O que é o neoliberalismo, doutrina bem conhecida, que a IL, pior que o Chega, nos quer impingir

(Alfredo Barroso, in Facebook, 06/02/2022)

Apresento-vos os principais criadores da sinistra doutrina neoliberal (ou ultraliberal) tal como já a conhecemos:

– Friederich von Hayek (1899-1992), austríaco, foi o ‘deus’ criador da ‘religião’ neoliberal e fundador da respectiva ‘igreja’ (a muito pouco conhecida Société du Mont-Pélérin, criada na Suíça em 10 de Abril de 1947), e também autor de um best-seller antissocialista – sobretudo contra o Estado Social – intitulado «O Caminho da Servidão» (que mereceu uma versão abreviada distribuída em 600 mil exemplares pela Reader’s Digest, em 1947);

– e Milton Friedman (1912-2006), norte-americano (e igualmente membro da Société du Mont-Pélérin), ‘papa’ da ‘igreja’ neoliberal e autor do livro «Capitalism and Freedom» (publicado em 1962). Foi ele quem elaborou os conceitos fundamentais da doutrina e organizou a famosa Escola de Chicago (monetarista) – que se tornaria viveiro do neoliberalismo, e serviria de base às políticas económicas de Reagan, Thatcher e Pinochet.

Para Hayek e Friedman, tal como para os seus discípulos e seguidores: «não há alternativa ao capitalismo». Pior ainda: «não há alternativa ao (neo)liberalismo». «Não há Alternativa» é, precisamente, a tradução de uma famosa frase proferida pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: «There Is No Alternative», cujo acrónimo é ‘TINA’.

Como escreveram, em livro, o economista Bertrand Rothé e o escritor Gérad Mordillat: «’TINA’ é a arma ideológica inventada pela minoria neoliberal para tentar impor ao mundo as suas opções. Ao repetir que ‘não há alternativa’, o ‘establishment’ neoliberal vai transformar o jogo político num ultimato permanente. E ponto final na reflexão. E ponto final no debate democrático. E, doravante, a mensagem é a seguinte: ‘Votem em nós ou irão desaparecer’. É um simplismo, ou seja, aquilo a que chamamos ‘pensamento único’.

«A contrarrevolução neoliberal é essencialmente antidemocrática» – afirmou o economista norte-americano Paul Krugman. E, «de facto, nenhuma maioria de eleitores desejaria reduzir a cobertura social que protege a generalidade dos cidadãos. Nunca por nunca ser. Ora, o único meio de forçar a mão do povo é levá-lo a acreditar que não há alternativa» – acrescentam Rothé e Mordillat.

Na sua obra «Capitalism and Freedom», Milton Friedman explica-nos que, sendo a obtenção do lucro a essência de qualquer democracia neoliberal, qualquer o governo que conduza políticas contrárias ao mercado comporta-se de forma antidemocrática, sendo irrelevante o apoio de que goze por parte da maioria da população esclarecida. Contraditório, não é?!

Foi esta visão verdadeiramente perversa da democracia que fez com que Milton Friedman e Friederich Hayek apoiassem activamente e sem reservas o sangrento golpe de Estado do general Augusto Pinochet no Chile – que depôs, em 1973, o governo esquerda democraticamente eleito do presidente Salvador Allende – pretextando que esse governo legítimo estava a interferir no controlo dos negócios da sociedade chilena, o que era intolerável para os plutocratas, quer chilenos quer norte-americanos.

Friederich Hayek foi mesmo ao ponto de declarar publicamente, em defesa do indefensável Pinochet, o seguinte: «Pessoalmente, prefiro uma ditadura liberal a qualquer governo democrático completamente alheado do liberalismo». Foi essa «ditadura liberal», brutal e selvagem, que os “Chicago boys”, discípulos de Milton Friedman, ajudaram a sustentar durante 15 anos, transformando o Chile do sanguinário general Pinochet no primeiro grande laboratório experimental das políticas neoliberais preconizadas por Hayek e Friedman, de acordo com a «santíssima trindade»: privatização, desregulamentação e corte radical das despesas sociais, formulada na obra matricial de Friedman «Capitalismo e liberdade».

Como escreveu Naomi Klein, no livro «The Schock Doctrine, The Rise of Disaster Capitalism», o Chile marcou a génese da contrarrevolução ultraliberal, nascida no terror, que pretendia ser «uma verdadeira revolução, um movimento radical rumo à liberalização total dos mercados», como escreveu o «Chicago boy» José Piñera, ministro do Trabalho e das Minas de Augusto Pinochet.

O resultado do «tratamento de choque» que o próprio Milton Friedman foi ao Chile aconselhar a Pinochet – uma «orgia auto-mutiladora» de reformas, como salientou a insuspeita revista «The Economist» – traduziu-se num brutal empobrecimento (noção que viria a ser tão cara a Passos Coelho, em Portugal) com o objetivo de arrastar o Chile até à «liberalização completa dos mercados», provocando um enorme aumento do desemprego (que os Chicago boys consideravam ser «provisório») e desmantelando o Estado-Providência, no intuito de estimular o nascimento de uma «utopia capitalista pura».

O ano crucial foi o de 1975, quando a inflação já atingira os 375 % (mais do dobro do que durante o governo de Allende). O balanço foi aterrador. As despesas do Estado foram reduzidas, de uma só vez, em 27 %. A Saúde e a Educação foram os sectores mais duramente atingidos (uma das medidas mais emblemáticas foi o corte do abastecimento de leite às escolas). A rede de escolas públicas foi substituída por escolas privadas à la carte, às quais se tinha acesso com «cheques de ensino». Os serviços de saúde foram submetidos ao princípio do «utilizador pagador», os jardins de infância e os cemitérios foram vendidos ao sector privado. Mas a medida mais radical foi a privatização da Segurança Social. Mais de 500 bancos e empresas públicas foram igualmente privatizados, ao «preço da chuva». Inúmeras empresas locais foram destroçadas e, entre 1973 e 1983, o sector industrial perdeu 177.000 postos de trabalho.

Cerca de metade da população chilena foi, pura e simplesmente, excluída da economia. A corrupção, o compadrio e a fraude escaparam a qualquer controlo. Pequenas e médias empresas públicas foram dizimadas. A riqueza passou do sector público para o sector privado enquanto os passivos passaram do sector privado para o sector público. Aconselhado por Milton Friedman e pela sua ignominiosa e corrupta quadrilha de «Chicago boys», o general Pinochet mergulhou deliberadamente o Chile numa profunda recessão.

É evidente que os únicos beneficiários das reformas ultraliberais executadas no Chile pelos “Chicago boys locais” – designadamente pelo seu chefe de fila, o ministro das Finanças Sérgio de Castro (antigo aluno de Milton Friedman em Chicago) – foram as grandes empresas estrangeiras e um grupo de financeiros oportunistas, a que os chilenos chamavam «piranhas», e que nunca se cansaram de ganhar, à custa de uma especulação desenfreada, vários milhares milhões, partilhando-os com os “Chicago boys”, tanto estrangeiros como locais. O resultado das reformas ultraliberais só podia ser, como foi, o de aspirar a riqueza de baixo para cima e, à custa dos sucessivos choques, empurrar a classe média de cima para baixo, ou seja: para o desemprego e a despromoção social.

A lógica neoliberal do «tratamento de choque» (semelhante ao que a troika e o governo de Passos Coelho quiseram impor a Portugal entre 2011 e 2015) fez Naomi Klein evocar, no seu livro já citado, o «parentesco» impressionante com a lógica dos psiquiatras que, nas décadas de 1940 e 1950, estavam convencidos de que bastava provocar deliberadamente as crises de epilepsia para que o cérebro dos pacientes voltasse a funcionar «normalmente». Para tanto, esses psiquiatras prescreviam o recurso massivo aos eletrochoques, tal como os «tratamentos de choque» que Milton Friedman, e depois a UE, o BCE e o FMI (isto é, a troika) – com apoio do referido governo de direita em Portugal – receitaram e continuam a receitar aos países periféricos em sérias dificuldades. Como nessa altura descreveu a também insuspeita revista «Business Week», o que se viu no Chile foi «um mundo digno do doutor Strangelove, onde a depressão foi provocada voluntariamente».

As propostas de Milton Friedman foram de tal maneira brutais e desumanas, que um seu antigo discípulo, André Gunder Franck, escandalizado com todo o horror que testemunhou no Chile, escreveu que tais propostas «não teriam podido ser aplicadas sem os dois elementos-base em que se apoiavam: a força militar e o terror político». Eu diria, sem constrangimentos ou papas na língua, que foram estes dois elementos-base que, felizmente, faltaram em Portugal, entre 2011 e 2015, para criar um cenário tão dantesco, não só como o do Chile, mas também como o da Argentina, do Brasil e de outras ditaduras militares sul-americanas igualmente «aconselhadas» pelos Chicago boys.

Falta ainda referir uma cena caricata e patética. Há não muitos anos, ficámos a saber que Friedrich Hayek, o velho ‘profeta’ venerado pelo general Pinochet e por Margaret Thatcher, não aceitou visitar os EUA em 1973 – a convite do milionário norte-americano Charles Koch, um dos pilares do desmantelamento do Estado-Providência – por ter medo de perder os seus direitos à Segurança Social no seu país, a Áustria. Hayek – que nos seus discursos, palestras e ensaios proclamava que a Segurança Social é «essencialmente um absurdo» que urge banir – explica com grande detalhe, na correspondência que trocou com Charles Koch, os benefícios sociais a que tinha direito, e que não queria arriscar-se a perder.

Para além da hipocrisia pessoal, o que aqui se manifesta é ao cinismo de um discurso que consiste em fazer crer às pessoas que se pretende proteger a sua responsabilidade e a sua liberdade de escolha, quando, afinal, elas são despojadas dos seus direitos sociais e do seu dinheiro para encher os bolsos da ínfima minoria dos mais ricos do planeta – e nunca chegam a ter a tal “liberdade de escolha” por mais responsáveis que sejam…

Campo d’Ourique, 6 de Fevereiro de 2022


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A extrema-direita no assalto ao poder

(Manuel Loff, in Público, 23/11/2021)

Manuel Loff

Chile e França. Há muito que aprender com um e outro caso. Urgentemente.


Chile e França. A extrema-direita no assalto ao poder em registos diferentes.

No Chile, um candidato pinochetista (José Antonio Kast) passou à 2.ª volta das eleições presidenciais; em França, todas as sondagens confirmam que quem disputará a Presidência a Macron em março de 2022 será Marine Le Pen ou Éric Zemmour, a última sensação da extrema-direita. Os dois juntos reúnem mais de 30% das intenções de voto para a futura 1.ª volta; no Chile, beneficiando de uma abstenção maciça (53%), Kast obteve 28% e parte para a 2.ª volta com fortes possibilidades de vitória se conseguir atrair os 25% de votantes do resto da direita.

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Ambos os países têm direitas extremas com longa tradição e que já estiveram no poder em ditaduras genocidas. No Chile, o pinochetismo foi (e é) o ponto de encontro das direitas revanchistas que em 1973 tomaram o poder por golpe militar, transformando-se no exemplo acabado do neoliberalismo autoritário do último meio século: ultraliberalismo económico promovido pelos Chicago Boys imposto com extrema violência (30 mil desaparecidos, 200 mil exilados) a uma sociedade que, no início dos anos 70, havia lutado como poucas para conseguir, quer por via eleitoral (vitória de Salvador Allende e da Unidade Popular em 1970), quer por via da mobilização social, uma profunda democratização social e económica. O pinochetismo de 1973 tem em comum com o de hoje, representado por Kast (um católico integrista que, como Bolsonaro, tem o apoio entusiástico dos setores evangélicos), a vontade de esmagar o mais forte movimento social transformador que se ergueu nos últimos anos na América Latina, surgido em 2011 com o movimento estudantil que exigia a recuperação da educação pública (municipalizada e descapitalizada pela ditadura que, pelo contrário, subsidiou o ensino privado), ressurgido em 2019 com mais força ainda graças a um movimento popular que conseguiu forçar a abertura de um processo constituinte que levará, finalmente, à revogação da Constituição de 1980 cuja manutenção Pinochet impôs como condição para aceitar deixar o poder e permitir uma democratização descafeinada.

A extrema-direita francesa, pelo seu lado, com mais cem anos de presença numa das sociedades que mais cedo massificaram a participação política, tem na Frente Nacional (recentemente rebatizada como Rassemblement National, RN) o mais consolidado dos partidos da nova vaga de fascização por que passam as direitas ocidentais desde os anos 1980. Desde as presidenciais de 1988 que a FN obtém o apoio de entre 10% e 21% dos votantes franceses, e já disputou duas vezes a 2.ª volta. Na de 2017, Marine Le Pen foi amplamente derrotada por Macron; quatro anos depois, as sondagens para uma 2.ª volta dão Le Pen ou Zemmour quase empatados com o atual Presidente. A cada eleição, a ultradireita aproxima-se mais do poder; e a cada eleição, as direitas (Macron incluído) adotam mais argumentos da FN/RN: a normalização das medidas securitárias de exceção, a política do medo, a islamofobia, a retórica da incompatibilidade cultural das minorias étnicas.

Ambas cumprem a regra enunciada por Bourdieu em 1973: a de ser “o fascismo uma tentação permanente da fração reacionária da classe dominante”. Que aparece em contextos de signo oposto nestes dois países. No Chile, para fazer face ao avanço que parecia imparável do movimento popular de 2019, que venceu o plebiscito de 2020 e elegeu uma maioria de esquerda na Convenção que prepara a nova Constituição, incluindo, pela primeira vez desde o fim da ditadura, uma forte componente comunista. Ao propor a renovação do estado de emergência, a construção de um muro contra a entrada de imigrantes e o reforço dos poderes presidenciais, o que Kast pretende é parar a mudança. Em França, pelo contrário, parece replicar-se o contexto da fascização dos anos 20 e 30, com a extrema-direita a avançar num contexto de forte refluxo e atomização da esquerda política, que as fortes mobilizações populares contra os três últimos governos (Sarkozy, Hollande, Macron) não reverteu. Ao fim de 45 anos, a extrema-direita conseguiu que, enquanto nas ruas se discute precariedade, pensões e SNS, nas campanhas eleitorais se discuta estado de exceção, minorias e identidade nacional.

Há muito que aprender com um e outro caso. Urgentemente.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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O silêncio: a pior resposta do Estado português

(José Goulão, in Resistir, 26/11/2019)

O chefe de Estado e o governo da República portuguesa estão em silêncio perante as atrocidades contra a democracia e os direitos humanos praticadas na Bolívia e no Chile. Em circunstâncias onde o poder neoliberal se vê forçado a mostrar a sua verdadeira face ditatorial para evitar a aplicação plena da democracia, com todas as suas consequências, as principais figuras do Estado português escolhem o silêncio, talvez a maneira mais indigna de se identificarem com a crueldade do sistema – ao mesmo tempo que ignoram a Constituição da República.

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Na Bolívia, depois do golpe com todos os velhos ingredientes político-militares, a repressão fascista com matizes racistas avança através do país e não poupa sequer os senadores eleitos que constituem a maioria absoluta do Senado. No Chile, a repressão do pinochetista Sebastián Piñera castiga cruelmente o levantamento popular que exige uma Constituição democrática e uma vida digna. A tudo isto as principais figuras do Estado português dizem nada. Respondem com um longo e profundo silêncio como se não lhes coubesse ter opinião própria e fossem obrigadas a respeitar o não menos profundo e longo silêncio da União Europeia. Tentemos decifrar o enigma – que tem, certamente, um eminente significado político.

Todos sabemos o quão loquazes são, por exemplo, o chefe de Estado e o ministro dos Negócios Estrangeiros. Essa veia comunicadora que lhes permite ter as palavras certas nos momentos certos para a comunicação social certa é de tal maneira expressiva e expectável que nos permite dispor de elementos para compreender os conteúdos dos seus silêncios sem uma exagerada margem de erro.

Na Bolívia deu-se um golpe de Estado – ainda há quem tenha pudor em qualificar assim o que está a acontecer – que derrubou e exilou o presidente eleito com mais de 47% dos votos e o fez substituir por uma senadora de uma força minoritária no Senado – que teve de usurpar dois cargos de uma assentada: o de presidente do Senado e o de chefe do Estado.

Na sequência do processo, que atropela as mais elementares normas democráticas porque não foi apresentada, até ao momento, qualquer prova de viciação dos resultados eleitorais, as forças militares e policiais entregam-se a orgias de violência especialmente contra as camadas mais desfavorecidas, as comunidades indígenas dos campos bolivianos, precisamente as que formaram a base social maioritária que sustentou as administrações progressistas, soberanistas e anti-neoliberais de Evo Morales.

Uma informação sobre o teor fascista e selectivo da vaga repressiva, e que talvez possa interessar ao aparentemente desinformado ministro Santos Silva, decorre do conteúdo do decreto emanado pela presidente usurpadora, Jeanine Áñez, e que no seu artigo terceiro estipula que “o pessoal das Forças Armadas que participe nas operações de restauração da ordem e de estabilidade política ficará isento de responsabilidade criminal quando, no cumprimento das suas funções constitucionais, actuarem em legítima defesa ou estado de necessidade”.

Uma medida de encorajamento ao tiro livre que tem a sua equivalente jurídica – os golpistas bolivianos informaram-se da prática de lawfare com quem de direito, por exemplo a corte de Bolsonaro – na proposta da presidência para constituir “um aparelho especial” da Procuradoria que permita prender os senadores do Movimento para o Socialismo (MAS) que promovam “a subversão e a sublevação”, ou seja, para meter na cadeia, no limite, a maioria absoluta do Senado.

Estas pinceladas abreviadas sobre a situação na Bolívia permitem deduzir que haveria matéria capaz de puxar pela palavra fácil do chefe de Estado, do ministro dos Negócios Estrangeiros, do próprio primeiro-ministro.

Correspondência no Chile

As principais figuras do Estado português permanecem igualmente silenciosas sobre o que se passa no Chile.

E o que se passa no Chile é um imenso e pacífico levantamento popular, torpedeado por fenómenos de banditismo accionados para tentar retirar legitimidade à revolta e servir de manobra de diversão para a comunicação mainstream, contra o sistema de ditadura económica herdado do regime terrorista de Pinochet.

Sebastián Piñera, presidente em exercício e admirador confesso de Pinochet, tem recorrido à violência repressiva e ao manobrismo político para se manter, comportamento em que arrastou grande parte da oposição num processo que visa estabelecer uma “nova” Constituição em que o essencial do regime continue inalterado.

Obviamente, também no Chile os mecanismos democráticos continuam a sofrer maus-tratos. Talvez interesse ao ministro Santos Silva conhecer a sádica tendência criminosa de Piñera manifestada através do aparelho repressivo: usa munições de borracha, sim, mas disparadas contra os olhos dos manifestantes. Os casos de cegueira e outros problemas de visão daí decorrentes elevam-se a cerca de 230. Muito compatível com o respeito pelos direitos humanos.

Mutismo quase absoluto.

Apesar destas circunstâncias muito graves, a Presidência da República e o governo de Portugal entendem que não há razões para se pronunciarem.

É verdade que a União Europeia também está em silêncio. Será por isso que Lisboa também nada diz?

No entanto, a Constituição Portuguesa tem particularidades explícitas em matéria de soberania, respeito pelos direitos dos povos e os direitos humanos que não se encontram em outras leis fundamentais dos parceiros europeus.

Nada exigiria que o silêncio comunitário impusesse o silêncio lusitano; pelo contrário, a soberania portuguesa tal como é estipulada na Constituição exige que as autoridades do Estado tomem posições por si próprias, sem estarem à espera dos “aliados”.

Mas não. Ao que parece continua a prevalecer o complexo de bom aluno.

É verdade que foi dita uma coisa sobre a Bolívia: os portugueses “devem evitar qualquer deslocação” a esse país, aconselhou o portal do Ministério dos Negócios Estrangeiros no dia 11 de Novembro; e, no dia 14, uma fonte da Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros fez notar à agência Lusa que é “muito raro” o Ministério fazer recomendações deste tipo.

Portanto, na óptica ministerial o caso é grave; transformou-se até numa situação atípica de risco elevado. Mais uma razão para assumir uma posição política capaz de ajudar a população a compreender a situação.

Então, das duas uma: ou o silêncio é cúmplice com as atrocidades que estão a passar-se; ou o governo só tem margem de manobra, em termos de vínculos internacionais, para saudar a reimplantação do fascismo neoliberal – preferindo, desta feita, defender-se com o mutismo.

Talvez porque em situação anterior optou por pronunciar-se e ficou com um trambolho político nas mãos chamado Juan Guaidó. O Estado português, a exemplo de várias potências da União Europeia, mas não a comunidade em si, identificou-se com o golpe na Venezuela que tinha como objectivo instalar organizações e figuras fascistas no governo. E fê-lo pondo em risco a situação de centenas e centenas de milhares de portugueses que vivem na Venezuela, ao contrário do que aconteceu agora com escassas dezenas que vivem na Bolívia. Que merecem todo o respeito, tornando procedente a advertência governamental. Uma atenção que, por maioria de razão, deveria ter estado sempre no espírito do governo em relação à Venezuela

Deduz-se que o governo de Lisboa tem consciência de se ter saído muito mal na Venezuela, pelo que tentará agora evitar catástrofe política idêntica. Tal como em Caracas, identificar-se-á com a usurpação do poder em La Paz mas acha melhor não dar sinal de si, fingir-se de morto, a não ser quando puder fazê-lo com a cobertura dos “nossos parceiros e aliados”.

Um pau de dois bicos

O chefe de Estado, por seu lado, poderia dizer de sua justiça sobre os acontecimentos na Bolívia e no Chile porque teve até um contexto internacional em que tal viria a propósito: a visita oficial a Itália.

Mas não; preferiu glosar o mote da NATO como entidade “defensiva” e amiga “dos desfavorecidos”, como gosta de dizer o seu anfitrião de ocasião, o presidente italiano. Seguir nesse rumo até à Bolívia, porém, seria traiçoeiro: ao elogiar a NATO, Marcelo Rebelo de Sousa fez a apologia da organização que formou operacionalmente os militares decisivos para o golpe em La Paz e agora têm mãos livres para espalhar o terror fascista. Abordar a situação na Bolívia neste contexto deixaria o presidente mal na fotografia, mesmo sendo reconhecida a sua habilidade para dar a volta a casos intrincados em termos de comunicação. O silêncio revelou algum pudor mas agride os princípios em que assenta a Constituição da República em termos de respeito pela democracia e pela liberdade dos povos.

Tudo menos o silêncio

Perante o que está a acontecer na Bolívia e no Chile, os democratas sintonizados com a Constituição da República, os princípios democráticos, a soberania e o respeito pelos direitos humanos só podem assumir uma posição: denunciar e condenar o golpe, a repressão e o manobrismo utilizado para iludir os resultados de eleições legítimas e as reivindicações populares.

Não existem dúvidas sobre quem são os agressores e os agredidos, os golpistas e as vítimas, de que lado está a legitimidade e como se impõe a trafulhice criminosa.

Mas também na Venezuela o cenário é muito claro, como aliás o fascismo sob o poder na Ucrânia, e o governo não deixou de dizer de sua justiça – ignorando os princípios democráticos.

Ao assumir agora o silêncio sobre situações dramáticas que vitimam populações carenciadas, o governo da República Portuguesa parece ter mudado de táctica na sua estratégia de cumplicidade com casos de usurpação da democracia.

Na verdade, o que está em causa, tanto na Bolívia, como no Chile, como na Venezuela é a alternativa entre a democracia com todas as suas consequências e a ditadura neoliberal.

Não é difícil perceber de que lado estão o chefe de Estado e o governo da República. O silêncio é apenas uma defesa tornada recomendável perante o indisfarçável complexo de Guaidó.

Ainda assim seria de bom-tom que os portugueses soubessem o que têm a dizer realmente as principais autoridades do Estado sobre as atrocidades à democracia e os direitos humanos que, nos dias que correm, estão a ser cometidas na Bolívia e no Chile. Porque o silêncio é a mais indigna das atitudes.