(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,08/09/2023)

E
m alguns lugares restritos no mapa choveu granizo, mas, de resto e de norte a sul, os primeiros dias de Setembro trouxeram apenas uma chuva miudinha aos campos, à disposição dos espíritos e à vida política. Desde as areias de Monte Gordo, um mês antes, Marcelo foi alimentando as expectativas da imprensa sem notícias com a segunda volta do Conselho de Estado, marcada para a primeira semana de Setembro. Aí, avisou ele, teria ocasião de proferir a intervenção final — aliás, já escrita, houvesse o que houvesse —, porém dando antes generosamente o direito a António Costa de se defender da previsível catanada. Mas Costa, repousado das férias, optou por aquilo que qualquer estratego aconselharia: se a sentença já estava dada, mais valia abdicar da defesa. E parece que Marcelo ficou assim meio sem chão, desarmado pelo silêncio da vítima e desarmado pelos avisos que, concertado ou não com o primeiro-ministro, o governador do Banco de Portugal lançara para cima da mesa dois dias antes. Que sentido faria voltar à carga com o caso TAP e o caso Galamba, voltar a falar da “folga” orçamental ou da “justa luta” dos professores quando Mário Centeno alertava para uma possível recessão no horizonte próximo importada de fora, na miragem da “folga”, que afinal não é assim tanta, e na necessidade de continuar a reduzir a dívida para “não sermos outra vez apanhados desprevenidos”? Quando na véspera a Rússia e a Arábia Saudita tinham mais uma vez feito subir os preços do petróleo e a guerra da Ucrânia, cuja continuação Marcelo tão entusiasticamente apoiara na sua visita a Kiev e que é razão primeira para todos os problemas económicos que a Europa e Portugal enfrentam, promete assim eternizar-se sem fim à vista e com o aplauso geral de quem nos governa?

Não, não há almoços grátis. Não há sol na eira e chuva no nabal. Não há guerras que sirvam aos povos e não aproveitem aos vendedores de armas, de alimentos e de energia. Não há PRR que nos salve, não há dinheiro que chegue para fazer funcionar uma economia paralisada, não há planeta que resista a tamanha criminosa estupidez.
De que mais resta falar se todos os dias somos confrontados com imagens apocalípticas de seca ou inundações até em lugares inimagináveis há uns anos, de incêndios imparáveis ou icebergues a desfazerem-se no oceano, e os líderes que elegemos só pensam em mais armas, mais munições, mais aviões para a guerra da Ucrânia? Vamos entreter-nos a falar do beijo de Rubiales em Espanha, da proibição da abaya em França ou da heróica revolta do adjunto do ministro Galamba?

Temos então, aqui, a “birra”, ou o “amuo”, de António Costa no Conselho de Estado a dar origem àquilo que Luís Montenegro, sem mais, classificou como “a mais grave crise institucional” de que ele tem memória. Ora cá temos, assim, uma crise institucional para nos animar e desviar as atenções nesta rentrée de chuva miudinha. Mas como não há milagres, o essencial permanece. E o essencial são as escolhas, como disse há tempos Marcelo, antes de a seguir começar a desdizer-se: governar é escolher. Por exemplo: pagamos os tais 6 anos, 6 meses e 23 dias aos professores, acumulando mais da despesa permanente de que fala Mário Centeno, ou investimos o dinheiro na construção de habitação pública para os jovens e a classe média? Investimos nas Forças Armadas ou na Saúde? Em comboios do século XXI que tirem os carros da estrada ou em radares para multar os carros na estrada? Agravamos a despesa pública com mais apoios e subsídios ou desagravamos a sério os impostos e apostamos na criação de riqueza pelos privados?
Ou, como até aqui, continuamos a apostar que há dinheiro para tudo — para satisfazer todos os lobbys, todos os grupos de interesses e todos os eleitorados — e não é preciso fazer escolhas?
2 Com o indisfarçável entusiasmo que sempre põe nestas coisas “disruptivas”, o “Público” noticiou com grande destaque que “a Bienal de São Paulo conta outra história de Fernão de Magalhães”. Fiquei curioso: o que levaria uma exposição de arte a desvendar uma outra versão da extraordinária história desse navegador do século XVI para além do facto de Magalhães reunir em si características hoje quase interditas nos círculos artísticos — ser homem, branco, ao que se sabe heterossexual e, pior ainda, português e logo de Quinhentos? E que nova versão seria essa digna de merecer duas páginas num jornal de referência, chamada de primeira página e todo esse destaque na Bienal de S. Paulo? Acaso teriam descoberto que ele, afinal, não imaginou e comandou uma expedição de circum-navegação que deu a volta ao mundo, provando que a Terra era redonda, que chegou lá abaixo à Terra do Fogo e descobriu a passagem do Atlântico para o Pacífico, depois imortalizada com o seu nome, que foi o primeiro navegador a cruzar todo o Pacífico, que assim baptizou, e que morreu em combate em Mactan, nas Filipinas, aos 41 anos, não podendo fazer parte dos 18 sobreviventes que, três anos depois da partida, regressaram a Espanha, completando, em 1522, uma das mais fantásticas aventuras humanas? Que teria a Bienal descoberto de novo que tanto entusiasmou o “Público”? Pois parece que descobriram que Magalhães não foi morto em combate pelo chefe tribal da ilha de Mactan, Lapu-Lapu, mas sim pela sua mulher — que assim, por proposta do cineasta/escultor filipino Tidiak Kahimit (a quem a humanidade tanto deve), é justo passar a ser ela a heroína da história, pois que matou o homem que se atreveu a dar a volta ao mundo numa casca de noz e ir incomodar os filipinos no seu exaltante remanso. E, então, a Bienal dedica à heroína uma escultura à entrada, da autoria do dito cineasta/escultor, e antes de se passar por um “espaço multimédia e que é também — explica o “Público” — um espaço de encontro e discussão”, baptizado com o nome arrebatador de “Sauna Lésbica”. E tudo, todavia, acontecendo num edifício desenhado por um dos mais extraordinários artistas do nosso tempo, Oscar Niemeyer — que, fosse ainda vivo, não teria direito a convite, pois que, tal como Magalhães, sofria de três males hoje sem remissão: ser homem, branco e heterossexual. E tudo parte integrante do objectivo central da Bienal, que é, ensina-nos ainda o “Público”, o de “coreografar um novo pensamento capaz de combater a negação dos saberes não hegemónicos”. Razão pela qual certamente nós, contribuintes portugueses, estamos lá representados por dois artistas de raça negra, cujo nome vocês jamais ouviram e escolhidos pela nossa curadora, Grada Kilomba. A mesma que há uns tempos protagonizou uma feroz discussão — acompanhada ao pormenor pelo “Público” —, envolvendo todos os crocodilos excelentíssimos que zelam pela nossa cultura, a qual consistia em saber quem merecia representar Portugal na Bienal de Veneza: se uma mulher negra ou um branco que se apresentava como o primeiro artista sem sexo definido. Excluindo a primeira, estávamos perante um caso de machismo e racismo; excluindo o segundo, estávamos perante um caso de atentado aos direitos LGBTI. Após fascinantes e exaltadas discussões, e sem que jamais o jornal ou outrem nos tivesse mostrado qualquer coisa da obra de ambos os candidatos, ganhou o segundo. Mas, como se vê, neste pequeno mundo fechado nunca se perde de vez.
Agora, porque têm de meter o Fernão de Magalhães ao barulho, mais de 500 anos sobre a sua morte, é o que me ultrapassa. Confesso que já não me resta paciência alguma para este masoquismo diletante com que nos comprazemos a denegrir uma História de que qualquer outro povo se orgulharia todos os dias. Sim, eu conheço a saga da escravatura e do colonialismo sem freio, e tudo o mais, e tenho sobre isso o mesmo juízo implacável que qualquer pessoa informada tem de ter. Mas também conheço a história dos outros povos à época — colonizadores e colonizados, brancos, negros, amarelos e índios, dos que chegavam e dos que viam chegar — e das barbaridades que todos cometiam. Nada disso me impede de pasmar de admiração quando vejo os sinais no mundo da passagem desse pequeno povo, de escassa gente e desmedida coragem, que, tendo apenas o mar pela frente, foi por ele adentro — para fazer muitas coisas boas e más, mas também para saber o que havia para além do conhecido, descobrindo ilhas e estreitos, navegando oceanos virgens e inventando os Brasis que hoje conhecemos.
Será talvez um argumento infantil, mas quando vejo esta gente confundir alhos com bugalhos e querer julgar a História pelos olhos de hoje, vendo apenas o mal e não também o fantástico, dá-me vontade de lhes perguntar porque não experimentam embarcar numa coisa parecida com aquilo a que então chamavam naus e tentarem chegar vivos às Berlengas.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia