O senhor diretor-geral do jornalismo de merda

(Fernando Campos, in Ositiodosdesenhos, 20/05/2022)

Se, no panorama mediático português, o triunfo do jornalismo de merda é um facto incontestável, também é inegável que o campeão nacional absoluto deste cada vez mais sórdido campeonato é a Sociedade Independente de Comunicação (SIC) – isto é facilmente atestável pela reiterada liderança nas audiências, ou seja, pelas preferências do mercado perdão, do públicopelo género.

Ora, as vitórias não se conquistam sozinhas. Qualquer equipa vencedora precisa de alguém infinitamente capacitado que a dirija. A SIC tem. Tem um presidente e enfim, toda uma classe dirigente. Mas, sobretudo, tem um director-geral.

O presidente (ao qual já me referi aqui) é também o fundador de todo o empório de empresas de entretenimento e comunicação, a Impresa, da qual a SIC é apenas uma parte. O jornal “Expresso” é outra.

director-geral é Ricardo Costa. É ele o responsável por toda a informação do Grupo Impresa. Ele próprio é jornalista, daquele género de jornalismo que não reporta factos porque os interpreta sempre ao seu jeito auto-satisfeitode pitonisa que rejubila com a sua própria facúndia de advérbios e, sobretudo, de adjectivos. É ele o special-one. É ele que escolhe os pontas-de-lança, os médios volantes, os defesas centrais e até os apanha-bolas de uma equipa que não tem concorrência, isto é, é ele que contrata os editorialistas, os comentadores, os especialistas, os correspondentes, os enviados-especiais e até os repórteres de rua do jornalismo-de-merda. É ele que decide do critério dos destaques, da pertinência dos directos, da conveniência das entrevistas, da relevância dos convidados e até, talvez, da griffe ou da lingerie das apresentadeiras. É ele o cérebro, o mentor, da táctica e da estratégia de uma poderosa e irredutível máquina de imbecilizar.

A propósito de classe dirigente, quando me dispus a ilustrar com outros tantos textos coloridos o meu álbum de 125 caricaturas “os rostos da classe dirigente”, tive que me pôr em campo, a investigar. E nas minhas pesquisas sobre o modo como estes sujeitos se vêem a si próprios e como se apresentam, deparei-me com o facto surpreendente de quase todos eles cultivarem uma curiosa e obsessiva fixação na genealogia e nos mistérios das linhas, por vezes cruzadas, do parentesco. Um fenómeno que, receio, seja quase tão caricato como revelador da perenidade de um certo espírito na psique das nossas elites: cem anos depois da implantação da República e cinquenta depois do 25 d’Abril, a nossa inefável classe dirigente continua impávida, a nutrir o mesmo prurido de sempre por pergaminhos de antiga fidalguia.

Para ficar apenas no universo da Impresa, o seu próprio presidente, Francisco Pinto Balsemão, por exemploé um orgulhoso “trineto de um filho bastardo d’ el rei D. Pedro IV”; Maria João Avillez, antigajornalista-vedeta do jornal Expresso, é a ufana filha de um senhor que “é  bisneto do 8.º Conde das Galveias e trineto do 1.º visconde do Reguengo e 1.º Conde de Avillez, e de sua mulher que é prima de Sophia de Mello Breyner. É irmã da jurista e antiga política centrista Maria José Nogueira pinto, cunhada de Jaime Nogueira Pinto e prima-irmã da mãe do jornalista Martim Avillez Figueiredo”, eJosé Miguel Júdice, actual comentador na SIC-notíciasé o garboso filho de um senhor “de ascendência italiana por quatro linhas, uma delas por varonia, e de ascendência holandesa por duas linhas, e de sua mulher, de ascendência espanhola, britânica e italiana, sobrinha-neta por via matrilinear do primeiro visconde de Leite-Perry.”

Este não é, no entanto, um fenómeno circunscrito à facção mais, digamos assim “à direita” da nossa classe dirigente – também afecta personagens insuspeitadas, até associadas à maçonaria e ao velho republicanismo. O poeta Manuel Alegre, por exemplo, é o satisfeito “neto paterno da primeira baronesa da Recosta, filha do primeiro barão de Cadoro e de sua primeira mulher, filha do primeiro visconde do Barreiro”.

Gostaram? Não é tão ternurento?Quase tanto como constrangedorSão coisas destas que reforçam o sentimento de que não há força que retorça os reais fundamentos de uma nação velha e relha como a nossa.

Mas ainda descobri mais. E este é um facto novo – mais um que também corrobora o poeta Camões quando ele diz (à sua maneira, claro) que ah e tal nesta choldra tudo muda a toda a hora menos as mentalidades – atenção, por tanto, sociólogos que me leis.

Em Portugal ninguém diz que é comunista. A menos que o seja, claro. Ser comunista em Portugal nunca foi um bom quesito para arranjar emprego nem, muito menos, para ter posição. A verdade, porém, é que (e este é que é o facto sociológico novo) ser filho-de-comunista é completamente diferente.

Agora é pergaminho recomendável, tesourinho genealógico, eu sei lá, dá “pedigri” para as mais altas esferas ou posições (é evidente que isto não é para todos os filhos dos comunistas. Os felizes contemplados são apenas aqueles que juram a pés juntos e com as mãos postas que a OTAN é uma organização pacificódefensiva, que comprovadamente viram a luz do liberalismo e dos santos mercados e que abjuraram publicamente as convicções paternas, como é óbvio).

O actual primeiro-ministro, por exemplo, é um filho-de-comunista; o actual ministro das finanças também; e o actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa idem, e ainda há muitos mais, no público e no privado (não do mesmo comunista, claro, que os comunistas também não são de ferro). É também o caso de Ricardo Costa, o senhor director-geral da informação perdão, do jornalismo-de-merda do Grupo Impresa, (mas este é realmente uma excepção: o autor dos seus dias por acaso é mesmo o mesmo comunista que inventou os do actual primeiro-ministro).

Mural da História – em jeito de nota-de-roda-pé mas em francês (com perdão ao poeta Luiz Vaz e aos leitores mais sensíveis):

se há comunistas que podiam bem ter feito uma punheta, também há comunistas que bem podiam ter feito duas.


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Um comunista não pode ser rico?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 11/07/2018)

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Começou por ser um dos frequentes disparates das redes sociais: o deputado do PCP, António Filipe, aparece fotografado na sala de espera de um hospital privado em frente a um cartaz do partido, exposto na rua, por detrás do vidro do prédio, com o slogan, vibrante, a gritar que “a saúde é um direito, não é um negócio”.

Façanhudos do Twitter e do Facebook entretiveram-se a insultar o deputado, com base numa aparente contradição moral entre os ideais e a prática.

O tom, mais ou menos, foi este: “afinal os comunas dizem ao povo para irem ao Serviço Nacional de Saúde e, pelas costas, quando têm dinheiro, vão mas é aos privados, como os ricos!”.

Vozes de burro não deviam chegar ao céu mas, na verdade, se zurrarem muito, pelo menos chamam a atenção dos deuses da opinião publicada nos media tradicionais.

Bernardo Ferrão, no Expresso, tem a bondade de defender o direito à “livre escolha” de António Filipe mas critica o PCP por defender as 35 horas de trabalho para os profissionais da saúde, por aceitar as cativações de Mário Centeno e por deputados como António Filipe “se baterem contra as Parcerias Público Privadas” na saúde quando, afinal, “confiam num privado para o seu particular”.

João Pereira Coutinho, no Correio da Manhã, repete parte destes argumentos e pareceu-me (o texto é um bocadito confuso) achar mal que a ADSE pague consultas a deputados comunistas.

Tirando o facto de ninguém saber se António Filipe foi a uma consulta, a um tratamento, a um exame (talvez coberto por protocolos com o Serviço Nacional de Saúde), ou, simplesmente, visitar uma pessoa amiga, o pressuposto é este: um dirigente comunista se vai, doente, a um hospital, não está a tratar-se, está a fazer uma opção política.

Esta inferência, se for aceite como verdadeira, leva, dedutivamente, a outras conclusões: um comunista pode lutar toda a vida pelo que acha ser melhor para a sociedade, por melhores salários para os trabalhadores, por mais direitos para os desprotegidos, por serviços de saúde gratuitos e bons para todos. No entanto, o comunista, para respeitar os seus princípios políticos, só pode ter um salário decente, usufruir de direitos básicos ou, simplesmente, escolher o que é melhor para si quando toda a sociedade poder beneficiar dos resultados da sua luta – até lá, em solidariedade para com os mais desfavorecidos, o comunista não pode usufruir do que a sociedade tem disponível…

Com tanta fome no mundo, imagino que um comunista a comer bife da vazia já seja, para esta moral distorcida, um pecado mortal.

Um comunista, pelos princípios desta teoria, é, portanto, um mártir e se não se portar na sua vida privada como um mártir, é um hipócrita. Ora acontece que o PCP não é a Ordem de São Francisco (e mesmo esta, já não é o que era).

Claro que ninguém pergunta se um defensor da privatização da saúde deve ir a um hospital público, se um defensor dos PPR privados pode receber pensões do Estado ou se quem quer destruir o ensino público pode meter os filhos nas melhores universidades do país (que, não por acaso e muito graças aos comunistas, são as públicas).

Se um comunista tem de ser pobre, um católico pode ser neoliberal? Um monárquico pode ser deputado da República? Um rico pode ser solidário? Um ateu pode ir a um velório na igreja?

Se, por exemplo, um cientista comunista inventar o motor contínuo ou souber transformar chumbo em ouro, não pode ficar rico? Por esta pretensa filosofia, não: deve doar o seu talento e saber à sociedade e, no estágio em que ela está, transformar inevitavelmente um capitalista rico que decida investir na sua invenção num capitalista obscenamente rico, contribuindo assim para o aumento do fosso entre ricos e pobres, ajudando ao domínio das classes favorecidas e prolongando a exploração dos trabalhadores. Ou seja, um comunista, para esta gente, só é um bom comunista se for estúpido!

Sim, um comunista, se levar a ideologia a sério, cumpre uma ética na sua vida privada que tem correspondência com os princípios sociais que defende. Mas não, um comunista não tem de ser parvo.

A vacuidade moral do lumpen

(Joseph Praetorius, in Facebook, 01/02/2018)

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Joseph Praetorius

Li algures: ” A chegada dos investigadores (nas buscas domiciliárias ao Desembargador Rangel) foi filmada pela revista Sábado”.

É sempre a mesma história.
A ânsia de protagonismo nos funcionalismos judiciários, a troca de favores entre a imprensa falida e gente intelectualmente indigente das estruturas judiciárias (uns querendo vender e outros querendo promover a sua repulsiva imagem), as construções de “casos” nas televisões e a repetição das minutas em que as mesmas versões se enunciam quanto a quaisquer novos visados, traduzem uma situação que não pode deixar de suscitar – e com a urgência óbvia – uma reacção disciplinadora de alcance legislativo e uma reacção disciplinar (e penal) com o maior alcance organizacional possível.
A imputação em cujos termos o que alguém tem na sua conta bancária pertencerá na verdade a outro, começa a repetir-se demais. Como se começa a repetir o escândalo traduzido no facto da imprensa dizer que sabe, publicando, o teor das suspeitas e até o das pretendidas provas cujo exame é denegado às defesas e aos arguidos.
Há em processo modo de responder a isto. Mas os advogados defensores (no interesse dos defendidos) não querem agravar matizes de ressentimento e vingança e acabam por viabilizar o abuso ao qual desejavelmente deveriam opor-se com veemência.
Aqui e agora, todos temos de fazer opções. Dentro dos processos e fora dos processos. A própria opinião pública tem que fazer opções, como o Parlamento e o Governo, os Conselhos Superiores do Ministério Público e da Magistratura.
A (gritante) corrupção das trocas de favores entre a imprensa e as estruturas judiciárias (se pior não houver, como é possível) não é enquadramento idóneo para arguir acusatoriamente qualquer corrupção de outro, seja ele quem for.
Isto está claro desde Cícero, que vincou bem a imprescindível idoneidade moral sem quebras de quem acusa, por ser humanamente e politicamente insuportável ter de prestar contas da vida própria diante de quem não pode fazer o mesmo.
Isto está claro desde Jesus Cristo, também, que exigiu a radical idoneidade moral aos executores e assistiu, serenante perdão vivo, à sua debandada de homens bons porque não tinham perdido a capacidade de olharem para si mesmos.
E forte do ensinamento destes dois mestres, ambos advogados de génio e ambos juristas luminosos, vos digo – com a mais radical convicção – que a promoção penal e a judicatura não são compatíveis com a vacuidade moral do lumpen.
É o maior dos argumentos jurídicos: – isto não pode ser.