Chuva miudinha

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,08/09/2023)

Miguel Sousa Tavares

E

m alguns lugares restritos no mapa choveu granizo, mas, de resto e de norte a sul, os primeiros dias de Setembro trouxeram apenas uma chuva miudinha aos campos, à disposição dos espíritos e à vida política. Desde as areias de Monte Gordo, um mês antes, Marcelo foi alimentando as expectativas da imprensa sem notícias com a segunda volta do Conselho de Estado, marcada para a primeira semana de Setembro. Aí, avisou ele, teria ocasião de proferir a intervenção final — aliás, já escrita, houvesse o que houvesse —, porém dando antes generosamente o direito a António Costa de se defender da previsível catanada. Mas Costa, repousado das férias, optou por aquilo que qualquer estratego aconselharia: se a sentença já estava dada, mais valia abdicar da defesa. E parece que Marcelo ficou assim meio sem chão, desarmado pelo silêncio da vítima e desarmado pelos avisos que, concertado ou não com o primeiro-ministro, o governador do Banco de Portugal lançara para cima da mesa dois dias antes. Que sentido faria voltar à carga com o caso TAP e o caso Galamba, voltar a falar da “folga” orçamental ou da “justa luta” dos professores quando Mário Centeno alertava para uma possível recessão no horizonte próximo importada de fora, na miragem da “folga”, que afinal não é assim tanta, e na necessidade de continuar a reduzir a dívida para “não sermos outra vez apanhados desprevenidos”? Quando na véspera a Rússia e a Arábia Saudita tinham mais uma vez feito subir os preços do petróleo e a guerra da Ucrânia, cuja continuação Marcelo tão entusiasticamente apoiara na sua visita a Kiev e que é razão primeira para todos os problemas económicos que a Europa e Portugal enfrentam, promete assim eternizar-se sem fim à vista e com o aplauso geral de quem nos governa?

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Não, não há almoços grátis. Não há sol na eira e chuva no nabal. Não há guerras que sirvam aos povos e não aproveitem aos vendedores de armas, de alimentos e de energia. Não há PRR que nos salve, não há dinheiro que chegue para fazer funcionar uma economia paralisada, não há planeta que resista a tamanha criminosa estupidez.

De que mais resta falar se todos os dias somos confrontados com imagens apocalípticas de seca ou inundações até em lugares inimagináveis há uns anos, de incêndios imparáveis ou icebergues a desfazerem-se no oceano, e os líderes que elegemos só pensam em mais armas, mais munições, mais aviões para a guerra da Ucrânia? Vamos entreter-nos a falar do beijo de Rubiales em Espanha, da proibição da abaya em França ou da heróica revolta do adjunto do ministro Galamba?

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Temos então, aqui, a “birra”, ou o “amuo”, de António Costa no Conselho de Estado a dar origem àquilo que Luís Montenegro, sem mais, classificou como “a mais grave crise institucional” de que ele tem memória. Ora cá temos, assim, uma crise institucional para nos animar e desviar as atenções nesta rentrée de chuva miudinha. Mas como não há milagres, o essencial permanece. E o essencial são as escolhas, como disse há tempos Marcelo, antes de a seguir começar a desdizer-se: governar é escolher. Por exemplo: pagamos os tais 6 anos, 6 meses e 23 dias aos professores, acumulando mais da despesa permanente de que fala Mário Centeno, ou investimos o dinheiro na construção de habitação pública para os jovens e a classe média? Investimos nas Forças Armadas ou na Saúde? Em comboios do século XXI que tirem os carros da estrada ou em radares para multar os carros na estrada? Agravamos a despesa pública com mais apoios e subsídios ou desagravamos a sério os impostos e apostamos na criação de riqueza pelos privados?

Ou, como até aqui, continuamos a apostar que há dinheiro para tudo — para satisfazer todos os lobbys, todos os grupos de interesses e todos os eleitorados — e não é preciso fazer escolhas?

2 Com o indisfarçável entusiasmo que sempre põe nestas coisas “disruptivas”, o “Público” noti­ciou com grande destaque que “a Bienal de São Paulo conta outra história de Fernão de Magalhães”. Fiquei curioso: o que levaria uma exposição de arte a desvendar uma outra versão da extraordinária história desse navegador do século XVI para além do facto de Magalhães reunir em si características hoje quase interditas nos círculos artísticos — ser homem, branco, ao que se sabe heterossexual e, pior ainda, português e logo de Quinhentos? E que nova versão seria essa digna de merecer duas páginas num jornal de referência, chamada de primeira página e todo esse destaque na Bienal de S. Paulo? Acaso teriam descoberto que ele, afinal, não imaginou e comandou uma expedição de circum-navegação que deu a volta ao mundo, provando que a Terra era redonda, que chegou lá abaixo à Terra do Fogo e descobriu a passagem do Atlântico para o Pacífico, depois imortalizada com o seu nome, que foi o primeiro navegador a cruzar todo o Pacífico, que assim baptizou, e que morreu em combate em Mactan, nas Filipinas, aos 41 anos, não podendo fazer parte dos 18 sobreviventes que, três anos depois da partida, regressaram a Espanha, completando, em 1522, uma das mais fantásticas aventuras humanas? Que teria a Bienal descoberto de novo que tanto entusiasmou o “Público”? Pois parece que descobriram que Magalhães não foi morto em combate pelo chefe tribal da ilha de Mactan, Lapu-Lapu, mas sim pela sua mulher — que assim, por proposta do cineasta/escultor filipino Ti­diak Kahimit (a quem a humanidade tanto deve), é justo passar a ser ela a heroína da história, pois que matou o homem que se atreveu a dar a volta ao mundo numa casca de noz e ir incomodar os filipinos no seu exaltante remanso. E, então, a Bienal dedica à heroína uma escultura à entrada, da autoria do dito cineasta/escultor, e antes de se passar por um “espaço multimédia e que é também — explica o “Público” — um espaço de encontro e discussão”, baptizado com o nome arrebatador de “Sauna Lésbica”. E tudo, todavia, acontecendo num edifício desenhado por um dos mais extraordinários artistas do nosso tempo, Oscar Niemeyer — que, fosse ainda vivo, não teria direito a convite, pois que, tal como Magalhães, sofria de três males hoje sem remissão: ser homem, branco e heterossexual. E tudo parte integrante do objectivo central da Bienal, que é, ensina-nos ainda o “Público”, o de “coreografar um novo pensamento capaz de combater a negação dos saberes não hegemónicos”. Razão pela qual certamente nós, contribuintes portugueses, estamos lá representados por dois artistas de raça negra, cujo nome vocês jamais ouviram e escolhidos pela nossa curadora, Grada Kilomba. A mesma que há uns tempos protagonizou uma feroz discussão — acompanhada ao pormenor pelo “Público” —, envolvendo todos os crocodilos excelentíssimos que zelam pela nossa cultura, a qual consistia em saber quem merecia representar Portugal na Bienal de Veneza: se uma mulher negra ou um branco que se apresentava como o primeiro artista sem sexo definido. Excluin­do a primeira, estávamos perante um caso de machismo e racismo; excluindo o segundo, estávamos perante um caso de atentado aos direitos LGBTI. Após fascinantes e exaltadas discussões, e sem que jamais o jornal ou outrem nos tivesse mostrado qualquer coisa da obra de ambos os candidatos, ganhou o segundo. Mas, como se vê, neste pequeno mundo fechado nunca se perde de vez.

Agora, porque têm de meter o Fernão de Magalhães ao barulho, mais de 500 anos sobre a sua morte, é o que me ultrapassa. Confesso que já não me resta paciência alguma para este masoquismo diletante com que nos comprazemos a denegrir uma História de que qualquer outro povo se orgulharia todos os dias. Sim, eu conheço a saga da escravatura e do colonialismo sem freio, e tudo o mais, e tenho sobre isso o mesmo juízo implacável que qualquer pessoa informada tem de ter. Mas também conheço a história dos outros povos à época — colonizadores e colonizados, brancos, negros, amarelos e índios, dos que chegavam e dos que viam chegar — e das barbaridades que todos cometiam. Nada disso me impede de pasmar de admiração quando vejo os sinais no mundo da passagem desse pequeno povo, de escassa gente e desmedida coragem, que, tendo apenas o mar pela frente, foi por ele adentro — para fazer muitas coisas boas e más, mas também para saber o que havia para além do conhecido, descobrindo ilhas e estreitos, navegando oceanos virgens e inventando os Brasis que hoje conhecemos.

Será talvez um argumento infantil, mas quando vejo esta gente confundir alhos com bugalhos e querer julgar a História pelos olhos de hoje, vendo apenas o mal e não também o fantástico, dá-me vontade de lhes perguntar porque não experimentam embarcar numa coisa parecida com aquilo a que então chamavam naus e tentarem chegar vivos às Berlengas.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Não lhes perdoeis, Senhor, pois eles sabem o que fizeram

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 14/10/2022)

Miguel Sousa Tavares

Esperámos tranquilamente um ano pelos resultados do trabalho da Comissão Independente para o Estudo de Abusos de Menores na Igreja e um ano depois, cumprindo o prazo fixado, a Comissão registou 424 testemunhos ao longo de muitos anos, dos quais apenas 17 foram encaminhados para o Ministério Público, por constituírem crimes não prescritos, cujos autores e vítimas estão vivos. Mas a Comissão não se deixou iludir e nós também não: os crimes foram incomparavelmente mais, reflectindo uma atitude “endémica” de abusos de menores dentro da Igreja Católica portuguesa e a sua ocultação a partir de cima ao longo de décadas.

Ao contrário de Marcelo Rebelo de Sousa, que se precipitou a saudar os números pouco “elevados” apurados pela Comissão — e, com isso, aliviar a responsabilidade da Igreja —, nós percebemos que isto é apenas a ponta do icebergue de uma estrutura sinistra e submersa, que durante décadas guardou dentro de si um segredo vergonhoso, ocultando-o dos fiéis, da sociedade e das autoridades. Protegendo os seus criminosos, como as máfias fazem.

Hoje sabemos que, dentro da hierarquia da Igreja, a nível intermédio e a nível superior, houve homens com responsabilidades que, sabendo de casos concretos, não se limitaram a olhar para o lado: ignoraram as queixas das vítimas, esconderam-nas dos olhares públicos ou, no melhor dos casos, encerraram o assunto com discretos “inquéritos verbais”, que se desvaneceram sem rastro nem consequências. Não têm perdão nem aos olhos dos homens, nem aos olhos de Deus. Mas, sobretudo, não têm perdão aos olhos das vítimas, dos que sofreram às mãos dos criminosos que eles protegeram e de que foram cúmplices no mais ignóbil dos crimes.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Pessoalmente, não consigo conceber nenhum crime que me cause mais repúdio — pela cobardia dos seus autores e pelas consequências para as vítimas — do que o abuso sexual de menores. Que ele, ainda por cima, seja cometido por sacerdotes, a quem a fé de muitos confere uma confiança acrescida para se ocuparem da educação e do acompanhamento espiritual de crianças, torna as coisas particularmente repugnantes. E não é indiferente, antes agravante, que as taras sexuais dos padres se exerçam sobretudo sobre os rapazes à sua guarda e que, no contexto socioeconómico histórico português, tenham sido obviamente as crianças mais pobres a sofrerem as sevícias destes tarados e os seus pais a serem os mais impotentes para enfrentar a cumplicidade da hierarquia católica. Não, não há perdão algum para isto: foram décadas em que milhares de crianças indefesas pagaram na pele e na alma, e para a vida inteira, o preço da absurda regra da castidade do sacerdócio.

Não foram todos os padres ou nem sequer a maioria? Claro que não. Mas duvido muito que, naquele mundo submerso e mais temente às aparências do que a Deus, houvesse quem ignorasse o que se passava ou não desconfiasse o suficiente para abrir a boca. Quando ouvimos o que diz o diletante bispo do Porto, Manuel Linda, percebemos bem o que se passou, como se passou e porque se passou. Quer estivesse a mentir sem pudor, quer revelasse uma indecente ignorância sobre o assunto, quando ele diz que o crime de abuso sexual de menores não é um crime público, o que ele no fundo quer dizer é que acha que não é uma coisa assim tão grave. Como as carícias a crianças do violador e assassino de menores padre Frederico, protegido pelo ex-bispo do Funchal, que “não foram assim tão íntimas”. Fosse ele um governante ou titular de um cargo público, Manuel Linda já teria sido corrido de funções por não dar garantias mínimas de poder desempenhar o cargo com respeito pelas regras de comportamento moral de uma sociedade civilizada. Mas, em vez disso, vai continuar aí, a benzer pontes e a celebrar missas, como se o Deus que invoca lhe tivesse perdoado e o quisesse como exemplo.

Pobre Papa, que tal gente tem!

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2 Terminadas as férias e desaparecido o grosso dos turistas, o Sotavento Algarvio começou a enfrentar episódicos, mas sucessivos, cortes de água nas torneiras. Não se trata de avarias nem de obras em curso, mas de “cortes programados” e anunciados no Facebook, para quem é freguês da coisa. Trata-se de uma situação normal — o novo e futuro normal — quando a seca se prolonga e a barragem de Odeleite, responsável por metade do abastecimento de água ao Algarve, está a 20% da sua capacidade e a de Odelouca, a segunda mais importante, a 17%. O que não é normal é que o Conselho Nacional da Água, reunido pela primeira vez ao fim de três anos de seca, em lugar de se ocupar com projectos de dessalinização ou medidas para poupar água — como reparar as fugas nas canalizações agrícolas, impor a obrigatoriedade de utilização de águas residuais para regar golfes, jardins públicos, etc., ou suspender de imediato a contínua expansão de culturas agrícolas exóticas de alto consumo de água —, tenha optado exactamente pelo caminho oposto: como gastar mais água. Os chamados “produtivistas”, de braço dado com o Ministério da Agricultura, ao contrário de todas as previsões, confiam em que vêm aí grandes anos de chuva, para os quais é preciso estarmos preparados, construindo mais barragens e aumentando a capacidade das existentes. Até lá, querem avançar para a solução espanhola dos transvases de água do Norte para o Sul — com o pequeno contratempo de os espanhóis terem justamente acabado de suspender as descargas de água para o rio Douro.

Há um ponto até ao qual se podem discutir as políticas e, mesmo quando temos a certeza de estar certos ou errados, pode-se continuar a discutir. Mas se estamos a discutir a falta de água e se abrem as torneiras uma e outra e outra vez, e durante 24 ou 36 horas nada jorra, o que há para discutir?

3 Na última Revista do Expresso vinha uma surpreendente história de um casal lisboeta “muito bem”, muito família, muito católico, muito ansioso por “partilhar”, muito empenhado na “excelência do ensino, conjugando a grandeza de Portugal com a tradição cristã”, através dos alunos dos Colégios Planalto, Mira Rio e S. Tomás. Enfim, a fina flor da Opus Dei — uma opção legítima e um modelo para quem se revê nos valores da santíssima agremiação. Mas o que tinha a história de surpreendente? Isto: o casal tem um Van Dyck em casa, que lhe custou “uns milhões não revelados”, a par de uma “importante colecção de centenas de quadros de mestres antigos”. Os quadros estão em casa, mas, obviamente, não lhes pertencem, pertencem a uma fundação, que, essa sim, é deles: um clássico. Surpreendente é que o casal exponha assim as paredes da sua casa: normalmente, estas coisas não se revelam — há os ladrões e o Fisco, apesar da fundação. Então, qual é a ideia? Pois, aqui chegado, o leitor já deve ter percebido, tal como eu logo percebi: o casal não tem onde guardar as suas centenas de quadros dos mestres e espera que o Estado lhe resolva o problema — outro clássico. Lá fora, os verdadeiros mecenas, os verdadeiros coleccionadores, quando se vêem nesta situação, fazem uma de duas coisas: ou oferecem o que querem e lhes sobra a museus já existentes ou fazem um museu a expensas suas e metem lá os quadros. Mas aqui os nossos “mecenas” têm outra solução: eles acumulam e o Estado resolve-lhes o problema, arranjando-lhes instalações e pagando as respectivas despesas de funcionamento — Casa das Histórias Paula Rego, Colecção Berardo, Fundação Saramago, etc. É claro que, no caso concreto, a solução para o problema do casal está mesmo à vista: o Museu Nacional de Arte Antiga, se a colecção valer mesmo a pena. Mas essa, dizem eles, “não é a solução ideal, o grande desafio é mostrar a colecção ao público” (parece que o MNAA não mostra os quadros ao público).

Mais surpreendente ainda, a história terminava com o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, a declarar o “interesse por parte do Estado” em juntar-se a tão comovente história de “partilha”. Com o seu dinheiro, sr. Ministro?

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E viva la muerte!

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 30/09/2022)

Miguel Sousa Tavares

Entrevistada por uma televisão enquanto contemplava as ruínas do que fora a sua casa, uma mulher ucraniana exclamava: “Eu só queria que os Presidentes da Rússia e da Ucrânia se sentassem para dialogar e porem fim a esta guerra!” Desde que a guerra começou, já ouvi declarações iguais de vários civis ucranianos, aqueles que sofrem directamente nas suas vidas o impacto desta guerra: não em abstracto, mas diariamente. Mas sem sorte alguma: os ‘especialistas’, os teóricos da guerra, os seus defensores em ambos os lados, estão mais motivados do que nunca e mais empenhados do que nunca em continuar tudo até ao fim… seja ele qual for. Por todos, falou há dias, na Assembleia-Geral da ONU, Ursula von der Leyen: “Este não é o tempo do apaziguamento, mas de continuar a guerra até à vitória.” Falar de paz, opor-se à guerra, é visto como uma traição em Moscovo e como uma capitulação no Ocidente. Num ou noutro lado pode-se ser preso, ostracizado ou benevolamente insultado por defender negociações para pôr fim à guerra em lugar de uma catástrofe, por preferir a paz em vez da continuação das mortes e da destruição. Num texto destinado a desacreditar todos os que defendem o caminho de negociações, Nuno Severiano Teixeira escreveu que os ‘apaziguadores’ propõem a paz à custa do território alheio — antecipando logo, para melhor poder descartar — o que seria o resultado de uma negociação com Moscovo. Mas também se lhe poderia responder que ele e os demais ‘senhores da guerra’ propõem a continuação dela à custa do sangue alheio.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Aqui, no Ocidente, fala-se muito da propaganda de Moscovo — que, obviamente, existe — e da desinformação de que serão vítimas os cidadãos russos. Mas, paradoxalmente, vemos manifestações contra a guerra na Rússia, que são filmadas e as imagens exportadas, e todos os dias vemos imagens dos 70 mil russos em idade militar que já passaram as fronteiras para fugirem à mobilização sem serem impedidos e apenas com a ‘democrática’ Finlândia a cogitar fechar-lhes a fronteira. Mas, todavia, fala-se muito pouco da desinformação concertada que aqui nos é servida diariamente e que em nada se distingue de propaganda de guerra e é muito pouco própria de sociedades ditas ‘liberais’. Exemplos? O complexo químico de Azovstal, onde 2 mil civis ucranianos estariam encurralados e impedidos pelos russos de fugirem: era falso, estavam sim a servir de escudo aos combatentes do Batalhão Azov ucraniano. A prisão onde os russos mantinham 2 mil prisioneiros ucranianos e que teria sido bombardeada pelos próprios russos, morrendo 80 prisioneiros, para supostamente apagarem vestígios de tortura sobre eles? Era, obviamente falso, foi bombardeada pelos ucranianos. O mesmo em relação à central nuclear de Zaporijia, ocupada pelos russos e onde, segundo Zelensky, eles se entretinham a atacar-se a si próprios: os ataques cessaram assim que lá se instalou uma missão da agência nuclear da ONU. Os cereais ucranianos que os russos não deixavam sair dos portos do Mar Negro, condenando o Terceiro Mundo à fome (embora a Ucrânia só respondesse por 3% das exportações mundiais de cereais): era falso, tudo o que Moscovo queria era garantir que os navios que iam buscar os cereais não levavam armas para Kiev; negociado o acordo, com a intervenção da Turquia e da ONU, já saíram de lá centenas de navios… embora nem um com destino ao Terceiro Mundo. Ou o célebre relatório da Amnistia Internacional que tanto indignou Zelensky e não só, e que acusava o Exército ucraniano de utilizar instalações civis como zonas de combate, tornando inevitáveis a sua destruição e a morte de civis, que depois Zelensky e a comunicação social ocidental apresentavam como exemplo da barbárie russa. Porém, não obstante o extremismo dos discursos à luz do dia, na calada da noite, ambos os lados trocam prisioneiros, deixam passar ambulâncias e feridos do outro e negoceiam tréguas sectoriais e provisórias. Se deixassem os respectivos povos escolher livremente, eles escolheriam a paz. Mas interesses muito mais altos e muito mais ‘sábios’ escolhem por eles.

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De um lado, temos Zelensky, louco de ambição e de vaidade, alimentada pelos mortíferos novos brinquedos de guerra americanos, para quem já nem a Crimeia é o limite. Do outro lado, temos Putin, tresloucado pela humilhação militar e pelos sinais de desintegração interna, incapaz de ver outro caminho que não o da fuga em frente, agora consumada com o que é o mais perigoso passo dado desde a invasão: a anexação do Donbas, por meio das armas e de um ridículo referendo. Até Maio, houve diversas ocasiões onde pareceu que a paz podia estar próxima e, se formos rever as declarações de então, quer de Putin quer de Zelensky, nenhum deles afastava a abertura de negociações. Mas foi então que a visita do secretário da Defesa americano a Kiev tudo mudou: Lloyd Austin descreveu a Zelensky o resultado das análises da ‘inteligência’ americana sobre a capacidade militar da Rússia e explicou-lhe que os Estados Unidos estavam prontos a oferecer à Ucrânia um novo sistema de radares e um moderníssimo sistema de mísseis Himars de médio alcance, capaz de fazer inverter o curso da guerra.

Ao mesmo tempo, o próprio Austin encarregou-se de declarar qual era, a partir de então, o objectivo final da guerra: “enfraquecer a Rússia de tal maneira que não possa mais voltar a repetir o que fez na Ucrânia.” Ou seja, enfrentar e derrotar a Rússia por interposta Ucrânia. E esse passou a ser também o objectivo de Zelensky, o da NATO, o do Ocidente, o da Europa: a guerra até à derrota total da Rússia. Todos receberam a mensagem, e Putin também.

Mas isso tem um preço e esse preço vai ser pago, já está a sê-lo, sobretudo pelos europeus e pelos africanos. E pelos mais pobres desses países, quando vêem os seus salários e pensões serem roídos pela inflação, as suas poupanças serem devoradas, os juros das dívidas, públicas e privadas, subirem em flecha e os extremismos tomarem conta dos eleitores, enquanto parece que o importante não é isso mas que os extremistas da direita também alinhem pela guerra do lado da Ucrânia, como o faz a Polónia ou os novos governos da Suécia ou da Itália. E diz-se a esta gente, que não tem culpa alguma da guerra e que só anseia pelo seu fim, que não há uma saída boa — como o fez o Expresso, na infeliz sondagem que publicou a semana passada, em que colocava apenas duas alternativas: ser a favor da continuação da guerra “para resistir à Rússia” (54%), ou ser a favor do fim da guerra “mesmo que isso implique ceder às exigências da Rússia e as suas consequências” (32%). Isto é como alguém ir ao médico e ele dizer-lhe: “Olhe, você tem uma doença grave. Prefere morrer agora subitamente ou mais tarde lentamente?” E você pergunta. “Mas, não posso ser tratado?” E ele responde. “Pode, mas isso não está nas minhas mãos.”

É exactamente isto que nos propõem.


2 Se calhar terei sido dos últimos portugueses que teve a sorte de ver o Douro próximo do seu caudal máximo, na quinta-feira passada. As margens do rio estavam de uma secura assustadora mas o rio estava cheio e com uma corrente ininterrupta em direcção à foz, sinal de que Espanha estava a descarregar água a montante: provavelmente, a última descarga deste ano e, quem sabe, durante muito tempo mais. Na véspera, 3 mil agricultores espanhóis tinham-se concentrado na cidade de Leão, exigindo o fim das entregas de água a Portugal, previstas na Convenção de Albufeira. Num ano de seca terrível como este, a agricultura espanhola, que é um crime ambiental sem paralelo na Europa, não é sustentável nem sequer deixando passar para o lado de cá apenas os caudais mínimos previstos na Convenção. Na sequência dos protestos, o Governo espanhol começou por dizer que iria cumprir os acordos internacionais a que estava obrigado, mas três dias depois cedeu: segunda-feira fechou a água no Douro e veremos o que fará no Tejo e no Guadiana. “Não é a guerra da água, vamos pelo diálogo”, diz o nosso Governo — que nada mais pode dizer. Mas é altura de perceber que, com guerra ou sem guerra da água, alguma coisa de decisivo tem de mudar: não temos de arranjar água para a agricultura que fazemos, é a agricultura que fazemos que tem de se adaptar à água que temos. E o cúmulo da ironia é que depois de termos gasto o que gastámos em Alqueva, tenhamos acabado a vender lá terrenos a espanhóis para eles irem ali fazer, com água subsidiada por nós, as culturas predadoras que fazem em Espanha e que a nossa ministra da Agricultura tanto protege.

Não há água: qual destas três palavras é que ainda não perceberam?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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