(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/05/2017)
A distribuição de ransomware, que encriptou dados de muitos de milhares de computadores exigindo o pagamento de 300 dólares em bircoin para o seu desbloqueio não tem, na sua metodologia, nada de novo. É um ataque corriqueiro e pouco sofisticado. Tão simples que, apesar da sua dimensão, foi travado com dispêndio de apenas 12 euros, por um informático de 22 anos. Apesar do aparato, não terá rendido mais de 32 mil dólares.
A razão para o alarido tem a ver com a dimensão da coisa, que, segundo a Europol, não tem precedentes. O WannaCry correspondeu a 45 mil ataques em 74 países, passado por Espanha, Rússia, Ucrânia, Taiwan, EUA, Reino Unido, China, Itália, Vietname ou Portugal. Afetou computadores com o sistema operativo Windows, da Microsoft. De um hospital oncológico indonésio à PT portuguesa, as vítimas foram variadas e espalhadas por todo o globo. Da Renault, que teve de parar a produção em várias fábricas, ao Serviço Nacional de Saúde britânico, que foi obrigado a encaminhar pacientes para outros serviços.
Só quando deixarmos de olhar para a rede e para a globalização como fenómenos intrinsecamente bons, e não como factos históricos com efeitos contraditórios, poderemos gerir algo que nos deixa tão expostos.
É assustadora a displicência com que empresas e instituições públicas lidam com os seus sistemas informáticos, mesmo sabendo que guardam informação sensível dos cidadãos e que uma ruptura no sistema pode ter efeitos dramáticos nas vidas das pessoas. O ataque aproveitou vulnerabilidades conhecidas. Muitos dos utilizadores institucionais não aplicaram atempadamente as atualizações de segurança ou usam software que já não é suportado pela Microsoft. Quando se pensa que entre as vítimas do ataque estão as maiores multinacionais do mundo e instituições públicas fundamentais de grandes potências europeias temos toda a razão para temer pelo futuro. Outro debate paralelo mas urgente é sobre a continuação de utilização, por parte de organismos públicos, de software proprietário.
É evidente que empresas e Estados ainda não interiorizaram a sua total dependência em relação aos meios informáticos, cometendo erros grosseiros de segurança. Se um ataque tão simples, tão pouco sofisticado e tão fácil de travar, conseguiu, pela sua dimensão, ter estes efeitos, imaginem o que pode o ciberterrorismo mais bem preparado e direcionado. E isto leva a outro debate, para o qual, não havendo soluções, tem de haver reflexão. É um debate continuo, muito abrangente e que ajuda a explicar a ansiedade que dá força a fenómenos como Trump e Le Pen: nunca fomos tão vulneráveis como hoje.
Durante muito tempo vivemos entusiasmados com um mundo cada vez mais pequeno. Hoje, percebemos que a proximidade pode ser claustrofóbica. Assumimos que estarmos todos ligados é genericamente positivo. Também razões para esse otimismo, apesar da proximidade ter favorecido a construção de comunidades de afinidades eletivas que deixaram as pessoas com mais mundo mas menos acesso à diversidade. Mas esta rede incontrolável deixa a economia, a lei e a privacidade muito mais vulneráveis. O mundo em rede desafia tudo o que sabíamos sobre a forma de exercer o poder e de regularmos a nossa vida social. Dizer isto não é um apelo a um impossível e indesejável regresso ao passado. A minha vida profissional melhorou tanto que tal ideia nunca me passaria pela cabeça. É um apelo a contrariarmos o tonto deslumbramento com o progresso, que sempre impediu os humanos de se preparem para os perigos do futuro.
Só quando deixarmos de olhar para a rede e para a globalização como fenómenos intrinsecamente bons, e não como factos históricos com efeitos contraditórios, poderemos gerir, enquanto comunidade humana, algo que nos deixa tão expostos. Foi sempre o pessimismo que nos avisou para os perigos do progresso e nos ajudou a encontrar as melhores formas de os prevenir.
Contactos do autor: Email