A caminho dos “territórios desconhecidos de destruição”

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/09/2022)

Miguel Sousa Tavares

Conheço uma casa no Alentejo que foi construída em frente a um lago que nunca seca, mesmo nos anos mais secos como este de 2022, pois que, além de recolher a água das chuvas, é alimentado por duas nascentes. Até há uns anos, aquele lago parecia uma Arca de Noé ou um filme ao vivo da “National Geo­graphic Magazine”: não havia quase animal algum autóctone que não vivesse ou não parasse por ali, em terra, no ar ou na água. Havia perdizes, lebres, raposas e uma tal abundância de coe­lhos que mais parecia uma invasão; no ar voavam constantemente bandos de patos-bravos e cordas de pombos-bravos, que, de tantos, às vezes até assustavam; mais carraceiras, rabilongos, águias em voos de rapina circulares, e ao longe ouvia-se o som do cuco e do pica-pau; nas margens do lago passeavam entre os tufos de erva toda a espécie de aves aquáticas, desde as galinhas-d’água até às garças, brancas e cinzentas, e mesmo, de quando em vez, flamingos; e na água viviam lagostins-de-água-doce e peixes — carpas, bogas, achigãs — que nasciam na Primavera e saltavam de alegria fora da água no Verão. Mas, acima de tudo, o que mais impressionava era o inacreditável concerto de rãs à beira do lago nos finais de tarde, que chegava a ser ensurdecedor, até o sol se pôr e ser então substituído pelo canto dos grilos e o piar das aves nocturnas, mochos e corujas, chamando-se uns aos outros através das sombras dos sobreiros e das azinheiras.

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Primeiro, desapareceram os coelhos, devastados por uma doença de que não se descobre nem a origem nem a cura. Depois, desapareceram todos os habitantes aquáticos do lago, a começar pelas rãs, ao que se conta dizimados pelas cegonhas, que, entretanto, surgiram do nada para se transformarem numa praga protegida. Mas, estranhamente também, desapareceram os mosquitos, que incomodavam as noites, e as vespas, que faziam o mesmo aos dias: aos poucos, foram desaparecendo todos os insectos. E todas as aves do ar e na margem do lago. Nunca mais se ouviu o pica-pau a furar a sua árvore, nunca mais se escutou o cuco ou o piar do mocho, nunca mais se avistou um pombo no céu ou um pato na água. Nem sequer as cegonhas, cumprida a sua missão. Agora, só javalis, aliás indiferentes à presença humana. Se eu não soubesse ainda que alguma coisa de estranho e grave se está a passar com o planeta onde vivemos, bastava-me ter voltado àquele lago agora para não me restarem dúvidas. E ali não se faz agricultura assassina e subsidiada pelo Governo, não se plantam espé­cies exóticas e bêbadas de água, como o abacate do México ou o amendoal intensivo expulso da Califórnia e acolhido de braços abertos no Alqueva, não se cultivam frutos vermelhos em estufas de escravos asiáticos, não se usam herbicidas nem insecticidas, há anos convencionalmente proibidos mas nunca banidos na prática. Ali era a natureza em estado puro e agora é a morte da natureza em estado visível. Eu ouvi e li. Mas, acima de tudo, vi. Ninguém me contou, eu fui vendo. Fui vendo ali e noutros lados, em Trás-os-Montes, na Beira, no Alentejo, no Algarve. Onde antes havia ribeiros, agora há riachos ou apenas ouedes, como no Norte de África se chama à memória das linhas de água; onde antes havia paisagens ainda verdes, agora há cinzas e árvores queimadas e sempre os horrendos eucaliptos a renasceram para alimentarem o próximo fogo; onde outrora havia rebanhos, caça, aves e sinais de vida, agora há um deserto silencioso e assustador, e onde antes ainda havia gente, aldeias, casais e hortas, agora há ruínas e silêncio e, de repente, como num filme de ficção científica, ilhas de um verde intenso, onde se produz intensamente olival, amendoal, laranjal, abacate, regado até à loucura com a água que hoje falta nas ribeiras e nas barragens e que amanhã faltará nas torneiras.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Este Verão, Portugal e a Europa bateram recordes de temperatura nunca antes atingidos. Todos os rios de referência da Europa — o Danúbio, o Ebro, o Tibre, o Loire, o Tamisa — e todas as grandes barragens esvaziaram-se até ao esqueleto, numa antevisão tenebrosa daquilo que nos espera no futuro próximo. Num relatório apresentado há dias pela Organização Metereológica Mundial, estima-se que num dos próximos cinco anos viveremos o ano mais quente de que há memória, com as temperaturas a subirem, em média, 1,5 graus — exactamente aquilo que se queria evitar que acontecesse antes de 2050 e que mais de 150 países se tinham comprometido em Paris a tudo fazer para o evitar.

Hoje, porém, sabemos que tudo andou para trás, com a desculpa da guerra da Ucrânia: o regresso em força às energias fósseis (incluindo as centrais a carvão) fez com que as emissões de dióxido de carbono, responsáveis pelo aquecimento global, tenham já regressado a valores anteriores à pandemia, e sabemos que, mesmo que todos conseguissem imedia­tamente inverter o rumo e assegurar os compromissos estabelecidos para serem cumpridos até 2030, os danos são já irreversíveis — em 2050 já não será possível evitar que a temperatura do planeta se tenha fixado em pelo menos mais 1,5 graus do que hoje.

E daí para a frente entramos naquilo a que António Guterres chamou “territórios desconhecidos de destruição”, num processo de “sui­cídio colectivo” absolutamente irresponsável e demencial: aquecimento dos oceanos, degelo da calote polar, dos icebergues e dos Himalaias (com as inundações apocalípticas a que já estamos a assistir no Paquistão), secas extremas e prolongadas, começando pelos países sub-saarianos (onde o número de pessoas atingidas pela fome extrema duplicou nos últimos três anos), rios e barragens vazios ou reduzidos a caudais mínimos, culturas e animais em extinção, incêndios cada vez maiores e mais incontroláveis, água cada vez mais escassa para abastecer os humanos.

Nada disto, infelizmente, é uma visão catastrofista. Tudo é hoje matematicamente documentado e pacificamente aceite pela comunidade científica, excepção feita a alguns avatares que circulam à volta de Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Já tenho, todavia, escutado algumas teses que, não podendo negar o caminho para a catástrofe, julgam descortinar alternativas. São essencialmente de dois tipos: o tipo optimista e o tipo conformista. O primeiro pretende que, in extremis, à 25ª hora, a ciência encontrará maneira de evitar o desastre, como já o fez tantas vezes antes, ou o próprio planeta se encarregará de se regenerar por si mesmo: não sei como é que isso possa ser feito e, sobretudo, não sei como possa ser feito a tempo. Já a tese conformista parece-me mais do domínio do possível, embora sinistra: dizem eles que o que estamos a viver é resultado da exaustão dos recursos naturais por excesso de exploração humana. E, assim sendo, vamos viver uma crise “regeneradora”: milhares de milhões de seres humanos vão morrer para que os outros possam sobreviver e, com a experiência adquirida e a ajuda da ciência, possam retomar a vida num planeta mais limpo e liberto da pressão sufocante de hoje. Um darwinismo planetário em que já se adivinha quem serão os milhares de milhões sacrificados à cabeça.

Seja como for, o que é evidente é que já não estamos a falar de um cenário para as próximas gerações, nem sequer para a próxima. Décadas de passividade perante os avisos que o planeta foi dando conduziram ao que de repente parece uma súbita aceleração dos indicadores do desastre, mas que é apenas a resposta da doença à falta de tratamento: a catástrofe é agora iminente. E se já pouco me espanta numa geração de líderes mundiais que prefere continuar irresponsavelmente a ocupar-se dos seus jogos de guerra, negócios de armas e de energia enquanto o mundo que habitamos se desintegra à vista de todos, espanta-me, sim, a indiferença com que a geração jovem assiste a isto, comodamente instalada no seu mundo virtual e hedonista à espera que a Greta Thunberg resolva o assunto por eles. Peguemos, por exemplo, no caso português, um dos países mais ameaçados pelas alterações climáticas e pela seca, onde a ministra da Agricultura declarava no ano passado, triunfante, que o Algarve tinha água garantida para os próximos dois anos e onde, portanto, se continua a aprovar cegamente todos os projectos agrícolas que nem nos países com chuvas abundantes são autorizados. No meu tempo de juventude, em que líamos jornais e livros e nos manifestávamos nas ruas contra a guerra de África, mas também contra a longínqua guerra do Vietname, tínhamos uma ideia romântica, e todavia necessária, de que, por pior que fosse o presente, o futuro teria de ser construído por nós. Aqui e agora, porém, vi que um milhão de jovens acorreu aos concertos de Verão e que 200 mil esgotaram em dois dias, fazendo velórios nocturnos, os quatro concerto dos Coldplay na Primavera que vem, em Coimbra. Li que as juventudes partidárias lá fizeram as suas habituais “Universidades de Verão”, onde ouviram os seniores dos partidos ensinar-lhes como se faz carreira na política. Mas nem aí nem em lado algum vi que se arranjasse sequer uma dezena de jovens para confrontar o primeiro-ministro, a ministra da Agricultura ou o do Ambiente com a catástrofe ambiental para que Portugal caminha à frente do pelotão europeu. Em tempos, o Vicente Jorge Silva chamou à geração jovem de então uma “geração rasca”. Se fosse vivo, não sei o que chamaria à de hoje. Mas talvez fosse simples: a última geração.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Claro que caminhamos todos alegremente para o abismo

(José Neto, 28/07/2022)


(Este texto resulta de um comentário a um artigo que publicámos de Jorge Figueiredo ver aqui. Entretanto, resolvi dar-lhe a divulgação que, penso, merece.

Estátua de Sal, 28/07/2022)


Desde sempre, em todas as civilizações humanas, existiram movimentos de cariz mais ou menos esotérico, religiosos ou profanos, seitas diabólicas, adoradores de OVNIS e extraterrestres, etc. Na sua esmagadora maioria são apenas pessoas com interesses comuns, que se juntam para discutir os temas que lhes tocam numa base essencialmente intelectual.

Apenas como exemplo, poderei citar a Escola Pitagórica, que na antiga Grécia, pensa-se que por meados de 400 a.C., muito terá contribuído para o desenvolvimento da Matemática e da Astronomia, era ao mesmo tempo uma seita esotérica de cariz profundamente espiritual. Poderia lembrar também a conhecida Ordem religiosa e militar dos Templários, ou as contemporâneas Opus Dei e Maçonaria, etc.

Algumas dessas organizações poderão parecer-nos mais ou menos tenebrosas ou perfeitamente ridículas, dependendo do ângulo de análise, mas de maneira geral elas produzem apenas “conversa fiada” e não têm nenhuma capacidade de influenciar o mundo real, ainda que muitas vezes os seus membros se convençam que sim.

E se quisermos construir uma boa “teoria da conspiração”, também podemos apanhar uma frase aqui e outra ali, um movimento acolá, encontrar algumas conexões reais ou aparentes, enquadrar tudo num “gestalt” idealizado por nós de acordo com o que pretendemos mostrar, especular mais um bocado e pronto, temos a nossa bela teoria pronta a servir.

E quero ressalvar que tudo isto se pode fazer de forma absolutamente honesta, como me parece ser o caso do Jorge Figueiredo, e deve ser considerado um exercício intelectual perfeitamente válido por representar um contributo para a compreensão da problemática em apreço.

Eu não tenho como saber se os filósofos do Capitalismo de Davos acreditam mesmo que poderão levar a cabo os seus conceitos económicos associados ao “Great Restart” ou se aquilo foi apenas uma discussão académica. Do que eu não tenho dúvidas é que esse projeto nunca poderá ser concretizado porque eles apenas têm capacidade de influenciar menos de 20% das economias mundial. E ainda por cima a parte que eles mais ou menos controlam em breve será colocada numa espécie de “quarentena económica” pelo restante da Humanidade.

Se de alguma forma eles tentassem baixar os níveis de vida dos cidadãos dos seus próprios países e eles começassem a ver os países asiáticos, latino-americanos e africanos passar-lhes à frente, poderiam contar de certeza com uma reação infernal das massas. Isto ainda vai muito no princípio e já se começa a ver alguma coisa. Muitos mais governos europeus vão cair dentro em breve.

Vejamos agora as citadas declarações da Secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen.

O problema é que as economias ocidentais estão a chegar naturalmente ao seu ponto de rotura, como é natural no sistema capitalista com as suas crises cíclicas. De vez em quando vem uma realmente grande. 1900, 1930, etc. E sabemos ao que essas deram origem.

A produção de bens de consumo das empresas está a exceder a capacidade de escoamento desses bens pela população, e isso é agravado pela quebra nas exportações para o chamado “Terceiro Mundo”, que tem vindo a criar os seus próprios mercados e é já capaz de produzir as mesmas coisas que os países “ricos” produzem, e muito mais barato.

A redução da produção poderá então parecer uma boa medida, pelo menos para quem é Secretária do Tesouro mas não percebe nada de Economia. É que os custos fixos das empresas (instalações, empréstimos, amortizações, etc.) mantêm-se constantes, eles não dependem do volume da produção, e se as receitas baixarem isso vai arruinar a maioria dessas empresas. Elas apenas podem atuar sobre os custos variáveis, reduzindo matérias-primas e despedindo pessoal. E o aumento do desemprego daí resultante irá por sua vez afetar ainda mais o poder de compra da população. E a partir daí o caminho é sempre para baixo…

Podemos pegar nas teorias apocalípticas que preconizam a redução da população mundial. Mais uma vez, conversa fiada. O Capitalismo não tem interesse nenhum em reduzir a massa de consumidores que lhe garantem a própria sobrevivência. Nem vou perder tempo com isso.

Mas crescem cada vez mais as evidências de que algumas pandemias modernas poderão ter a mão criminosa dos Estados Unidos por detrás, e começa também a tornar-se muito suspeito que sejam justamente os países de que os americanos não gostam, como a China e o Irão, que mais sofrem com os novos surtos virais, apesar de não serem nem de perto os que têm menos condições sanitárias.

O Covid-19 poderá muito bem ser um projeto de guerra biológica que se terá descontrolado, (Ver aqui), e acabou por ditar a queda de Trump, que obviamente nunca percebeu nada do que estava a acontecer. Existem forças poderosas na América Profunda que têm os seus próprios tentáculos e a sua própria agenda. E sabemos hoje também que farmacêuticas como a Pfizer estavam comprometidas com os laboratórios militares americanos na Ucrânia.

Mas o problema central tem a ver com a sobreimpressão de dinheiro e mais dinheiro feita de forma alegre e descuidada durante muitos anos nos Estados Unidos e na União Europeia, que gerou uma dívida monstruosa e está literalmente a fazer explodir todo o sistema.

Haverei de falar disto mais em pormenor em outra ocasião, mas é preciso ter presente que uma nota de dólar ou euro não é na verdade dinheiro, porque não está associada a nada que tenha valor desde que os países abandonaram o padrão-ouro. Em rigor, são notas de dívida e a sua aceitação depende exclusivamente da confiança dos agentes envolvidos nos mercados de capitais. O Professor Jorge Vilches explica isto muito bem num dos seus últimos artigos no “Blog do Saker”. Foi por isso que, quando Putin assinou um memorando que podia ser interpretado como pondo em causa o fornecimento de gás à Europa no imediato, o Euro deu imediatamente um trambolhão de 20%.Tudo na economia capitalista é volátil porque ela está estabelecida em cima de nada.

Finalmente, a questão ecológica. Eu por acaso também já tinha reparado que aquela garotinha irritante, a Greta Thunberg, se tem destacado pelo silêncio, justamente agora que a Alemanha se apressa a arrasar as suas queridas florestas para produzir carvão vegetal e se aquecer no Inverno, e convenhamos que a Guerra na Ucrânia não parece ser uma coisa lá muito ecológica também. Mas presumi que ela deverá andar atarefadíssima a pôr a sua matéria escolar finalmente em dia.

Meu caro Jorge Figueiredo, o CO2 não é tão inofensivo assim. Aliás, qualquer alteração verificada na composição do ar que nós respiramos terá de certeza influência na saúde das pessoas e dos animais. Não fomos feitos para respirar escapes de automóveis.

Mas a característica mais nefasta do dióxido de carbono no tempo em que vivemos, é que ele tem a propriedade de absorver a energia do Sol, ou o calor, se quisermos. E portanto, quanto mais CO2 houver na atmosfera maior é o aquecimento da mesma. Isto está demonstrado cientificamente, é consensual na comunidade científica e o degelo polar acelerado está aí para o provar. Ainda este ano, em pleno Inverno, foram medidas temperaturas de 20 graus positivos no Alasca. E todas as previsões cientificamente fundamentadas apontam para resultados catastróficos num breve futuro, que de resto já se estão a fazer sentir em Portugal no presente.

Os russos e os chineses não contestam o aquecimento global, só põem em causa que ele aconteça devido ao seu petróleo – os russos -, e às suas centrais a carvão – os chineses -, e percebe-se porquê. Além disso, o aquecimento global irá libertar vastas terras, agora geladas, para cultivo e exploração mineira nos seus respetivos países, que eles gostarão de explorar.

A preocupação dos movimentos ecologistas e dos defensores da vida animal pelo mundo é perfeitamente justificada. Como dizem os garotos, não há planeta B. O problema é que o Capitalismo não perdeu tempo em se apoderar da Ecologia para com ela fazer dinheiro, “chutando para canto” as medidas preconizadas pela Ciência que realmente poderiam salvar o ecossistema para que os nossos filhos e netos nele possam viver. Hei de voltar a falar nisto quando tiver oportunidade.

Claro que caminhamos todos alegremente para o abismo. Toda a gente que sabe alguma coisa, sabe isto. Realmente, é um azar dos diabos não haver o tal planeta B. Mas nada dura para sempre, e isto inclui a espécie humana. As baratas portarão o nosso legado. Duvido que mais alguma coisa consiga viver por aqui quando tivermos acabado o trabalho.


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A grande avalanche

(António Guerreiro, in Público, 08/07/2022)

António Guerreiro

O pressuposto da actual colaposolgia é a de que já se ultrapassou o limiar em que a situação depende da acção humana e tudo o que está a acontecer se tornou irreversível. Isto chama-se niilismo e é o ambiente em que estamos mergulhados.


Um colapso estrondoso ocorrido no passado domingo, com uma dimensão de “terror” que é inerente ao conceito moderno de sublime, elevou aos picos a nova vaga colapsológica, fortalecendo as suas manifestações que têm a forma de uma nova mística. O colapso foi bem real, não se tratou de uma deriva profética: uma parte do glaciar da Marmolada, no nordeste da Itália, o ponto mais alto do maciço alpino, situado a 3309 metros de altitude, desmoronou-se e provocou uma avalanche de gelo e rochas.

Sete pessoas morreram e treze estão desaparecidas. As causas: as altas temperaturas (nesse dia e nos anteriores, tinham atingido 10º C no pico) provocaram o derretimento do permafrost, que é o cimento da montanha. À distância, turistas e caminhantes radicais filmaram a derrocada. Poderosa é a pulsão escópica; irresistível é o “disaster porno

Toda a Itália tem sofrido desde Maio ondas de calor sucessivas que atingem nalgumas cidades 43º C. A última, que durou mais de duas semanas, chama-se Caronte, o barqueiro da mitologia grega que transportava as almas para o mundo inferior dos mortos. O maior rio de Itália, o Pó, secou numa grande parte do seu percurso e a água do mar subiu mais de 30 quilómetros a partir da foz. Estes acontecimentos, que dantes eram classificados como “catástrofes naturais”, entraram numa outra categoria: são vistos como antecipações de um colapso ambiental provocado pelo homem.

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O discurso colapsológico — que vai subindo de tom à medida que é confirmado pela ciência — anuncia-o como iminente. Na sua versão mediática, a colapsologia folcloriza-se e psicologiza-se: o novo mal du siècle (em crescimento, segundo as notícias que vamos recebendo), chama-se “eco-ansiedade” ou, numa designação mais erudita, solastalgia, uma forma de angústia emocional perante os problemas ambientais e as alterações climáticas. “A ecologia torna-nos loucos”, escreveu Bruno Latour em Face à Gaïa.

Começa aliás a desenhar-se uma guerra inédita: a geração dos filhos acusa a geração dos pais e dos avós de terem devastado o planeta e de lhes roubarem o futuro. É claro que há aqui um equívoco: os processos que levam ao colapso estão em curso há muito tempo (muito embora se tenham acelerado enormemente nas últimas três ou quatro décadas) e desenrolam-se segundo ritmos múltiplos. Além disso, o imaginário colapsologista, na sua versão bíblica, tende a projectar uma queda (um “lapsus”) simultânea e comum, em que tudo e todos sofrerão o colapso ao mesmo tempo (“co-lapsus”), enquanto o que se verifica de facto é que enormes desigualdades determinam o desenrolar das catástrofes.

Ao mesmo tempo que se dava a derrocada da Marmolada, os principais aeroportos europeus e alguns nos Estados Unidos entraram também em colapso. A queda, o lapso, assume neste caso uma outra forma, que é a de uma catástrofe serena. Não houve quedas de aviões, apenas aconteceu que muitos não subiram e as multidões do êxodo estival e as respectivas bagagens acumularam-se, exasperadas, frenéticas, vulneráveis, confrontadas com maus presságios.

Umas férias felizes e verdadeiramente tranquilas é hoje uma prerrogativa de poucos. A ilusão de uma felicidade de massas, de que todos podem voar para o seu paraíso de lazer, conduz a um cenário apocalíptico, de multidões reféns das companhias de aviação, da logística dos aeroportos, da falta de trabalhadores, do controlo sobre aqueles que querem vir para cá trabalhar.

A canícula de Caronte, a avalanche da Marmolada, o êxodo estival com partida e chegada adiadas, em aeroportos que parecem campos de refugiados — tudo isto faz parte de uma “crise total” que põe muita gente a desejar de facto o colapso, a sentir o amor fati, o amor pelo próprio destino. O imaginário do colapso total provocado pela acção humana teve a sua primeira manifestação com o medo da bomba atómica. Mas aí tudo dependia da racionalidade ou irracionalidade humanas e da possibilidade de controlá-las.

O pressuposto da actual colaposolgia é a de que já se ultrapassou o limiar em que a situação depende da acção humana e tudo o que está a acontecer se tornou irreversível. Isto chama-se niilismo e é o ambiente em que estamos mergulhados.



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