O estranho caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde

(Francisco Louçã, 27/06/2019)

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Isto não está para gente de emoção fácil, é um vendaval de ameaças musculadas e de declarações florentinas. Ouvem-se promessas de aumento para funcionários públicos, por entre rios de leite e mel, veem-se votações unanimistas para se seguirem depois rasteiras baixas, nota-se a evocação do critério celestial do amor de empresários para apontar os bons políticos, percebe-se o movimento de alinhamentos nervosos. São eleições, vossa senhoria.

Mas, mesmo assim não é estranho que os mesmos digam uma coisa e o seu contrário? Apetece pedir-lhes que se organizem por favor, ofereçam-nos ou a cenoura ou o chicote, mas um e outro em simultâneo fica confuso. Não nos castiguem com tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar e pelas mesmas vozes. Pois foi assim nas jornadas parlamentares do PS, concluídas esta segunda-feira.

O primeiro dia foi o festival Carlos César. Marcou o seu terreno, fez o balanço, traçou a linha, apimentou as frases. Atirou aos alvos de manhã, repetiu de noite. Voltou ao tema no segundo dia. Para o líder parlamentar e presidente do partido, não há direita, o que é que isso interessa, mas com a esquerda tem um sério ajuste de contas a fazer. Ele tinha de avisar os portugueses de que o perigo espreita e de que os piores são os aliados do Governo: são aventureiros, levam o país para a penúria, vamos ficar com uma mão à frente e outra atrás, a bancarrota está aí. Pareceria piada, se estas frases não tivessem sido todas utilizadas. César não quer que ninguém se distraia nem se engane, é mesmo de bancarrota que está a falar se algumas das taxas moderadoras forem extintas (extinção que o PS aprovou com gosto). Pátria ou morte. Ou, vá lá, se não for nem pátria nem morte que venha pelo menos uma “maioria expressiva” para o PS, nós é que mandamos no país e no Parlamento.

Depois chega António Costa. Onde César dissera penúria, ele diz sucesso. Onde César dissera aventureiros, ele garante que todos cumpriram a sua parte. Onde César invoca a bancarrota, ele garante contas deslumbrantes. Onde César conclama contra as forças de bloqueio, ele diz que valeu a pena a aliança com essas forças.

Onde César diz que se vai libertar, Costa diz que está tudo bem. Onde o primeiro pede um voto esmagador de confiança no partido para sacudir aqueles que não são amados pelos empresários, o segundo diz continuidade. E, no fim, abraçam-se.

Dr. Jekyll e Mr. Hyde tinham pelo menos trajes, trejeitos e tempos diferentes. E de certeza que não se felicitavam mutuamente depois de se contradizerem tão exuberantemente. É que eram ambos a mesma pessoa.


E se a Moderna gerir a Universidade do Porto?

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 30/04/2019, e comentário da Estátua)

O Grito do César: Isto não é a União Soviética!

(Parece que o grito do Ipiranga a favor das PPP na saúde e dos negócios privados subjacentes foi dado por Carlos César e seus apaniguados na bancada parlamentar socialista que ele lidera. Para César, a morte das PPP – ou seja, o Estado gerir o que é seu -, é equivalente a uma nefanda memória do colectivismo estalinista.

Espantoso. César quer menos Estado na gestão da coisa pública, mas quer mais Estado na hora de contratar todos os seus familiares, os amigos mais chegados, e se calhar até o cão lá de casa e o papagaio da família. Com menos Estado estariam, provavelmente muitos deles, a engrossar as estatísticas do desemprego.

O “Isto não é a União Soviética” podia ter sido dito por Nuno Melo, Cristas, Rio, Paulo Rangel, ou mesmo pelo André Ventura, e ninguém estranharia. Mas não, veio dos lados de Carlos César.

Perante tal, só me ocorre parafrasear Jesus Cristo: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que dizem”, e esperar que ainda haja algum bom senso e força política de António Costa que permita minorar estes perigosos estados de alma de César.

Em suma, dar a César o que é de César, dar a Costa o que é de Costa.

Comentário da Estátua de Sal, 30/04/2019)


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“Isto não é a União Soviética”, terá sido o grito de guerra da equipa de missão criada por Carlos César para reeducar a ministra da Saúde, que num momento de fraqueza admitira que os hospitais públicos não devem ser geridos pelas empresas privadas que são seus concorrentes. Lembrada do que o Governo prometera a António Arnaut antes da sua morte, a ministra quis ser coerente com a noção de serviço público que um dia foi o orgulho da nossa democracia. Triste ilusão a dela.

Reposta em pouco tempo a normalidade das coisas, a lei apresentada pelo PS voltou a ser aquele monumento à sensatez que se esperava, garantindo abençoados dois mil milhões de euros por legislatura para pagar o serviço dessas abnegadas empresas, além de muitas outras bengaladas no sovietismo, desde a recusa da provisão de financiamento adequado até ao enterro da ideia peregrina da qualificação dos profissionais de saúde. Uma multidão de circunspectos analistas saudou este saneamento, lembrando como seria chocante que a lei não previsse a gestão privada dos hospitais públicos, coisa por demais óbvia.

Permitam-me no entanto sugerir que este programa de salvação da pátria está incompleto e que o sovietismo ainda anda por aí disfarçado em diversas obscenidades. Até confesso, contristado, que um desses terrenos em que medra o sovietismo é a universidade. E já houve oportunidades para acabar com tal vergonha, o problema é que mesmo no melhor pano cai nódoa: quando os mais austeritaristas dos meus colegas economistas da Universidade Nova de Lisboa foram consultados pelos programadores da troika na sua primeira vinda a Portugal, esqueceram-se de lhes propor um sistema de parcerias público-privadas para gerir as universidades públicas, a começar pela sua própria. Seria uma ótima solução de mercado, já se sabe que o privado é que é eficiente, e era um alívio para estudantes e suas famílias. Querem lá ver que os malandrins só não são neoliberais em casa própria, lembro-me de ter cogitado à época. Pois agora, neste tempo claro em que César se levanta para espadeirar contra o sovietismo, é preciso voltar ao assunto.

O povo rejubila com a descoberta do caminho para a liberdade e exige: queremos privados a gerir as instituições públicas da saúde, da educação, da segurança social. Isto não pode continuar a ser a União Soviética!

Quero por isso deixar à consideração de César e dos seus legisladores uma ideia que certamente lhes agradará e que seria a homenagem merecida à exitosa experiência da gestão privada dos hospitais públicos: avancemos denodadamente para a gestão privada das universidades públicas.

Era um sossego, uma paz de alma. Seriam umas centenas, que digo eu, uns milhares de milhões de euros bem empregados, tudo gente fina, estudante fardadinho, propinas adequadas, ensino temente, tudo como deve ser. Creio mesmo que era altura de entregar a Universidade do Porto à gestão da Moderna, a Universidade de Lisboa à gestão da Independente e a Universidade de Coimbra à Internacional. Uma lei do ensino que não reconheça e não estabeleça essa liberdade fundamental, que é o direito das universidades privadas gerirem as públicas, é a prova de que os tentáculos dos moscovitas ainda vergam a nossa pátria amada. César, acorde e ponha cobro a esta vergonha! E encha-se de coragem, vá mais longe, não deixe pedra sobre pedra no sovietismo.

Ora, pergunte-se também, e a segurança social, porque é que não há-de ser governada pelos fundos financeiros, que como se sabe são o auge da competência? Oliveira e Costa ou Dias Loureiro ou Duarte Lima, não estarão disponíveis para dar a mão à defenestração dessas bafiências moscovitas? O povo rejubila com a descoberta do caminho para a liberdade e exige: queremos privados a gerir as instituições públicas da saúde, da educação, da segurança social. Isto não pode continuar a ser a União Soviética!


César e Catarina, e se não fizessem um favor à direita?

(Por Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/03/2019)

Estiveram os dois mal

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Quando, numa eleição, se sabe à partida quem será o vencedor e o perdedor os combates eleitorais tendem a não se fazer entre os principais partidos mas nas suas franjas. À direita, já se percebeu que guerrilha interna do PSD continuará e os seus promotores terão como principal objetivo desviar votos para o CDS e novos movimentos. À esquerda, a guerra será entre o PS e o Bloco de Esquerda. Não por qualquer razão ideológica ou por o PS ter mais dificuldades em trabalhar com o BE do que com o PCP, mas porque aquela é a sua fronteira eleitoral mais porosa. O PS e o Bloco partilham muito eleitorado e os socialistas sabem que é ali que podem perder ou ganhar mais votos. Com o Bloco acontece o mesmo.

Tudo isto me parece saudável. Este é o momento para sublinhar as diferenças entre os partidos da “geringonça”. E é neste pressuposto que ouvi Carlos César dizer que foi “penoso” negociar com os partidos à sua esquerda. O subtexto é evidente: estivesse o PS sozinho e tudo o que foi conseguido teria sido mais simples e rápido. Não é fácil vender este peixe quando se conseguem aprovar quatro orçamentos com um superavit primário histórico e quando assistimos ao descontentamento dos funcionários do Estado. Mas BE e PCP tentarão dizer o oposto: sem eles este governo teria sido igual a todos os que o PS teve antes. Até aqui, parece-me uma guerra normal. Preferia que se concentrassem um pouco mais nas suas verdadeiras divergências políticas, mas na hora de conquistar votos não podemos esperar grande sofisticação.

O erro que nenhum dos três partidos deve cometer é assumir a retórica da direita. Isso seria mortal para todos eles. Nem aquela que diz que o PS, no fundo, é igual ao PSD, tendo sido este entendimento contranatura, nem a que aponta o BE e o PCP como irresponsáveis em que nenhum partido sério pode confiar. Isso é matar os últimos quatro anos de maioria de esquerda, que são o melhor património que os três têm. Ou preferem que as pessoas se lembrem de Sócrates ou do chumbo do PEC?

Mas pior do que assumir esta retórica é fugir para o beco em que a direita quer acantonar as duas próximas campanhas: afastar a política dos holofotes e resumir tudo a um combate ético. É natural que o PSD e o CDS tentem ir por aí. A economia está por agora melhor, as contas públicas também, as pessoas estão satisfeitas e as medidas sociais deste governo têm largo apoio. Resta cavalgar uma espécie de excecionalidade imoral dos socialistas, que tem e continuará a ter Sócrates como pano de fundo. Agora são as famílias dos ministros, depois será outra coisa qualquer. É absurdo que a esquerda siga este guião nos seus confrontos. É sair do terreno onde toda ela ganha para ir lutar noutro, onde tudo o que se conseguiu nestes anos será esquecido.

Ao descentrar a campanha das grandes escolhas políticas, levando-a para a conversa sobre os familiares do PS, Catarina Martins faz um grande favor à direita. Não por fragilizar o PS, a quem tenta disputar votos, mas porque desconcentra dos resultados sociais e económicos destes quatro anos. São esses ganhos que ela deve disputar ao PS. Os que se conseguiram e os que não se conseguiram e se podiam ter conseguido. Dos passes sociais e salário mínimo aos défices mais baixos do que alguma vez foi exigido por Bruxelas. Duas coisas que deixam a direita sem nada para dizer, na realidade.

Como seria de esperar, a resposta veio rápida e em versão piorada, com Carlos César a dizer que o seu parceiro, por ter irmãs no mesmo grupo parlamentar, não pode dar lições a ninguém. A direita, que tem uma longa história de linhagens familiares nos seus partidos, ri-se por ficar de fora do alvo e conseguir que não se fale do que realmente vale votos para o PS, BE e PCP. E ainda se ri mais por o PS ter escolhido Carlos César para falar de nepotismo.

Olhem para a relação entre o PSD e o CDS ao longo destes anos. Não ficam a dizer o mesmo mas evitam os ataques mais rasteiros. Seria bom aprenderem com eles. Confrontem-se na política. As divergências são mais do que suficientes para fazerem duas campanhas e ainda ficar muito por dizer. É um confronto que vale votos e ajuda a clarificar muitas coisas para o futuro. Deixem o resto para a direita, que quer falar de tudo menos do que melhorou na vida das pessoas.