A viropolítica em que vivemos

(António Guerreiro, in Público, 31/12/2021)

António Guerreiro

A palavra mais “viral” do ano, aquela que mais se propagou através dos meios de comunicação de massa, é a mesma do ano anterior: a palavra “vírus”. A partir do momento em que a propagação do coronavírus se tornou pandémica, a atenção mental e mediática a este acontecimento ganhou uma escala mundial e “viralizou-se”. Se aos dois estratos de viralidade mencionados — a viralidade biológica de um pedaço de código genético que se infiltra numa célula e a viralidade mediática responsável pela reprodução de certas imagens, ideias, palavras — acrescentarmos a viralidade informática que enlouquece ou aniquila o software dos nossos computadores, entramos numa sobreposição que nos conduz ao “capitalismo viral”, um objecto de análise a que o imaginário político da pandemia deu uma forma mais acabada. Para os meios informáticos, dotados de ubiquidade e postos ao serviço de uma governação securitária, todos nós, cidadãos, somos vírus, inimigos numa guerra permanente. O recente episódio da detenção de João Rendeiro na África do Sul mostra bem a ingenuidade do fugitivo, que pensava que não seria detectado e poderia reconstruir a sua vida num lugar remoto, como o puderam fazer os nazis que fugiram para países da América Latina, onde assumiram uma nova identidade civil.

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Não é de agora que os vírus desempenham um papel importante no imaginário que se desenvolveu em torno de certas teorias políticas. Pensemos, por exemplo, na importância que o conceito de imunidade tem nas elaborações teóricas da biopolítica. E se nos ativermos a um domínio mais literário, anterior à actual “viropolítica”, é obrigatório mencionar o escritor William S. Burroughs, que nos anos 60 do século passado desenvolveu a tese de que a palavra, a linguagem, é literalmente um vírus. A “viropolítica” compreende tanto o activismo viral dos hackers como o império das plataformas e a propaganda ideológica que opera por propagação viral (“propaganda” e “propagação”: a mesma etimologia).

Mas regressemos à actual pandemia e à sua dimensão viropolítica. Ela está a fazer-nos descobrir que uma comunidade de uma zona remota de África pode agir sobre a nossa sociedade hiperprotegida porque o SARS-CoV-2, sujeito a mutações mais prováveis em zonas onde faltam as vacinas, empreende rapidamente uma viagem através do mundo e vem enfraquecer a imunidade que tinha sido alcançada nos países que tinham administrado uma vacinação maciça às suas populações. Um dos mais importantes pensadores actuais da ecologia política e dos efeitos sociais e políticos das mudanças climáticas, o sueco Andreas Malm, faz esta pergunta num dos seus livros (título da tradução inglesa: The Progress of this Storm): “Um agricultor do Burkina Faso pode tomar de assalto os palácios de Inverno do capital fóssil?”. A pergunta serve-lhe sobretudo para, a partir dela, refutar violentamente o discurso sobre o Antropoceno, que atribui à humanidade em geral, a “nós todos”, a responsabilidade pela “tempestade”. Ora, segundo ele, esse discurso é uma mentira piedosa que acaba por ser o principal obstáculo no combate às causas da catástrofe. A hipótese de um agricultor do Burkina Faso ter uma acção directa sobre o mundo ocidental implica que as “revoluções-contra-as causas” resultem de uma mudança de escala e deixem de ser as tradicionais “revoluções-como-sintomas”, como lhes chama Andreas Malm.

Vemos assim como é completamente anacrónica e ineficaz a tentativa de protecção de territórios nacionais como se eles pudessem manter, face à ameaça da pandemia, uma soberania que seria necessário circunscrever nos seus limites imanentes e proteger contra as invasões e as contaminações. A cartografia da epidemia é uma cartografia de propagação. O coronacionalismo não é certamente uma ideologia política, é antes uma tendência inerente à imunidade viropolítica: todas as reacções à globalização convergem para o Estado-nação como um centro de atracção.

Não há hoje nenhum território que não seja um espaço aberto, E este processo de replicação viral sem limites territoriais tem uma afinidade fundamental com o processo de reprodução económica inerente ao capitalismo.

A condição viropolítica dos nossos espaços públicos e económico-políticos não se define apenas pela situação pandémica em que vivemos desde há quase dois anos. De certeza que este não será o último ano que a palavra “vírus”, ou as suas variantes, terá uma propagação “viral”.



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Nós e a epidemia

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 27/02/2020)

Alexandre Abreu

Poucas coisas haverá mais deprimentes, e que mais façam para que a Economia mereça o epiteto de “ciência sombria”, do que discutir tragédias humanas que envolvem a perda de vidas em termos do seu impacto sobre o crescimento económico ou as bolsas de valores. Essa inversão de prioridades e confusão entre meios e fins é, infelizmente, relativamente comum no discurso económico.

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Faz no entanto sentido discutir os efeitos socioeconómicos da epidemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19) para além do seu impacto direto em termos de morbilidade e a mortalidade. E isto porque, como assinalou Daniel Oliveira aqui no Expresso ainda ontem, esta epidemia – como todas as epidemias com uma certa gravidade – tende a desencadear reações de ansiedade coletiva que abalam profundamente a nossa capacidade de organização social.

No verão passado, aquando da greve dos motoristas de matérias perigosas, pudemos aperceber-nos de como são relativamente frágeis as bases logísticas em que assentam as nossas sociedades, com a perspetiva de um cenário de imobilização generalizada e de risco de rutura parcial das cadeias de abastecimento. Quando olhamos agora para o que tem ocorrido em algumas das regiões em que esta epidemia tem vindo a declarar-se de forma mais precoce – na China e em Itália, em particular –, encontramos fenómenos análogos, mas elevados a um nível superior de perturbação: quarentenas forçadas de vilas e cidades, encerramento temporário de escolas e locais de trabalho, cancelamento de eventos públicos, fuga generalizada dos espaços públicos por parte das pessoas.

Nem sequer é certo que estas medidas tenham muita eficácia. Como escreveu também aqui Henrique Monteiro com base num excelente artigo publicado na The Atlantic, é bastante provável que esta epidemia não possa ser contida (dadas as suas características em termos de contágio) e que possa por isso estender-se a uma percentagem elevada da população mundial (40% a 70%, segundo uma estimativa) nos próximos meses. Num tal cenário, a resposta fundamental em termos de saúde pública deverá passar antes pela redução de danos e pelo desenvolvimento de uma vacina no menor espaço de tempo possível. E assim sendo, os atuais esforços de contenção apenas estarão a servir para ganhar algum, provavelmente não muito, tempo adicional.

No programa Choque de Ideias da RTP3, Ricardo Paes Mamede e Fernando Alexandre assinalaram na passada segunda-feira os impactos acrescidos desta epidemia que resultam da integração global das cadeias de valor. Já um documento de trabalho publicado há dias pelo think tank britânico Overseas Development Institute concentra-se nos efeitos sobre os países em desenvolvimento, identificando alguns dos principais canais de transmissão desta crise. Segundo esta última análise, os países mais vulneráveis são aqueles que apresentam maior nível de integração com a China, cujos sistemas de saúde são mais frágeis e que têm menos capacidade de resposta a nível institucional e orçamental: na primeira linha estão países como as Filipinas, o Sri Lanka, o Vietname e diversos países da África Subsariana, como Angola. Mas mesmo esta análise pressupõe um epicentro da epidemia na China que pode tornar-se rapidamente ultrapassado.

Em última instância, os impactos globais desta epidemia vão depender da sua evolução em termos de escala e virulência. Pode ser que o vírus se espalhe pela população mundial mas evolua no sentido de formas menos virulentas e menos fatais. Pode ser que, mediante uma conjugação improvável de esforços de contenção e fatores meteorológicos sazonais, a epidemia se dissipe sem chegar a tornar-se verdadeiramente global. E também pode ser que a atual taxa de mortalidade (case fatality rate), estimada em cerca de 2%-3%, se mantenha relativamente inalterada num cenário em que a epidemia chegue a 50% ou mais da população mundial no espaço de um ano, caso em que podemos estar perante algo não muito diferente da gripe espanhola de 1918 em termos do número total de vítimas.

Especialmente nos cenários mais graves, uma epidemia como esta tem o potencial de puxar tanto pelo pior – o egoísmo – como pelo melhor – a empatia e solidariedade – que existe em cada um de nós. Nem tudo será negativo se contribuir para recordar-nos a nossa humanidade comum, num tempo em que essa ideia fundamental tem sofrido tantos recuos e tantos ataques.

De Itália, país que se tem confrontado especialmente com estas várias questões, chega uma mensagem que deve fazer-nos pensar:

Tu, que compras vinte e oito pacotes de massa. Tu, que procuras desinfetante no mercado negro. Tu, que andas de máscara. Tu, que planeias a fuga do teu filho de uma região onde há dez casos positivos de coronavírus. Não desprezes nunca mais aqueles que fogem da guerra e da fome.

O coronavírus e a comunicação social

(Carlos Esperança, 18/02/2020)

Há quem acuse a comunicação social de não fazer investigação, de substituir as notícias por opiniões e aguardar que, dos tribunais, lhe soprem revelações em segredo de Justiça para que os julgamentos se façam na praça pública quando se duvida de acontecer outro.

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Desta vez, no que respeita ao coronavírus, os jornais mantiveram informados os leitores, a rádio não falhou noticiários e, ao mínimo sintoma, as televisões deslocaram jornalistas e meios técnicos para todos os hospitais onde eram internados viajantes de longo curso, familiares de alguém que tivesse visitado a China ou com qualquer hipótese de ter sido infetado pelo coronavírus.

Ao mínimo sinal de febre, tosse e mal-estar, afligiam-se as redações; na gripe de alguma estudante chinesa entraram em frenesim; a cada espera do veredicto do Instituto Ricardo Jorge ficaram de prevenção equipas noticiosas, mas a desolação foi tomando conta das redações. Um país sem o seu coronavírus, não é um país, é um offshore da pandemia, o deserto de notícias, a frustração de quem queria anunciar um coronavírus português, um evento que nos colocaria ao nível dos países mais avançados no contágio.

Só o público mal-agradecido se regozija com sucessivas deceções das expetativas de um ou dois coronavirusinhos que salvassem a honra cosmopolita do Portugal em inho.

Baldadas que foram 10 suspeitas, era no 11.º caso que rádios, televisões, jornais e redes sociais apostavam para salvar a honra ferida da virgindade epidémica. Descartada a infeção no 11.º caso suspeito em Portugal, instalou-se a desolação, e só as missas, com apelos para não matarem velhinhos, quebraram a monotonia das viagens de longo curso do PR e as suas irrefreáveis declarações.

Há na mórbida procura de sangue, incêndios, desastres e pandemias uma demência que nos conduz à falta de discernimento e indiferença perante catástrofes iminentes que nos podem atingir.

A encenação de tragédias e o medo conduzem um povo à ausência de sentido crítico, ao embrutecimento coletivo e à neutralização da inteligência.