões de vidas. Para os que só entendem o discurso do mercado, o poder de meia dúzia de empresas não se pode sobrepor à reabertura da economia global. A urgência de vacinar e até de fazer atualizações por causa de novas variantes não permite que se fique à espera que as farmacêuticas temam litigância nos tribunais. Seguramente que lhes compensará.

Enquanto morrem pessoas, há inúmeros laboratórios por essa Europa fora que não estão a produzir uma única vacina, numa assombrosa exibição de desperdício de recursos. É preciso produzir mais e mais depressa. Não se trata de nacionalizar ou expropriar. Trata-se de garantir que se recebe em tempo útil aquilo pelo qual se pagou. Produzindo, como outros países fizeram no passado, o que eles estão a racionar com perda de vidas. Com a cedência das patentes a preços decentes ou libertando-as. Nada de radical. 

Declaração de Doha, de 2001, reconheceu o direito de os governos tomarem as medidas necessárias para eliminar patentes e outras barreiras de propriedade intelectual, de forma a dar prioridade à saúde pública sobre os interesses comerciais. Não é de ameaças de litigância que precisamos. É da utilização dos instrumentos internacionais para impor a saúde pública aos interesses de muito poucos.

Como se escreve neste artigo, “Os Estados garantiram patentes para as suas empresas, colocando um gargalo na distribuição e assegurando que ficavam no primeiro lugar da fila para receber a vacina. O regime de oligopólio assim criado explora o desequilíbrio colossal entre uma procura global e uma oferta reduzidíssima.” Com este processo, julguei e lamentei que a Europa tivesse mostrado de novo a sua ganância, não encontrando formas de garantir que os países pobres também tinham acesso às vacinas. Descubro agora que nem de si tratou. A fraqueza do poder político perante as grandes empresas já nem sequer os países mais ricos consegue defender. Paga e depois mendiga o que pagou.

Alemanha já fez saber que não pretende ficar amarrada à estratégia da UE e procurará diversificar as opções de compra, provavelmente indo ter com russos e chineses. Não é difícil prever que, no fim, serão os países mais pequenos e mais pobres da União Europeia a ficar amarrados à incompetência da Comissão. Como é habitual, aliás. E os seus respetivos governos não deixarão de ser responsabilizados por isso. A Comissão também não, mas essa não depende do voto dos povos. Pode ser incompetente à vontade.


A inútil grandeza das nações

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 09/05/2020)

Miguel Sousa Tavares

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A Alemanha deu muito à Europa: poetas, romancistas, músicos, maestros, pintores, filósofos, estadistas, inventores, cientistas, médicos, desportistas. E a Alemanha fez muito mal à Europa: devastou-a duas vezes, do Atlântico a Moscovo, no século passado. Da primeira vez, já ninguém se lembra ou é capaz de explicar porquê, não fosse para testar a superioridades dos canhões Krupp. Da segunda vez, para vingar a rendição humilhante de Versalhes, mas também, é forçoso reconhecê-lo, para testar a crença na superioridade da raça alemã, mobilizada por um medíocre líder, mas superiormente proposta nas imagens de Leni Riefenstahl. Mas, após 1945, uma Europa destruída pela demência alemã foi generosa perante uma Alemanha vencida e igualmente destruída. Os exércitos aliados vencedores detiveram o Exército Vermelho a meio do território alemão e, numa Berlim isolada e sitiada pelos russos, montaram uma inédita e incansável ponte aérea, que permitiu que o estatuto de Berlim Ocidental livre e a República Federal Alemã pudessem viver e prosperar durante 35 anos fora da Cortina de Ferro. O Plano Marshall, dos americanos, permitiu à Alemanha, em pé de igualdade com as nações que Hitler havia ocupado e destruído, começar a reerguer-se das ruínas da guerra. Os empréstimos que então lhe foram concedidos, contendo uma cláusula que lhe permitia ir amortizando-os apenas à medida que cresciam as suas exportações, garantiu-lhe não ser sufocada pelo serviço da dívida — como, por exemplo, Portugal e a Grécia foram na crise de 2008-14 — e, simultaneamente, fundar a sua reconstrução económica no sector exportador, fazendo dela a potência que hoje é nesse campo. Ao mesmo tempo que, proibida de deter Forças Armadas, pôde canalizar todo o investimento público para a economia e o sector social, tornando-se uma das maiores potências económicas mundiais. Enfim, a criação da então Comunidade Económica Europeia, de que a RFA foi um dos seis membros fundadores, pela mão de Konrad Adenauer — que, juntamente com Willy Brandt e Helmut Schmidt, foi um dos três grandes estadistas alemães e europeus do século XX —, deu à Alemanha um mercado comum, isento de tarifas, para escoar os seus produtos.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Vem isto a propósito da infame sentença do muito venerado internamente Tribunal Constitucional alemão, de Karlsruhe, conhecida esta terça-feira. O Tribunal julgou e deu razão a uma queixa apresentada em 2015 (não estamos sós nos atrasos judiciais!) por um “clube de elite” de cerca de 2 mil juristas, economistas e outros alemães de bem com a vida que invocavam a violação do “princípio da proporcionalidade”, inscrito na Constituição alemã, pelo facto de o Banco Central Europeu ter então decidido acorrer à crise das dívidas soberanas comprando quantidades imensas destas, de modo a evitar a total falência dos Estados endividados. Foi o chamado quantitive easing, de Mario Draghi, na sequência do que também a Reserva Federal americana havia feito e que, junto com a célebre frase de Draghi (“farei tudo o que for necessário”), permitiu salvar o euro e evitar que a Europa do euro entrasse na modalidade do “salve-se quem puder”. E é claro que os alemães podiam: enquanto os juros da dívida pública portuguesa escalavam até aos 12% e os da grega até aos 20%, os da dívida alemã mantinham taxas negativas — os investidores pagavam para ter dívida alemã. Tal qual como agora, assim que foi conhecida a sentença do Tribunal Constitucional alemão: os juros de todos os países do sul da Europa, os mais endividados, deram imediatamente um salto para cima, com destaque para a Itália, enquanto os juros da Alemanha recuavam para terreno ainda mais negativo. Porque os investidores desconfiam, e provavelmente com razão, que se o Tribunal alemão põe em causa as compras de dívida do BCE feitas no passado, também irá pôr em causa as mesmas compras já anunciadas agora e já em marcha pelo mesmo BCE. Ou seja: como é assim que o casino funciona, aqueles juízes, pomposamente vestidos com um traje misto de esbirros do Tribunal do Santo Ofício e Teatro de Marionetes, estavam candidamente a ler uma sentença que tinha o dom de dar uma inestimável ajuda às empresas e à economia alemã, já de si a mais rica da Europa, ao mesmo tempo que ajudavam a tornar ainda mais insuportável a vida actual de milhares de empresas e milhões de trabalhadores que se debatem com uma situação de crise inimaginável, para a qual em nada são responsáveis. Assim é fácil, como se diz na gíria e passe o palavrão, “cagar sentenças”.

Resumindo e relembrando: a Europa, que a Alemanha destruiu duas vezes num século, foi capaz de lhe perdoar, de a salvar de cair sob a bota de Estaline e deu-lhe os recursos financeiros e as condições para se reconstruir. E a União Europeia deu-lhe o mercado que fez dela o país mais rico da Europa. Certamente que também houve muito mérito dos alemães, da sua lendária capacidade de organização, de trabalho e de resiliência.

Mas há um problema histórico com os alemães: entregues a si próprios e aos seus demónios, eles têm uma tendência para a autodestruição. Pelo contrário, em 75 anos de resgate europeu, a Alemanha viveu o seu mais longo período de paz e de prosperidade. Deve-o aos Estados Unidos, que lhe garantiram a paz, e à Europa, que lhe garantiu a prosperidade.

Mas acontece ainda que a Alemanha é membro da UE e membro do Eurogrupo e de ambas as condições tem retirado benefícios como nenhum outro. Porém, são inúmeras as ocasiões em que políticas de interesse comum ou, pelo menos, largamente maioritário, esbarram nas invocadas “impossibilidades constitucionais alemães”, de natureza económica: a Constituição não lhe permite ter inflação, não lhe permite ter défices, não lhe permite ser solidária com os outros ou consentir que instituições comunitárias, como o BCE, tomem decisões que indirectamente acabam por convocar a solidariedade financeira alemã, em violação do “princípio da proporcionalidade”. E, então, nessas ocasiões, os juízes de Karlsruhe e muitos outros alemães cujas ideias eles reflectem, esquecem-se que o seu país pertence a uma organização que reúne 25 outras nações, ligadas por algumas leis comuns, um parlamento comum, um conselho de governantes comum, uma comissão executiva comum e um tribunal comum — cujas sentenças e cuja legislação aplicável está acima das venerandas casacas vermelhas dos juízes de Karlsruhe. Se é que a Alemanha quer continuar a pertencer à União Europeia. E eu acho que quer, porque as alternativas — os Estados Unidos, de Trump, a Rússia, de Putin, ou esta China, que estamos a descobrir, assustados — não só não são atractivas, como não lhe consentiriam nada semelhante ao papel de liderança que tem na Europa.

Não esqueço que a Alemanha foi determinante na ajuda a Portugal para a estabilização da democracia a seguir ao 25 de Abril, quando Cunhal garantia a Oriana Fallaci que jamais teríamos aqui “uma democracia burguesa”. E não esqueço também que a Alemanha é hoje o maior contribuinte líquido para a UE, mas é natural que o seja porque é a nação mais rica dos 26 e porque não é do seu interesse que mercados importadores dos seus bens vão à falência. Podemos todos, aqui no sul, voltar a andar em modelos populares dos tempos de hoje, como os Seat Ibiza, os Fiat 127 e os Renault 5 de outrora, mas não creio que os alemães gostassem. É difícil explicar isto a um finlandês ou a um holandês, mas a um alemão não devia ser. Lembra-me de um jantar a que fui na embaixada alemã em Lisboa, na época da outra crise. Fiquei sentado ao lado de um alto responsável do Bundestag que, a certa altura, me perguntou, naquele tom desagradável de quem vai dar lições a um menino mal comportado e como se eu, pessoalmente, lhe devesse dinheiro:

— Mas, afinal, como é que vocês se endividaram assim?

Fazendo o meu melhor para me conter, respondi:

— Olhe, reparou nos carros que estavam lá fora, à entrada da embaixada?

— Não.

— Eu reparei: BMW, Mercedes, Audi. Foi assim, em grande parte, que nos endividámos: a comprar-vos carros e outras coisas, a crédito. Crédito vendido pelos bancos alemães aos nossos bancos. A nossa ruína é a vossa fortuna.

Não se trata de querer aplicar à Alemanha a célebre receita para a prosperidade económica de Mariana Mortágua: “Perder a vergonha de ir buscar o dinheiro onde ele está.” Aliás, nem teríamos armas para o assalto. Mas trata-se de insistir e insistir e insistir em fazer ver aos alemães que aquilo em que eles são europeus é muito melhor do que aquilo em que são apenas alemães. Como todos nós, pois esse é o projecto e o destino da União Europeia. Esse ou nenhum outro.

PS 1. Ah, grande ciganito, grande Ricardo Quaresma! Eu, como todos os portistas, sempre venerei este génio da bola, vibrei com as suas fintas, os seus golos que desafiavam a geometria, indignei-me com os truques de secretaria levados a cabo para o tirar do jogo. Mas este golaço que ele agora marcou na capoeira escancarada do galo Ventura, deixando-o no fundo das redes, depenado, esganiçado, ridículo, esbracejando de impotente réplica — ao ponto de apelar às “autoridades” que calassem quem assim o expôs à humilhação pública — este, caro Ricardo Quaresma, foi um golo de levantar o estádio!

PS 2. Foi comovente assistir à forma como o poder político assinalou o primeiro dia dedicado à Língua Portuguesa no mundo. Quatro assessores de outros tantos ministros escreveram-lhes um texto conjunto carregado daquelas banalidades patrióticas que em nada de substancial diferem das do antigamente, e logo acrescentadas por outras banalidades semelhantes de Costa e Marcelo. Mas a única homenagem e o único serviço que poderiam prestar à língua portuguesa e que é há décadas reclamado pela imensa maioria dos que, em Portugal, a utilizam e a defendem — a revogação desse vergonhoso Acordo Ortográfico de 1980, imposto à traição a todos os portugueses por um grupo de sábios desocupados — esse, como sempre, ficou adiado. Por inércia, por cobardia, por falta de visão. Mas, sobretudo, por falta de amor a esta língua maravilhosa que os nossos pais e avós nos deixaram para nos servir e para nós defendermos. Para o ano, por favor, poupem-nos a igual hipocrisia.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia