“Quem ensina a dar asas não pode rastejar”

(Raquel Varela, in raquelcardeiravarela.wordpress.com, 15/01/2023)

Ontem estive na manifestação e durante 3 horas nunca parou de chegar gente, a descer a Av da Liberdade, rua predestinada, às vezes. Ontem foi um desses dias. Todos levaram os seus cartazes, a sua voz, quem quis falou, com microfone aberto, professores, técnicos, funcionários, pais e mesmo alunos, alguns. 100 mil. Um mar de gente.

Encontrei professores que foram meus alunos, professores que ensinaram os meus filhos, professores que são meus colegas, professores que foram meus professores. Estávamos lá todos. Devolveram-me a esperança de que isto um dia pode ser um país. O cartaz do dia para mim foi este “Quem ensina a dar asas não pode rastejar”.

Ontem a competição doentia das quotas transformou-se em cooperação na luta contra as quotas; a avaliação, de alunos e pais, sem critérios de justiça ou saber transformou-se em crítica à degradação da escola; as reuniões inúteis transformaram-se em conversa úteis sobre o sentido da educação e do mundo; a papelada burocrática, as grelhas de controlo e vigilância dos docentes transformaram-se em cartazes criativos; as costas baixas, os olhar de vítimas, desmotivados, deprimidas quando se entra numa escola foram uma maré de gente de costas direitas e espinha erguida, alergia, cantos, risos e ânimo; a sensação de estarem sós, sem conseguir levar o barco para a frente transformou-se em companheirismo; aulas e aulas sem interesse algum, para alunos e professores, relegados a ensinar e aprender tarefas simples e desnatadas, em vez de conhecimento complexo, transformaram-se numa aula pública de democracia e exigência de excelência; o autoritarismo de tantos directores sumiram na democracia em que todos têm uma palavra a dizer; os professores vigiados com livros de ponto, grelhas, formulários e plataformas (tudo pré indícios de automação da profissão) não precisaram de polícia ou serviço de ordem a comandar a manifestação – todos os que quiserem, entraram, com respeito, segurança, a polícia foi escassa e nada tinha ali a fazer – os professores sabem cuidar de si próprios; ontem percebemos que existe uma coisa chamada sociedade. Em vez de milhões de umbigos, egos, e somas de tristezas. A escola pode ser outra coisa.

Isto de sonhar ainda os levará mais além. Senti-me representada numa maré de civilização e cultura, e Política a sério. Não se falou de jogos de bastidores, lutas fracionais, e pequena política – falou-se do futuro que queremos, da utopia, da vida. Todos juntos, e cada um daqueles cartazes, fizeram corar de vergonha qualquer programa de governos, que se comportam como merceeiros a gerir sacrifícios sempre para os mesmos.

Ali falou-se de humanidade. De outra economia, outra vida e outra cultura. De repente voltámos a fazer parte do género humano, ontem não havia nenhum cartaz a dizer isto mas estava em todos “O que andamos aqui a fazer, para quem e como?”. Grata. Da minha parte, sou grata aos profissionais de educação pela aula magistral que deram ao país.


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Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura

(Pedro Almeida Vieira, in Página Um, 30/08/2022)

(Este artigo é revelador do ambiente censório que já se vive em Portugal. Não, não é imaginação, são as práticas da administração e o ataque aos jornalistas que se revelam “incómodos”, que ainda os há, mas cada vez menos. Triste país e decrépita democracia. Estátua de Sal, 30/08/2022)


No passado dia 9 de Agosto, nas instalações da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), com autorização superior para consultar processos administrativos por parte do senhor juiz conselheiro Sebastião Póvoas, circunstancial presidente daquele regulador – previsto na Constituição da República para defesa da liberdade de imprensa –, cometi um suposto “crime de lesa-majestade”: saquei do telemóvel e comecei a tirar fotografias às páginas…


Continuar a ler artigo em: Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura – Página Um


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Quem não gosta da Festa, bom sujeito não é

(António Filipe, in Expresso Diário, 01/08/2022)

O que de mal tem a Festa do Avante para os seus detratores é ser uma grande realização construída pelo PCP, não apenas para os seus, mas para todos os que nela queiram participar. Num tempo em que o espaço público e mediático se instala um discurso de ódio e o anticomunismo faz parte do livro de estilo, a Festa do Avante é um inimigo a abater.


Quem não gosta do samba/bom sujeito não é
ou é ruim da cabeça/ou doente do pé

Dorival Caymmi (“Samba da minha terra”)

Foram muito difundidas há uns anos as imagens de Marcelo Rebelo de Sousa, então pré-candidato à Presidência da República, em alegre convívio na Festa do Avante (adiante designada por Festa) com artistas, com visitantes anónimos (para ele) e com dirigentes do PCP. Não foi caso único, nem sequer incomum. Ao longo destes anos, convivi muitas vezes na Festa com deputados e militantes destacados de outros partidos que foram à Festa, ou para aproveitar a oportunidade rara de assistir a um concerto de música sinfónica para milhares de pessoas ao ar livre, ou para ver este ou aquele artista, ou para ver um outro espetáculo ou exposição do seu interesse, ou por aceitar participar num debate (sim, participei em debates na Festa ao lado de personalidades publicamente ligadas a outros partidos), ou porque gostam da Festa e lhes apeteceu ir.

Ao longo dos muitos anos que a Festa já leva, muitos milhares de artistas passaram pelos seus palcos, desde músicos e cantores míticos já desaparecidos, como Max Roach, Richie Havens, Miriam Makeba, Mercedes Sosa, José Afonso ou Adriano, até ao que de melhor teve e tem a música portuguesa, brasileira, e de outras partes do mundo. O critério para a atuação na Festa nunca foi a opção partidária. Que o digam os muitos artistas que já nela participaram e que nunca se identificaram partidariamente com o PCP.

Contudo, a Festa não é só espetáculos musicais. Tem uma bienal de artes plásticas, exposições sobre temas diversos, um teatro, um cinema, um espaço Ciência, um espaço para crianças, um vasto programa desportivo, uma feira do livro e do disco com apresentações de obras e sessões de autógrafos, para além de bares e restaurantes representando todas as regiões e culturas gastronómicas representadas em Portugal, para além de restaurantes incluídos nos stands internacionais. E a Festa também é política, obviamente. Para além do comício politicamente marcante de domingo, a Festa tem debates políticos, exposições, presença de partidos comunistas e progressistas de muitos cantos do mundo, e é uma realização promovida pelo PCP e construída pelo seu trabalho militante.

Por isso, a Festa nunca teve boa imprensa. Na melhor das hipóteses é quase ignorada. Quase sempre, é vilipendiada. É conhecida a fábula das receitas. Às segundas, quartas e sextas, a Festa gera receitas milionárias, mas às terças, quintas e sábados, e nos mesmos órgãos de comunicação social, dá prejuízos ruinosos. Por vezes há acusações de participarem organizações que os EUA acham que são terroristas (como já aconteceu com o ANC de Nelson Mandela). E há dois anos, a propósito da epidemia, valeu tudo o que a desonestidade conseguiu imaginar, numa campanha sistemática e orquestrada contra a realização da Festa que incluiu a instrumentalização de comerciantes locais, o depoimento de batalhões de tudólogos, a caricata apresentação no Jornal da Noite da SIC de uma capa falsa do New York Times onde a Festa seria criticada (imagine-se), as acusações de que a Festa seria responsável pelo agravamento da pandemia, para depois silenciar que a Festa, tendo respeitado todas as indicações da DGS, mesmo as especialmente exageradas, foi um sucesso e demonstrou que a vida pode continuar desde que sejam tomadas as devidas medidas de segurança.

Neste ano de 2022, a campanha contra a Festa tem uma nova faceta e, diria eu, que às vezes ainda sou ingénuo, impensável, que é o autêntico bullying, e até ameaças diretas, de que são vítimas os artistas que vão participar, o que obrigou alguns deles, muito justamente, a defender-se publicamente e outros a aceitar submeter-se a entrevistas em modo de interrogatório policial de quem já vai condenado à partida. Claro que não faltaram, para animar a narrativa, artistas que não foram convidados a dizer que não participariam se tivessem sido, ao modo da fábula da raposa que, por não chegar às uvas, dizia, “são verdes e não prestam”.

Tudo visto e ponderado, o que move os detratores da Festa? É haver música sinfónica? É haver centenas de artistas, dos mais aos menos consagrados, a participar em vários palcos? É o teatro, o cinema, os livros e os discos? É o desporto ou a Ciência? É a gastronomia? Nada disso. Ao atacar a Festa atacam quem nela participa e o que nela se faz. Não hesitam em atacar e denegrir grandes músicos e cantores. Não hesitam em atacar a Cultura, a Ciência, o Desporto que tenha presença na Festa. Mas o móbil é o ódio.

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O que de mal tem a Festa para os seus detratores é ser a Festa do Avante. É ser uma grande realização construída pelo PCP, não apenas para os seus, mas para todos os que nela queiram participar e a um preço relativamente acessível. Num tempo em que o espaço público e mediático se instala um discurso de ódio e o anticomunismo faz parte do livro de estilo, a Festa do Avante é um inimigo a abater, e tanto mais poderoso que não se deixa abater.

Assim, no primeiro fim de semana de setembro, vão lá e disfrutem. Podem ir ao comício, assistir a debates ou intervir se quiserem, ver espetáculos de música, cinema ou teatro, comprar um livro ou um disco, comer o que mais vos agradar, do leitão ao vegan, num espaço de convívio e tolerância. Ninguém vos pergunta em quem votam ou a que partido pertencem. E se lá forem pela primeira vez, vão perceber o que quem a conhece já percebeu há muito, que quem não gosta da Festa, bom sujeito não é.


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