E viva la muerte!

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 30/09/2022)

Miguel Sousa Tavares

Entrevistada por uma televisão enquanto contemplava as ruínas do que fora a sua casa, uma mulher ucraniana exclamava: “Eu só queria que os Presidentes da Rússia e da Ucrânia se sentassem para dialogar e porem fim a esta guerra!” Desde que a guerra começou, já ouvi declarações iguais de vários civis ucranianos, aqueles que sofrem directamente nas suas vidas o impacto desta guerra: não em abstracto, mas diariamente. Mas sem sorte alguma: os ‘especialistas’, os teóricos da guerra, os seus defensores em ambos os lados, estão mais motivados do que nunca e mais empenhados do que nunca em continuar tudo até ao fim… seja ele qual for. Por todos, falou há dias, na Assembleia-Geral da ONU, Ursula von der Leyen: “Este não é o tempo do apaziguamento, mas de continuar a guerra até à vitória.” Falar de paz, opor-se à guerra, é visto como uma traição em Moscovo e como uma capitulação no Ocidente. Num ou noutro lado pode-se ser preso, ostracizado ou benevolamente insultado por defender negociações para pôr fim à guerra em lugar de uma catástrofe, por preferir a paz em vez da continuação das mortes e da destruição. Num texto destinado a desacreditar todos os que defendem o caminho de negociações, Nuno Severiano Teixeira escreveu que os ‘apaziguadores’ propõem a paz à custa do território alheio — antecipando logo, para melhor poder descartar — o que seria o resultado de uma negociação com Moscovo. Mas também se lhe poderia responder que ele e os demais ‘senhores da guerra’ propõem a continuação dela à custa do sangue alheio.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Aqui, no Ocidente, fala-se muito da propaganda de Moscovo — que, obviamente, existe — e da desinformação de que serão vítimas os cidadãos russos. Mas, paradoxalmente, vemos manifestações contra a guerra na Rússia, que são filmadas e as imagens exportadas, e todos os dias vemos imagens dos 70 mil russos em idade militar que já passaram as fronteiras para fugirem à mobilização sem serem impedidos e apenas com a ‘democrática’ Finlândia a cogitar fechar-lhes a fronteira. Mas, todavia, fala-se muito pouco da desinformação concertada que aqui nos é servida diariamente e que em nada se distingue de propaganda de guerra e é muito pouco própria de sociedades ditas ‘liberais’. Exemplos? O complexo químico de Azovstal, onde 2 mil civis ucranianos estariam encurralados e impedidos pelos russos de fugirem: era falso, estavam sim a servir de escudo aos combatentes do Batalhão Azov ucraniano. A prisão onde os russos mantinham 2 mil prisioneiros ucranianos e que teria sido bombardeada pelos próprios russos, morrendo 80 prisioneiros, para supostamente apagarem vestígios de tortura sobre eles? Era, obviamente falso, foi bombardeada pelos ucranianos. O mesmo em relação à central nuclear de Zaporijia, ocupada pelos russos e onde, segundo Zelensky, eles se entretinham a atacar-se a si próprios: os ataques cessaram assim que lá se instalou uma missão da agência nuclear da ONU. Os cereais ucranianos que os russos não deixavam sair dos portos do Mar Negro, condenando o Terceiro Mundo à fome (embora a Ucrânia só respondesse por 3% das exportações mundiais de cereais): era falso, tudo o que Moscovo queria era garantir que os navios que iam buscar os cereais não levavam armas para Kiev; negociado o acordo, com a intervenção da Turquia e da ONU, já saíram de lá centenas de navios… embora nem um com destino ao Terceiro Mundo. Ou o célebre relatório da Amnistia Internacional que tanto indignou Zelensky e não só, e que acusava o Exército ucraniano de utilizar instalações civis como zonas de combate, tornando inevitáveis a sua destruição e a morte de civis, que depois Zelensky e a comunicação social ocidental apresentavam como exemplo da barbárie russa. Porém, não obstante o extremismo dos discursos à luz do dia, na calada da noite, ambos os lados trocam prisioneiros, deixam passar ambulâncias e feridos do outro e negoceiam tréguas sectoriais e provisórias. Se deixassem os respectivos povos escolher livremente, eles escolheriam a paz. Mas interesses muito mais altos e muito mais ‘sábios’ escolhem por eles.

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De um lado, temos Zelensky, louco de ambição e de vaidade, alimentada pelos mortíferos novos brinquedos de guerra americanos, para quem já nem a Crimeia é o limite. Do outro lado, temos Putin, tresloucado pela humilhação militar e pelos sinais de desintegração interna, incapaz de ver outro caminho que não o da fuga em frente, agora consumada com o que é o mais perigoso passo dado desde a invasão: a anexação do Donbas, por meio das armas e de um ridículo referendo. Até Maio, houve diversas ocasiões onde pareceu que a paz podia estar próxima e, se formos rever as declarações de então, quer de Putin quer de Zelensky, nenhum deles afastava a abertura de negociações. Mas foi então que a visita do secretário da Defesa americano a Kiev tudo mudou: Lloyd Austin descreveu a Zelensky o resultado das análises da ‘inteligência’ americana sobre a capacidade militar da Rússia e explicou-lhe que os Estados Unidos estavam prontos a oferecer à Ucrânia um novo sistema de radares e um moderníssimo sistema de mísseis Himars de médio alcance, capaz de fazer inverter o curso da guerra.

Ao mesmo tempo, o próprio Austin encarregou-se de declarar qual era, a partir de então, o objectivo final da guerra: “enfraquecer a Rússia de tal maneira que não possa mais voltar a repetir o que fez na Ucrânia.” Ou seja, enfrentar e derrotar a Rússia por interposta Ucrânia. E esse passou a ser também o objectivo de Zelensky, o da NATO, o do Ocidente, o da Europa: a guerra até à derrota total da Rússia. Todos receberam a mensagem, e Putin também.

Mas isso tem um preço e esse preço vai ser pago, já está a sê-lo, sobretudo pelos europeus e pelos africanos. E pelos mais pobres desses países, quando vêem os seus salários e pensões serem roídos pela inflação, as suas poupanças serem devoradas, os juros das dívidas, públicas e privadas, subirem em flecha e os extremismos tomarem conta dos eleitores, enquanto parece que o importante não é isso mas que os extremistas da direita também alinhem pela guerra do lado da Ucrânia, como o faz a Polónia ou os novos governos da Suécia ou da Itália. E diz-se a esta gente, que não tem culpa alguma da guerra e que só anseia pelo seu fim, que não há uma saída boa — como o fez o Expresso, na infeliz sondagem que publicou a semana passada, em que colocava apenas duas alternativas: ser a favor da continuação da guerra “para resistir à Rússia” (54%), ou ser a favor do fim da guerra “mesmo que isso implique ceder às exigências da Rússia e as suas consequências” (32%). Isto é como alguém ir ao médico e ele dizer-lhe: “Olhe, você tem uma doença grave. Prefere morrer agora subitamente ou mais tarde lentamente?” E você pergunta. “Mas, não posso ser tratado?” E ele responde. “Pode, mas isso não está nas minhas mãos.”

É exactamente isto que nos propõem.


2 Se calhar terei sido dos últimos portugueses que teve a sorte de ver o Douro próximo do seu caudal máximo, na quinta-feira passada. As margens do rio estavam de uma secura assustadora mas o rio estava cheio e com uma corrente ininterrupta em direcção à foz, sinal de que Espanha estava a descarregar água a montante: provavelmente, a última descarga deste ano e, quem sabe, durante muito tempo mais. Na véspera, 3 mil agricultores espanhóis tinham-se concentrado na cidade de Leão, exigindo o fim das entregas de água a Portugal, previstas na Convenção de Albufeira. Num ano de seca terrível como este, a agricultura espanhola, que é um crime ambiental sem paralelo na Europa, não é sustentável nem sequer deixando passar para o lado de cá apenas os caudais mínimos previstos na Convenção. Na sequência dos protestos, o Governo espanhol começou por dizer que iria cumprir os acordos internacionais a que estava obrigado, mas três dias depois cedeu: segunda-feira fechou a água no Douro e veremos o que fará no Tejo e no Guadiana. “Não é a guerra da água, vamos pelo diálogo”, diz o nosso Governo — que nada mais pode dizer. Mas é altura de perceber que, com guerra ou sem guerra da água, alguma coisa de decisivo tem de mudar: não temos de arranjar água para a agricultura que fazemos, é a agricultura que fazemos que tem de se adaptar à água que temos. E o cúmulo da ironia é que depois de termos gasto o que gastámos em Alqueva, tenhamos acabado a vender lá terrenos a espanhóis para eles irem ali fazer, com água subsidiada por nós, as culturas predadoras que fazem em Espanha e que a nossa ministra da Agricultura tanto protege.

Não há água: qual destas três palavras é que ainda não perceberam?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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A caminho dos “territórios desconhecidos de destruição”

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/09/2022)

Miguel Sousa Tavares

Conheço uma casa no Alentejo que foi construída em frente a um lago que nunca seca, mesmo nos anos mais secos como este de 2022, pois que, além de recolher a água das chuvas, é alimentado por duas nascentes. Até há uns anos, aquele lago parecia uma Arca de Noé ou um filme ao vivo da “National Geo­graphic Magazine”: não havia quase animal algum autóctone que não vivesse ou não parasse por ali, em terra, no ar ou na água. Havia perdizes, lebres, raposas e uma tal abundância de coe­lhos que mais parecia uma invasão; no ar voavam constantemente bandos de patos-bravos e cordas de pombos-bravos, que, de tantos, às vezes até assustavam; mais carraceiras, rabilongos, águias em voos de rapina circulares, e ao longe ouvia-se o som do cuco e do pica-pau; nas margens do lago passeavam entre os tufos de erva toda a espécie de aves aquáticas, desde as galinhas-d’água até às garças, brancas e cinzentas, e mesmo, de quando em vez, flamingos; e na água viviam lagostins-de-água-doce e peixes — carpas, bogas, achigãs — que nasciam na Primavera e saltavam de alegria fora da água no Verão. Mas, acima de tudo, o que mais impressionava era o inacreditável concerto de rãs à beira do lago nos finais de tarde, que chegava a ser ensurdecedor, até o sol se pôr e ser então substituído pelo canto dos grilos e o piar das aves nocturnas, mochos e corujas, chamando-se uns aos outros através das sombras dos sobreiros e das azinheiras.

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Primeiro, desapareceram os coelhos, devastados por uma doença de que não se descobre nem a origem nem a cura. Depois, desapareceram todos os habitantes aquáticos do lago, a começar pelas rãs, ao que se conta dizimados pelas cegonhas, que, entretanto, surgiram do nada para se transformarem numa praga protegida. Mas, estranhamente também, desapareceram os mosquitos, que incomodavam as noites, e as vespas, que faziam o mesmo aos dias: aos poucos, foram desaparecendo todos os insectos. E todas as aves do ar e na margem do lago. Nunca mais se ouviu o pica-pau a furar a sua árvore, nunca mais se escutou o cuco ou o piar do mocho, nunca mais se avistou um pombo no céu ou um pato na água. Nem sequer as cegonhas, cumprida a sua missão. Agora, só javalis, aliás indiferentes à presença humana. Se eu não soubesse ainda que alguma coisa de estranho e grave se está a passar com o planeta onde vivemos, bastava-me ter voltado àquele lago agora para não me restarem dúvidas. E ali não se faz agricultura assassina e subsidiada pelo Governo, não se plantam espé­cies exóticas e bêbadas de água, como o abacate do México ou o amendoal intensivo expulso da Califórnia e acolhido de braços abertos no Alqueva, não se cultivam frutos vermelhos em estufas de escravos asiáticos, não se usam herbicidas nem insecticidas, há anos convencionalmente proibidos mas nunca banidos na prática. Ali era a natureza em estado puro e agora é a morte da natureza em estado visível. Eu ouvi e li. Mas, acima de tudo, vi. Ninguém me contou, eu fui vendo. Fui vendo ali e noutros lados, em Trás-os-Montes, na Beira, no Alentejo, no Algarve. Onde antes havia ribeiros, agora há riachos ou apenas ouedes, como no Norte de África se chama à memória das linhas de água; onde antes havia paisagens ainda verdes, agora há cinzas e árvores queimadas e sempre os horrendos eucaliptos a renasceram para alimentarem o próximo fogo; onde outrora havia rebanhos, caça, aves e sinais de vida, agora há um deserto silencioso e assustador, e onde antes ainda havia gente, aldeias, casais e hortas, agora há ruínas e silêncio e, de repente, como num filme de ficção científica, ilhas de um verde intenso, onde se produz intensamente olival, amendoal, laranjal, abacate, regado até à loucura com a água que hoje falta nas ribeiras e nas barragens e que amanhã faltará nas torneiras.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Este Verão, Portugal e a Europa bateram recordes de temperatura nunca antes atingidos. Todos os rios de referência da Europa — o Danúbio, o Ebro, o Tibre, o Loire, o Tamisa — e todas as grandes barragens esvaziaram-se até ao esqueleto, numa antevisão tenebrosa daquilo que nos espera no futuro próximo. Num relatório apresentado há dias pela Organização Metereológica Mundial, estima-se que num dos próximos cinco anos viveremos o ano mais quente de que há memória, com as temperaturas a subirem, em média, 1,5 graus — exactamente aquilo que se queria evitar que acontecesse antes de 2050 e que mais de 150 países se tinham comprometido em Paris a tudo fazer para o evitar.

Hoje, porém, sabemos que tudo andou para trás, com a desculpa da guerra da Ucrânia: o regresso em força às energias fósseis (incluindo as centrais a carvão) fez com que as emissões de dióxido de carbono, responsáveis pelo aquecimento global, tenham já regressado a valores anteriores à pandemia, e sabemos que, mesmo que todos conseguissem imedia­tamente inverter o rumo e assegurar os compromissos estabelecidos para serem cumpridos até 2030, os danos são já irreversíveis — em 2050 já não será possível evitar que a temperatura do planeta se tenha fixado em pelo menos mais 1,5 graus do que hoje.

E daí para a frente entramos naquilo a que António Guterres chamou “territórios desconhecidos de destruição”, num processo de “sui­cídio colectivo” absolutamente irresponsável e demencial: aquecimento dos oceanos, degelo da calote polar, dos icebergues e dos Himalaias (com as inundações apocalípticas a que já estamos a assistir no Paquistão), secas extremas e prolongadas, começando pelos países sub-saarianos (onde o número de pessoas atingidas pela fome extrema duplicou nos últimos três anos), rios e barragens vazios ou reduzidos a caudais mínimos, culturas e animais em extinção, incêndios cada vez maiores e mais incontroláveis, água cada vez mais escassa para abastecer os humanos.

Nada disto, infelizmente, é uma visão catastrofista. Tudo é hoje matematicamente documentado e pacificamente aceite pela comunidade científica, excepção feita a alguns avatares que circulam à volta de Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Já tenho, todavia, escutado algumas teses que, não podendo negar o caminho para a catástrofe, julgam descortinar alternativas. São essencialmente de dois tipos: o tipo optimista e o tipo conformista. O primeiro pretende que, in extremis, à 25ª hora, a ciência encontrará maneira de evitar o desastre, como já o fez tantas vezes antes, ou o próprio planeta se encarregará de se regenerar por si mesmo: não sei como é que isso possa ser feito e, sobretudo, não sei como possa ser feito a tempo. Já a tese conformista parece-me mais do domínio do possível, embora sinistra: dizem eles que o que estamos a viver é resultado da exaustão dos recursos naturais por excesso de exploração humana. E, assim sendo, vamos viver uma crise “regeneradora”: milhares de milhões de seres humanos vão morrer para que os outros possam sobreviver e, com a experiência adquirida e a ajuda da ciência, possam retomar a vida num planeta mais limpo e liberto da pressão sufocante de hoje. Um darwinismo planetário em que já se adivinha quem serão os milhares de milhões sacrificados à cabeça.

Seja como for, o que é evidente é que já não estamos a falar de um cenário para as próximas gerações, nem sequer para a próxima. Décadas de passividade perante os avisos que o planeta foi dando conduziram ao que de repente parece uma súbita aceleração dos indicadores do desastre, mas que é apenas a resposta da doença à falta de tratamento: a catástrofe é agora iminente. E se já pouco me espanta numa geração de líderes mundiais que prefere continuar irresponsavelmente a ocupar-se dos seus jogos de guerra, negócios de armas e de energia enquanto o mundo que habitamos se desintegra à vista de todos, espanta-me, sim, a indiferença com que a geração jovem assiste a isto, comodamente instalada no seu mundo virtual e hedonista à espera que a Greta Thunberg resolva o assunto por eles. Peguemos, por exemplo, no caso português, um dos países mais ameaçados pelas alterações climáticas e pela seca, onde a ministra da Agricultura declarava no ano passado, triunfante, que o Algarve tinha água garantida para os próximos dois anos e onde, portanto, se continua a aprovar cegamente todos os projectos agrícolas que nem nos países com chuvas abundantes são autorizados. No meu tempo de juventude, em que líamos jornais e livros e nos manifestávamos nas ruas contra a guerra de África, mas também contra a longínqua guerra do Vietname, tínhamos uma ideia romântica, e todavia necessária, de que, por pior que fosse o presente, o futuro teria de ser construído por nós. Aqui e agora, porém, vi que um milhão de jovens acorreu aos concertos de Verão e que 200 mil esgotaram em dois dias, fazendo velórios nocturnos, os quatro concerto dos Coldplay na Primavera que vem, em Coimbra. Li que as juventudes partidárias lá fizeram as suas habituais “Universidades de Verão”, onde ouviram os seniores dos partidos ensinar-lhes como se faz carreira na política. Mas nem aí nem em lado algum vi que se arranjasse sequer uma dezena de jovens para confrontar o primeiro-ministro, a ministra da Agricultura ou o do Ambiente com a catástrofe ambiental para que Portugal caminha à frente do pelotão europeu. Em tempos, o Vicente Jorge Silva chamou à geração jovem de então uma “geração rasca”. Se fosse vivo, não sei o que chamaria à de hoje. Mas talvez fosse simples: a última geração.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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A desigualdade está a destruir o mundo

(Francisco Louçã, in Expresso, 20/11/2021)

A globalização criou uma das mais impressionantes viragens na distribuição do rendimento. E a discussão sobre as alterações climáticas também é uma história sobre desigualdade.


Cerca de um ano antes de morrer, o físico Stephen Hawking perguntava, num jornal britânico, qual é o efeito da desigualdade, numa situação em “que as vidas das pessoas mais ricas nas partes mais prósperas do mundo se tornam agonizantemente visíveis para todos, incluindo os pobres, que têm acesso a um telefone. E dado que já há mais pessoas com telefone do que com acesso a água potável na África subsariana, isto significa que em pouco tempo quase ninguém no nosso planeta sobrepovoado escapará à [perceção da] desigualdade” (“The Guardian”, 1/12/2016). Esta dramática constatação tem inúmeras implicações. A principal é mesmo a desigualdade que, destacada pela liquidez da comunicação, acrescenta a angústia ao castigo, particularmente onde mais se sofre, como num continente em que há mais gente com telemóvel do que com acesso a água. A desigualdade é uma agonia que está a destruir o nosso mundo e a sua visibilidade reforça a exigência de justiça.

DESIGUALDADE

Thomas Piketty, o economista francês que continuou brilhantemente uma velha tradição de estudos sobre desigualdade, tornou pública uma base de dados sobre muitos países, que nos conta o nosso tempo. Um dos dados mais impressionantes é a viragem criada pelo que então se chamou candidamente globalização. O sucesso social deste neoliberalismo pode ser medido nos Estados Unidos: em 1980, a parte do rendimento nacional que estava nas mãos dos 1% mais ricos era cerca de metade da dos 50% mais pobres. Uma enorme diferença, em média um rico já recebia num dia o que a metade remediada da população ganhava num mês. Quarenta anos depois, a relação inverteu-se e os 1% de cima têm quase o dobro do total dos 50% de baixo. Tem sido um furacão de mudança social.

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Um estudo recente da Reserva Federal de Chicago faz o seguinte exercício: pergunta se os pais de uma criança ganhavam o dobro do que o seu vizinho do lado, nos EUA, quanto tem sido a diferença de rendimentos desse filho, em adulto, em relação aos do vizinho? A resposta é, em média, mais 60%. Quem está à frente fica à frente, esqueçam a mobilidade social. No Brasil, a diferença é de 70%, em França de 41%, na Alemanha de 32%, mas na Dinamarca só de 15%. Pior ainda na China: o coeficiente de Gini, dados oficiais, é de 0,47 (a média da OCDE, como a portuguesa, é de 0,35). A desigualdade tem uma genealogia mas histórias diferentes.

O CUSTO SOCIAL DA POLUIÇÃO

A Cimeira de Glasgow, no seu clamoroso fracasso, teve a virtude de produzir informação atualizada sobre os riscos da poluição. Ficámos a saber que, com a política atual, o aumento da temperatura do planeta chegará aos 2,9oC e que, mesmo cumpridos os objetivos proclamados mas não imperativos, subirá 2,4oC, falhando o objetivo que não se pode falhar. Também aqui há uma história de desigualdade: os 1% mais ricos criam 70 toneladas de emissões poluentes per capita, em média, ao passo que os 50% mais pobres produzem uma tonelada per capita. A emissão produzida pelos mais ricos é trinta vezes o limiar que permitiria restringir o aumento médio da temperatura a 1,5oC. De novo, aqui está a equação de Hawking: a desigualdade é agonizantemente visível e está a agravar-se.

Há uma consequência desta fratura social e das suas implicações, como destes modos de vida que promovem a poluição. É a ingovernabilidade que nasce dos obstáculos sistémicos a soluções razoáveis e que bloqueia a política da transição energética e ambiental, perdida no labirinto dos interesses financeiros dominantes. Essa tendência só se vai agravar em guerras pela água e pela energia, ou em formas de apartheid social que defendem a desigualdade como condição agonizante inexpugnável.


Afinal, o dramalhão vale pela remodelação

Tenho alguma curiosidade em relação aos estratagemas de comunicação de instituições poderosas, mas creio que desta vez o Governo deu um passo maior do que a perna, para usar uma expressão do primeiro-ministro. Através de um dos canais que usa em alguns momentos delicados, fez um jornal de referência dar voz a um anónimo “membro do núcleo duro” do partido para comunicar que o próximo Executivo será “mais curto e mais compacto”, desígnio que ocupou o título da notícia. É notável que isto seja feito por um anónimo. Para mais, a descrição desta “compactação” dos ministérios é detalhada: Nelson Souza perderá o Ministério do Planeamento, Alexandra Leitão perderá o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública, dado que ambas as estruturas desaparecerão, uma engolida pelos abismos próprios destas coisas e a outra pelo sempre omnipotente Ministério das Finanças. Poderão continuar no Governo em outras funções, mas, se a “compactação” é também um “encurtamento”, alguém sairá. Nas secretarias de Estado, uma razia, explica a mesma fonte anónima, será tudo “mais operacional”. Em resumo, uns saem, outros ficam, outros mudam, e alguns ministérios mudam de nome.

Entretanto, perante algum incómodo silencioso de São Bento, Dombrovskis já anunciou em Bruxelas que o novo Orçamento será entregue à Comissão Europeia em março, portanto poucos dias depois da tomada de posse do próximo Governo. Ou seja, o futuro Orçamento já está pronto. Resta então a questão: se o próximo Governo já tem o malfadado Orçamento e se a remodelação já está “compactada”, para que foi todo o dramalhão? Alguém ainda se lembra de qual foi a razão da crise que levou a exigir a maioria absoluta do partido que, se a falhar, se dispõe a pactuar com o PSD?


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