Não há fábrica para fazer especialistas

(Isabel do Carmo, in Público, 03/08/2022)

Na minha especialidade, este ano, na região de Lisboa, fizeram exame e obtiveram o grau de especialistas cinco médicas. Só duas ficaram em hospitais públicos.


Finalmente, o decreto-lei do Conselho de Ministros, publicado a 15 de Julho, fala na verdadeira razão para a crise actual das urgências, entre elas as de obstetrícia – a demografia médica. Aquilo que foi relevado na comunicação social foi o quantitativo dos pagamentos das horas extras, como se a solução estivesse aí. Pouco se falou das conversações dos sindicatos com o ministério, sobre remunerações e carreiras. Com algumas honrosas excepções, esta é a inevitável leveza da informação.

Quando um especialista tenta explicar as razões que vêm do passado, em meio televisivo, é sempre interrompido em nome da contingência. Ou seja, no passado foram cometidos erros com repercussões importantes no futuro, que nunca serão criticados e muito menos julgados. Até 1999 houve aquilo a que os especialistas chamam “malthusianismo” na entrada para as Faculdades de Medicina e acabavam as licenciaturas cerca de três centenas a nível nacional. Em 2011, o Governo de José Sócrates conseguiu ainda por decreto-lei, e bem, que fossem assinados os últimos contratos de dedicação exclusiva de especialistas. Os mais novos têm agora 43 anos. Mais jovens do que esses, se ficaram no público e quiserem habitar em Lisboa (convém, por causa das urgências nocturnas), passaram à condição do quarto alugado ou da residência colectiva.

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Foi também nesse Governo (ministro Correia de Campos) que se fundaram as Unidades de Saúde Familiar (USF’s), cujo pessoal é remunerado em função da produção quantitativa e qualitativa. No programa do actual Governo são prometidas mais. Esperemos que sim. Estas coisas, umas más, outras boas, têm datas e têm responsáveis. Para os hospitais privados não houve crise financeira, pois de 2007 a 2017 abriram mais 15 hospitais-empresa de saúde, para os quais saíram, durante o período de “ajuste financeiro”, mais de 300 milhões de euros do orçamento da Saúde. Trata-se de hospitais (camas), não inclui serviços clínicos externos.

A produção de especialistas tem que ser demorada

Voltemos à formação de especialistas. A licenciatura em Medicina é de seis anos lectivos. No período que se seguiu ao estrangulamento, seguiam-se dois anos de Internato Geral, após o qual havia o exame de entrada para a especialidade, conhecido por ter base no livro Harrison. A classificação seriava para opção. Iniciada a especialidade, esta leva seis anos, após os quais há o exame da especialidade, muito rigoroso.

Entre estes períodos há sempre intervalos administrativos, para classificações e colocações. Ou seja, começámos a ter especialistas, ainda provenientes do estrangulamento, portanto poucos, em 2015/2016. Começaram a aumentar lentamente. Em ginecologia/obstetrícia, atingiram-se os mínimos com idades entre 46 e 55 anos em 2021. Aumentaram um pouco os de 36 a 45 anos. Nesse ano, os “antigos”, com mais de 65 anos, eram sete vezes mais que os primeiros e cerca de quatro vezes mais que os segundos. Nos hospitais, a especialidade está dividida em ginecologia, por um lado, e obstetrícia, por outro. De modo que estes números são mais graves. E, como não há uma fábrica de fazer especialistas, é esta a realidade. E será nos próximos anos.

Quando oiço falar que a causa é a “gestão”, comparo-a com o comentário das senhoras chiques que, quando sabem da insegurança alimentar dos trabalhadores pobres, dizem que é uma questão de “boa gestão do que têm”.

Claro que os pobres podem plantar couves no quintal, mas especialistas de viveiro não há. Pelo contrário. Há a caça ao especialista pelos hospitais-empresa, que podem pagar mais ou menos o dobro. Certas especialidades são mais cobiçadas: ginecologia/obstetrícia, anestesia, pediatria. Mas as outras também o são.

Na minha especialidade (endocrinologia, diabetes e nutrição), este ano, na região de Lisboa, fizeram exame e obtiveram o grau de especialistas cinco médicas. Só duas ficaram em hospitais públicos, as outras três foram captadas pelos privados. Anteriormente, outras tinham sido. Claro que a diabetes deve ser tratada sobretudo nos cuidados primários. Mas há determinadas áreas, como a perfusão contínua de insulina, que, excepto a Associação Protectora de Diabéticos de Portugal (APDP), dizem respeito a endocrinologistas hospitalares, tal como a estes diz respeito a preparação para a cirurgia bariátrica da obesidade, que tem anos de espera. A transexualidade só pode ser seguida em endocrinologia hospitalar. O serviço do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa não recebeu nenhum especialista este ano.

Dou estes quatro exemplos, mais conhecidos, para ilustrar, julgo que de maneira gritante, o escoamento dos especialistas. Esperemos que, das conversações com os sindicatos, saia luz verde. Ou pelo menos amarela…

Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política


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O SNS e a motosserra do senhor Rodrigo G. de Carvalho

(Domingos Lopes, in Público, 04/05/2020)

É hoje forte o sentimento na nossa comunidade que o Serviço Nacional de Saúde foi até à data o serviço público que tratou e salvou os doentes covid-19, apesar de descapitalizado, atacado e desprezado pelos vários governos. Sem o SNS, a pandemia teria dizimado muitos milhares de portugueses.

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Aliás, os países com um forte SNS responderam muito melhor à crise que os países onde os cidadãos que queiram ter acesso à saúde têm de a pagar. Na verdade, serviços públicos fortes, modernos, desburocratizados e ao serviço das populações são elementos chave de um Estado moderno, democrático e vocacionado para proteger.

Ora esta conclusão óbvia não se encaixa nas ideias dominantes de sobrevalorização do papel do indivíduo prevalecente sobre o da comunidade, que está em sintonia com a elevação da empresa a um novo paradigma de proteção estatal fundado num quase direito natural.

O que parece contar é a sorte das empresas, sobretudo as grandes. O Estado, a entidade “despesista e gastadora”, de repente tem de ir socorrê-las para a sua salvação. O tal Estado malfadado faz-lhes falta quando a iniciativa privada não está capaz de responder aos seus desafios próprio das sacrossantas leis do mercado. Vejamos de outro ângulo – quando há lucros fabulosos a ordem é arrecadar, quando há prejuízos a ordem é para lançar impostos e os cidadãos pagarem.

Há até quem candidamente defenda que o Estado garanta um empréstimo à TAP de 300 milhões de euros para salvá-la e depois entregá-la à sociedade Barraqueiro/Neelman… que grandes capitalistas…

Parece ser uma nova religião que preconiza que o Estado subvencione os mais poderosos e sobrecarregue os que vivem da força do seu trabalho, como se o salário fosse um peso e sempre imerecido. Felizmente que muitos são os patrões que não têm esta visão, mas esses não têm voz nos media.

A iniciativa privada é essencial numa sociedade moderna, mas de acordo com as regras do mercado e não baseada no critério de que na sua atividade o risco é do Estado e o lucro do capital.

Aliás, os lucros de algumas dessas empresas vão direitinhos para os “repugnantes” holandeses, enchendo-lhes os cofres e deixando o maldito Estado português à míngua, mas obrigado a socorrer os mesmos de sempre.

Quando chegar a hora de fazer contas vira o disco e toca o mesmo – austeridade. Não se pode tocar nos lucros, só nos rendimentos dos que trabalham e nesses pode ser à bruta porque aguentam, aguentam, como afirmou o célebre banqueiro

Dinheiro já (não pode ser amanhã de manhã) a fundo perdido. E a vida das famílias, dos trabalhadores com menos um terço do vencimento? Alguém deu conta da necessidade de remunerar mais dignamente os enfermeiros, os médicos, os cientistas das várias áreas sem os quais as mortes eram aos milhares? Já foi feito o ato de contrição sobre o sair da zona de conforto que levou milhares de enfermeiros e médicos portugueses a sair do país? Um dos rostos desse período negro aparece confortavelmente e todo pimpão, com ares de cientista, pianinho, pianinho, a botar postas de pescada sobre o coronavírus. Refiro-me a sua excelência o “Paulinho das Feiras”, dos retornados, dos ex-combatentes, do irrevogável, do vice-primeiro-ministro que ultrapassou na corrida Maria Luís e todo lampeiro perora na TVI. Ele é que sabe e por isso estendem-lhe a passadeira… Depois de tudo o que foi, agora é virologista formado na Rua do Caldas.

Na SIC, em entrevista à ministra da Saúde, o sr. Rodrigo atirou-se como uma fera a propósito da comemoração do 1.º de Maio da CGTP e instou-a a esclarecer o que lá fazia Jerónimo de Sousa de cima dos seus setenta e três anos. Veja bem, sra. ministra, aquele velho desconfinado, um dirigente do PCP, nas comemorações do 1.º de Maio…

O Sr. Rodrigo estabeleceu uma linha fortificada que ia da Alameda até à Cova da Iria. Queria a todo o custo saber porque não autorizara a peregrinação e a missa no santuário, em contraste com o que se passara na Alameda.

Marta Temido explicou o conteúdo da decisão presidencial contida no estado de emergência sobre aquela data e referiu as conversações com a Igreja que não passaram pelo modelo da Alameda.

Porém, como o sr. Rodrigo se achava portador do inconfessável propósito da ministra, a entrevista tornou-se num interrogatório. Com toda a simplicidade do mundo, um sorriso e um olhar firme, teve de responder ao sr. Rodrigo que estava ali para esclarecer e para tanto esclareceria. Foi então que ele deu conta que se acabara a gasolina da motosserra. Ficou a imagem de Marta Temido feliz com a resposta do SNS.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

EUA, um país rico ou um país pobre?

(Joaquim Vassalo Abreu, 23/04/2020)

Num texto que publiquei em 31-03 p.p, que titulei de “O Combate ao Covid 19” eu escrevi acerca de Trump e da “sua” América o seguinte, ainda a Pandemia lá não tinha assentado arraiais:

Na sua postura inicial arrogante Trump não cuidou de saber, nem soube ouvir, que perante um vírus desta natureza os EUA estariam tão frágeis como quaisquer outros países, mas mais frágeis ficaram quando subestimando a sua propagação foi tardio a tomar medidas.

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E, posto isto, tendo em consideração os seus precários Sistemas de Saúde, onde prevalecem os Seguros (quase um terço da população ou não têm qualquer Seguro ou tem apenas o mais básico) e de Assistência Social, muito se teme que possa vir a acontecer uma autêntica desgraça humanitária naquele que dizem ser o país mais rico do mundo…”

Passados pouco mais de três semanas, para além do que eu previ, e também não era exercício extraordinário prevê-lo, ficaram ou vieram à superfície e de um modo clamoroso, todas as debilidades dessa “grande América”, grande sim mas só para uns quantos.

E o que vemos? Vemos um país sem infraestruturas básicas que salvaguardem as pessoas mais débeis; vemos uma ausência de um Estado Social universal e igualitário; uma ausência total de uma Assistência Social também ela universal; vemos uma Saúde só para quem pode, através dos Seguros, que exclui e abandona todos os que não os possuem…

Vemos uma Sociedade, mais de um terço da sua população, abandonada à sua sorte e agora ao sabor de um Vírus…

E essa “grande América” começou agora, realmente, a mostrar a sua verdadeira face: um país comandado por algumas elites egoistas e egocêntricas, completamente desfasadas do seu  Povo e da sua realidade e apenas confiando em que a “ caridade” das pessoas mais conscientes e as comunidades possam obviar…

Mas a eles o que os preocupa são as suas acções na Bolsa e tudo o resto são números pois a única coisa que sabem ler são números…

Mas os números são muitas vezes traiçoeiros e chega até a dar pena assistir aos avanços e recuos de um presidente que, não percebendo nada do que se está a passar, a dirige apenas sob o impulso da sua intuição para os negócios, como se isto de isso algo fosse…

E vai-se notando o seu ar de assustado: para quem, qual “Super Homem” que ele julgava encarnar, vê de olhos esbugalhados que no total de infectados no mundo inteiro pela Covid 19 o seu  “grande” país representa mais de um terço e os mortos idem. 

Mas não só: é também o desprezo total que vem demonstrando pelos seus cidadãos quando permite, e vimos imagens de Nova York, que gente, pessoas humanas iguais a si tanto na nascença como na morte, sejam despejadas para uma vala comum por, mesmo sendo cidadãos, não merecerem da sua Pátria qualquer consideração…

Mas a História, como nos ensinava o Nosso Pai, ela volta sempre por mais voltas que possamos dar,  e muitas vezes  castigadora até, pois faz humildemente de nós todos iguais perante o seu poder…

E Trump está a provar dessa “cicuta”: o seu “poderoso”  States em pouco mais de um mês já perdeu cerca de trinta milhões de “Jobs” e todos foram direitinhos para as portas do Fundo de Desemprego! Mas Trump, num acto de autêntica e magnânima compaixão, vai mandar a todos eles um cheque de mil dólares, mas assinado por ele, para saberem quem os salvou…por um mês!

É que à pobreza de sentimentos junta-se muitas vezes, e neste caso também, uma ainda maior: a pobreza de espírito…”Quo Vadis America”?

A suposta “grande América” perante um desafio destes reage assim…mas pagando pelos seus enormes pecados, mas sempre mais o justo que o pecador…

Será que o “balão” que é a sua “riqueza”, feita de especulação e dívida, ainda lhe vai rebentar nas mãos?