Os trabalhadores do ocidente foram os únicos vencedores da revolução russa 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 31/10/2017)

 

Daniel

                        Daniel Oliveira

 

Quem escreve a história são os vencedores e a história do movimento comunista deixou, há muito tempo, de contar com a narrativa dos próprios comunistas. É da vida e a única coisa que lamento é que esta história tenda a ignorar o colossal contributo intelectual das correntes marxistas para o pensamento político e económico. Do próprio Marx a Gramsci, passando por Lukács, Hobsbawm, Adorno, Trotski, Rosa Luxemburgo, Engels, Lenine, Althusser e dezenas de tantos outros. Apesar da cartilha dominante, tão pobre como a cartilha marxista vendida pelo comunismo oficial que ainda sobrevive, poucos serão os movimentos ideológicos com mais extensos, abrangentes e profundos contributos para o pensamento universal. Saber que o pensamento marxista não é hoje objeto de estudo nas faculdades de economia dá uma dimensão do apagão intelectual e histórico que se operou, de forma consciente e premeditada, na nossa inteligência coletiva. É impossível compreender o século XX sem compreender o papel político e intelectual que tiveram as várias correntes marxistas ou pós-marxistas. E quem não compreende o século XX não está apetrechado para compreender o século XXI.

Resumir, como se tornou hábito preguiçoso, a história do comunismo à experiência estalinista e comparar, como se tornou quase óbvio, o comunismo ao nazismo, não compreendendo a profundidade, universalidade e durabilidade totalmente distintas de um e de outro fenómeno, ficando apenas por uma contagem de vitimas, é pura ignorância histórica. Ainda assim, é impossível qualquer debate sobre o movimento comunista que não tenha a experiência soviética como centro da análise. Cem anos depois, o balanço pode ser feito com alguma serenidade.

Para qualquer tipo de julgamento moral da revolução russa é importante, apesar de tudo, ter em conta que ela não corresponde a uma transição de uma sociedade democrática e livre para um regime socialista sanguinário. A revolução russa começou, mesmo com todos os seus crimes, por corresponder a um processo inimaginável de libertação de milhões de seres humanos de um sistema feudal não menos criminoso. Mesmo aos olhos da avaliação mais severa, a revolução russa foi, no momento e no lugar em que se deu, um brutal avanço histórico. Apenas comparável à revolução francesa (também ela recheada de crimes) que a precedeu e sem a qual o próprio comunismo é incompreensível.

Os dados hoje conhecidos permitem ter como certa uma verdade desconfortável para a narrativa oficial dos partidos comunistas tradicionais e de alguns movimentos comunistas críticos do estalinismo: mesmo tendo em conta a natureza revolucionária do poder e a guerra civil que marcou os primeiros anos do poder dos bolcheviques, quase toda a cultura política repressiva, arbitrária e paranoica que marcou o terror estalinista já estava presente em Lenine e Trotsky. O que muitas vezes me tem levado a dizer, a trotskistas, que eles são apenas os estalinistas que perderam. Somam, portanto, dois defeitos.

A experiência estalinista que sucedeu ao período inicial da longa experiência socialista na URSS, uma das mais mortíferas e criminosas que a história conheceu, e os anos cinzentos de normalização conservadora de Kruschev, Brejnev e os coveiros finais, não me merecem o mesmo olhar cuidadoso que empresto ao período revolucionário, sempre mais difícil de julgar. Para os povos que a viveram, a experiência comunista foi uma tragédia humana, social, económica e até cultural. E não há como minorar o rasto de crime de deixou à sua passagem.

Mas há um outro lado da experiência soviética: os seus efeitos nas sociedades industrializadas e colonizadas. A própria ideia de que aqueles que sempre foram apenas objetos do poder pudessem sonhar sequer ser sujeitos desse poder foi esmagadora para alimentar a revolta popular. O efeito colossal que essa vitória teve junto de milhões de trabalhadores explorados até aos limites da sobrevivência em todo o mundo iria determinar as sociedades em que vivemos, marcando o movimento operário nas sociedades industrializadas do ocidente, os movimentos anticoloniais em África e na Ásia e a construção do que viria a ser o Estado Social moderno. Resumir os efeitos da revolução bolchevique ao papel que teve no império russo e nos países que viriam a estar ligados ao bloco socialista é não compreender o papel que esta revolução teve no mundo e na forma como os trabalhadores passaram a olhar para o seu lugar no processo histórico e na sociedade.

Penso não arriscar muito se disser que o Estado Social e grande parte dos direitos dos trabalhadores, tratados como gado no final do século XIX, nunca se teriam generalizado e aprofundado sem a revolução russa e o fantasma do perigo comunista. Serei ainda mais cru: sem a sensação de perigo, até de perigo físico, que o terramoto da revolução russa e as suas réplicas por todo o mundo provocaram nas burguesias nacionais nunca os trabalhadores teriam conquistado os direitos e a liberdade que conquistaram nas democracias ocidentais.

Este legado da revolução russa não será moral e politicamente mais relevante do que os rios de sangue que a experiência comunista fez correr onde chegou ao poder. Mas não pode ser ignorado. Num tempo em que a força do trabalho volta a estar sujeita a toda a arbitrariedade, isto leva-nos a uma dúvida inquietante: sem este medo, estamos condenados a regressar ao paradigma de exploração que nos fará regressar ao início do século XX?

A imposição da lei e da ordem, que leva os mais pobres a não se apossarem pela força dos bens dos mais ricos, depende da repressão e do medo. É o que impede que vivamos numa selva onde manda quem tem mais força física. O susto da revolução russa levou mais longe este medo e os seus efeitos: criou na burguesia, verdadeira detentora de todos os instrumentos repressivos, um medo que só fora experimentado pelos trabalhadores. O capitalismo salvou-se e prosperou na Europa, consciente desse risco e criando condições para partilhar com os trabalhadores uma pequena parte da prosperidade e do bem estar e dando-lhes instrumentos institucionais para desenvolverem a sua luta dentro do quadro legal e democrático.

O fim do perigo comunista e a ausência de uma alternativa devolveram ao poder económico uma sensação de total impunidade. Estamos, no equilíbrio de poder e na distribuição de rendimentos entre trabalho e capital, a recuar um século. E quanto maior é a sensação de impunidade mais arrojado é o seu comportamento. Ainda não vimos nada no caminho para a escravidão. Porque o poder económico sem medo porta-se como todo o poder sem freio.

Qual a cor do sangue da Judite?

(Joaquim Vassalo Abreu, 28/06/2017)

JUDITE

Eu sei, mas só o revelarei no fim do texto, e quem o antecipar estará a fazer batota e isso não vale!

A mim há duas coisas que sempre me fizeram confusão: uma a cor do meu sangue e outra a cor do cavalo branco de Napoleão! E coisas mais banais não haverá, não acham?

Confusos? Eu explico: em primeiro lugar porque sempre me convenci que o meu sangue era vermelho e assim o constatava quando, em pequeno, dava uma “topada” (batia com o dedo grande do pé numa pedra ou outro obstáculo) e dali jorrava um sangue vermelho que só a sulfamídica terra curava. Vermelho, sem dúvida! A outra era saber da cor do cavalo branco do Napoleão quando ele era branco!

Era branco o cavalo, tal como o sangue era vermelho. Duas verdades para mim absolutas! Isso pensava eu…

Pois: isso pensava eu! Mas, mais tarde, quando comecei a namorar com a Graciete, comecei a ouvir dizer que ela era de sangue azul! Azul, perguntei eu? Eu que pensava que ela era do Sporting e, sangue por sangue, o dela era vermelho? Mas depois soube que isso do “sangue azul” era treta, pois não era Portista e era apenas descendente dos Viscondes de Bacelar…Sangue deles, portanto!

Mas depois descobri que o seu sangue era mesmo vermelho, pois eu amiúde bem o via…

Só que agora, há uns dias atrás, deu-se-me de novo um nó no meu occipital quando li na Net aquela notícia da TVI que dizia que o Medina tinha “sangue comunista”, pois era filho de comunistas! “Sangue comunista”? Então, sendo o “azul” uma treta, para além do vermelho, ainda haveria mais espécies de sangue? Não deverá haver quem, não dominando estas coisas dos sangues, não ficasse confuso! E eu fiquei!

E fiquei porque quem estava a dar a notícia era uma tal Judite e, retrocedendo na máquina do tempo, lembrei-me que ela morava por baixo de uma cunhada minha em Gaia e toda a gente sabia que o pai era comunista!

Assim, a TVI, sem o saber(?), abriu uma caixa de pandora e classificou também a Judite com esse novo tipo de sangue…É que a TVI ao reclamar que o sangue do Medina era “comunista”, acabou por dizer, preto no branco, que o da Judite também o era! Achei bonito…

Eu essa expressão nunca tinha ouvido, mas há uma outra que conheço e talvez isso explique e que é a de “estar-lhe no sangue”!

Mas, pensando melhor, sendo essa expressão abrangente que chegue, ela não se poderá aplicar a este caso pois, partindo do princípio de que o sangue é mesmo vermelho, tal resultará numa redundância insanável e numa conclusão óbvia e cuja é: se o ser-se comunista é consanguíneo, eu e outros mais, não o sendo, mas sendo comunistas, que raio de tipo de sangue terei ou terão? Verde, por ser sportinguista? Azul para alguém que é Portista? Neto ou bisneto de Condes e Viscondes?

É que os meus Pais não eram comunistas, nem benfiquistas tão pouco, de modo que eu, não tendo esse privilégio, só poderei ter um sangue vermelho abastardado, por mais que vermelho me sinta, bem ao contrário do Medina que o tingiu de rosado!

De modos que a Judite, certamente bem avisada, tanto pela Prada, como pela Louis Vuitton ou pela Hermes ,e com o seu alto patrocínio, há muito o problema resolveu e fez uma transfusão.

Eu sei que isso lhe provocou algumas sequelas, principalmente na linguagem, na maneira de falar, enfim, mas o seu sangue ficou para sempre LOIRO!

O seu sangue é LOIRO e o Loiro está-lhe no sangue…Um sangue loiro varrido!


Fonte aqui

WannaCry e a rede que nos sufoca

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/05/2017)

 

A distribuição de ransomware, que encriptou dados de muitos de milhares de computadores exigindo o pagamento de 300 dólares em bircoin para o seu desbloqueio não tem, na sua metodologia, nada de novo. É um ataque corriqueiro e pouco sofisticado. Tão simples que, apesar da sua dimensão, foi travado com dispêndio de apenas 12 euros, por um informático de 22 anos. Apesar do aparato, não terá rendido mais de 32 mil dólares.

A razão para o alarido tem a ver com a dimensão da coisa, que, segundo a Europol, não tem precedentes. O WannaCry correspondeu a 45 mil ataques em 74 países, passado por Espanha, Rússia, Ucrânia, Taiwan, EUA, Reino Unido, China, Itália, Vietname ou Portugal. Afetou computadores com o sistema operativo Windows, da Microsoft. De um hospital oncológico indonésio à PT portuguesa, as vítimas foram variadas e espalhadas por todo o globo. Da Renault, que teve de parar a produção em várias fábricas, ao Serviço Nacional de Saúde britânico, que foi obrigado a encaminhar pacientes para outros serviços.

Só quando deixarmos de olhar para a rede e para a globalização como fenómenos intrinsecamente bons, e não como factos históricos com efeitos contraditórios, poderemos gerir algo que nos deixa tão expostos.

É assustadora a displicência com que empresas e instituições públicas lidam com os seus sistemas informáticos, mesmo sabendo que guardam informação sensível dos cidadãos e que uma ruptura no sistema pode ter efeitos dramáticos nas vidas das pessoas. O ataque aproveitou vulnerabilidades conhecidas. Muitos dos utilizadores institucionais não aplicaram atempadamente as atualizações de segurança ou usam software que já não é suportado pela Microsoft. Quando se pensa que entre as vítimas do ataque estão as maiores multinacionais do mundo e instituições públicas fundamentais de grandes potências europeias temos toda a razão para temer pelo futuro. Outro debate paralelo mas urgente é sobre a continuação de utilização, por parte de organismos públicos, de software proprietário.

É evidente que empresas e Estados ainda não interiorizaram a sua total dependência em relação aos meios informáticos, cometendo erros grosseiros de segurança. Se um ataque tão simples, tão pouco sofisticado e tão fácil de travar, conseguiu, pela sua dimensão, ter estes efeitos, imaginem o que pode o ciberterrorismo mais bem preparado e direcionado. E isto leva a outro debate, para o qual, não havendo soluções, tem de haver reflexão. É um debate continuo, muito abrangente e que ajuda a explicar a ansiedade que dá força a fenómenos como Trump e Le Pen: nunca fomos tão vulneráveis como hoje.

Durante muito tempo vivemos entusiasmados com um mundo cada vez mais pequeno. Hoje, percebemos que a proximidade pode ser claustrofóbica. Assumimos que estarmos todos ligados é genericamente positivo. Também razões para esse otimismo, apesar da proximidade ter favorecido a construção de comunidades de afinidades eletivas que deixaram as pessoas com mais mundo mas menos acesso à diversidade. Mas esta rede incontrolável deixa a economia, a lei e a privacidade muito mais vulneráveis. O mundo em rede desafia tudo o que sabíamos sobre a forma de exercer o poder e de regularmos a nossa vida social. Dizer isto não é um apelo a um impossível e indesejável regresso ao passado. A minha vida profissional melhorou tanto que tal ideia nunca me passaria pela cabeça. É um apelo a contrariarmos o tonto deslumbramento com o progresso, que sempre impediu os humanos de se preparem para os perigos do futuro.

Só quando deixarmos de olhar para a rede e para a globalização como fenómenos intrinsecamente bons, e não como factos históricos com efeitos contraditórios, poderemos gerir, enquanto comunidade humana, algo que nos deixa tão expostos. Foi sempre o pessimismo que nos avisou para os perigos do progresso e nos ajudou a encontrar as melhores formas de os prevenir.


Contactos do autor: Email