Gaza: uma pausa antes da tempestade

(Por Pepe Escobar, in TheCradle, 23/11/2023, Trad. Estátua de Sal)

Os EUA e os seus aliados continuarão a apoiar a guerra de Israel em Gaza após uma breve trégua. No entanto, à medida que a defesa do “genocídio” se fortalece, as novas potências multipolares terão de confrontar as antigas hegemonias e o seu Caos Baseado em Regras.


Enquanto o mundo grita “genocídio israelita”, a Casa Branca de Biden entusiasma-se com a próxima trégua em Gaza que ajudou a mediar, como se estivesse realmente “à beira” da sua “maior vitória diplomática”. (Ver aqui).

Por trás das narrativas auto congratulatórias, a administração dos EUA não está nem remotamente “cautelosa quanto ao fim do jogo de Netanyahu”, mas apoia-o totalmente – incluindo o genocídio – conforme acordado na Casa Branca menos de 3 semanas antes da Operação militar do Hamas de Al-Aqsa, numa reunião de 20.9.2023 entre o presidente israelita, Benjamin Netanyahu, e os manipuladores de Joe “The Mummy” Biden.


A “trégua” mediada pelos EUA/Qatar, que deverá entrar em vigor esta semana, não é um cessar-fogo. É uma medida de relações públicas para suavizar o genocídio de Israel e aumentar o seu moral, garantindo a libertação de algumas dezenas de cativos.


Além disso, os registos mostram que Israel nunca respeita cessar-fogo. Previsivelmente, o que realmente preocupa a administração dos EUA é a “consequência não intencional” da trégua, que “permitirá aos jornalistas um acesso mais amplo a Gaza e a oportunidade de tornar ainda mais clara a devastação que aí existe e tal virar a opinião pública contra Israel”.

Os verdadeiros jornalistas têm trabalhado em Gaza 24 horas por dia, 7 dias por semana, desde 7.10.2023 – dezenas dos quais foram mortos pela máquina militar israelita, no que a Repórteres Sem Fronteiras chama de “um dos números mais mortíferos num século”.

Estes jornalistas não pouparam esforços para ir até ao fim “iluminar a devastação”, um eufemismo para o genocídio em curso, mostrado em todos os seus detalhes horríveis para o mundo inteiro ver.

Até mesmo a Agência de Assistência e Obras da ONU para a Palestina (UNRWA), ela própria implacavelmente atacada por Israel, revelou – de forma um tanto humilde – que este foi “o maior deslocamento desde 1948”, um “êxodo” da população palestina, com a geração mais jovem “forçada a viver os traumas dos seus ancestrais ou pais.”

Quanto à opinião pública em todo o Sul Global/Maioria Global, há muito que “se voltou” contra o extremismo sionista.

Entretanto a, agora, Minoria Global – populações do Ocidente coletivo – observa extasiada, horrorizada e amarga que, em apenas 6 semanas, os meios de comunicação social os expuseram ao que os grandes meios de comunicação esconderam durante décadas. Não haverá como voltar atrás agora que a máscara caiu.

Um antigo estado de apartheid lidera o caminho


O governo sul-africano preparou o caminho, em nível global, para a reação adequada a um genocídio em curso: o parlamento votou pelo encerramento da embaixada israelita, pela expulsão do embaixador israelita e pelo corte dos laços diplomáticos com Tel Aviv. Os sul-africanos sabem alguma coisa sobre o apartheid.

Eles, como outros críticos de Israel, devem ser extremamente cautelosos no futuro.
Qualquer coisa pode ser esperada: um surto de falsas bandeiras “terra terra terra” conduzidas por inteligência estrangeira, calamidades climáticas induzidas artificialmente, falsas acusações de “abuso dos direitos humanos”, o colapso da moeda nacional, do rand, casos de guerra legal, apoplexia atlantista variada, sabotagem da infraestrutura energética.

E mais. Várias nações já deveriam ter invocado a Convenção do Genocídio – dado que os políticos e funcionários israelitas têm-se gabado, publicamente, de arrasar Gaza e de sitiar, deixar passar fome, matar e transferir em massa a sua população palestina. (Ver aqui sobre a referida Convenção).

Nenhum ator geopolítico ousou até agora. A África do Sul, por seu lado, teve a coragem de ir onde poucos Estados muçulmanos e árabes se aventuraram. Tal como as coisas estão, quando se trata de grande parte do mundo árabe – particularmente dos estados clientes dos EUA – eles ainda estão em território do Pântano Retórico.
A “trégua” mediada pelo Qatar chegou precisamente no momento certo para Washington.
Roubou a atenção sobre a delegação de ministros dos Negócios Estrangeiros islâmicos/árabes que visitava capitais selecionadas para promover o seu plano para um cessar-fogo completo em Gaza – além de negociações para um Estado palestino independente.
Este Grupo de Contacto de Gaza, que reúne a Arábia Saudita, o Egito, a Jordânia, a Turquia, a Indonésia, a Nigéria e a Palestina, fez a sua primeira paragem em Pequim, reunindo-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, e depois em Moscovo, reunindo-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov.
Este foi definitivamente um exemplo do BRICS 11 já em ação – mesmo antes de terem começado a funcionar em 1.1.2024, sob a presidência russa.

A reunião com Lavrov, em Moscovo, foi realizada simultaneamente com uma sessão extraordinária “online” dos BRICS sobre a Palestina, convocada pela atual presidência sul-africana. O Presidente do Irão, Ebrahim Raisi, cujo país lidera o Eixo de Resistência da região e recusa qualquer relação com Israel, apoiou as iniciativas sul-africanas e apelou aos estados membros do BRICS para usarem todas as ferramentas políticas e económicas disponíveis para pressionar Telavive.

Foi também importante ouvir do próprio presidente chinês, Xi Jinping, que “não pode haver segurança no Médio Oriente sem uma solução justa para a questão da Palestina”. Xi sublinhou mais uma vez a necessidade de “uma solução de dois Estados”, a “restauração dos legítimos direitos nacionais da Palestina” e “o estabelecimento de um Estado independente da Palestina”.

Nada disto é suficiente nesta fase – nem esta trégua temporária, nem a promessa de uma negociação futura. A administração dos EUA, ela própria a debater-se com uma reação negativa global inesperada, na melhor das hipóteses, fez um braço de ferro com Telavive para decretar uma curta “pausa” no genocídio. Isso significa que a carnificina continua depois de alguns dias.

Se esta trégua tivesse sido um verdadeiro “cessar-fogo”, em que todas as hostilidades cessassem e a máquina de guerra de Israel se desligasse totalmente da Faixa de Gaza, as opções para o dia seguinte ainda seriam bastante sombrias.

O especialista da Realpolitik, John Mearsheimer, já foi direto ao assunto: uma solução negociada para Israel-Palestina é impossível. Basta uma rápida olhadela no mapa atual para demonstrar graficamente como a solução de 2 Estados – defendida por todos, desde a China-Rússia até grande parte do mundo árabe – está morta. Um conjunto de “bantustões” isolados nunca poderá fundir-se como Estado.


Vamos ficar com todo o gás deles


Tem havido rumores estrondosos em todo o espectro de que, com o advento do “petroyuan” cada vez mais próximo, os americanos precisam urgentemente de energia do Mediterrâneo Oriental comprada e vendida em dólares americanos – incluindo as vastas reservas de gás ao largo da costa de Gaza. É aí que entra o conselheiro de segurança energética da administração dos EUA, destacado para Israel para “discutir potenciais planos de revitalização económica para Gaza centrados em torno de campos de gás natural “offshore” “não desenvolvidos”: que eufemismo adorável. (Ver aqui). Embora o gás de Gaza seja, de fato, um vetor crucial, Gaza, o território, é um incómodo. (Ver aqui). O que realmente importa para Telavive é confiscar todas as reservas de gás palestinas e atribuí-las a futuros clientes preferenciais: a UE. (Ver aqui).
Entra-se no Corredor Índia-Médio Oriente (IMEC) – na verdade, o Corredor UE-Israel-Arábia Saudita-Emirados-Índia – concebido por Washington como o veículo perfeito para Israel se tornar uma potência energética de encruzilhada.
Imagine a fantasia de uma parceria energética EUA-Israel negociada em dólares americanos – substituindo simultaneamente a energia russa para a UE e travando um possível aumento da exportação de energia do Irão para a Europa.

Regressamos aqui ao principal tabuleiro de xadrez do século XXI: o Hegemon vs. BRICS. Pequim tem mantido relações estáveis ​​com Telavive até agora, com investimentos generosos nas indústrias e infraestruturas de alta tecnologia israelitas.
No entanto, o ataque de Israel a Gaza pode mudar esse quadro: nenhum verdadeiro soberano pode proteger-se quando se trata de um verdadeiro genocídio.
Paralelamente, seja o que for que o Hegemon possa apresentar nos seus vários cenários de guerra híbrida e quente contra os BRICS, a China e a sua multimilionária Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), mostra que isso não alterará a trajetória racional e estrategicamente formulada de Pequim.

Esta análise de Eric Li é tudo o que precisamos saber sobre o que está por vir. (Ver aqui). Pequim traçou todos os caminhos tecnológicos relevantes a seguir em sucessivos planos quinquenais, até 2035. Neste quadro, a BRI deveria ser considerada uma espécie de ONU geoeconómica sem o G7. Se estivermos fora da BRI – e isso diz respeito, em grande medida, aos antigos sistemas compradores e às elites – estaremos a auto-isolar-nos do Sul Global/Maioria Global.

Então, o que resta desta “pausa” em Gaza? Na próxima semana, os covardes apoiados pelo Ocidente reiniciarão o seu genocídio contra mulheres e crianças, e não irão parar por muito tempo. A resistência palestina e os 800 mil civis palestinos que ainda vivem no norte de Gaza – agora cercados por todos os lados por tropas e veículos blindados israelitas – estão provando que estão dispostos e são capazes de suportar o fardo da luta contra o opressor israelense, não apenas pela Palestina, mas também por todos, em todos os lugares, com consciência. Apesar de um preço tão terrível a pagar com sangue, acabará por haver uma recompensa: a lenta mas segura evisceração da construção imperial na Ásia Ocidental.
Nenhuma narrativa da grande mídia, nenhum movimento de relações públicas para suavizar o genocídio, nenhuma contenção da “opinião pública que se volta contra Israel” poderá alguma vez abafar os crimes de guerra em série perpetrados por Israel e pelos seus aliados em Gaza. Talvez seja isto mesmo que o Doutor – metafísico e não só – receitou à Humanidade: uma tragédia global imperativa, para ser testemunhada por todos, e que também a todos transformará.

Fonte aqui.


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As estrelas do devorismo

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 26/11/2023)


As principais estrelas dos devoristas de Novembro de 75 estão reunidas num ato celebratório em Almada, no Congresso do PSD. A data escolhida é muito apropriada. Estão no tempo certo para celebrar o saque que a contrarrevolução lhes proporcionou, mas argumentam com a liberdade ameaçada e o perigo da guerra civil. Seja. Para mim é matéria dada e para eles é matéria recebida. Voltemos aos nossos bolsos, o lugar onde tradicionalmente trazemos a carteira com todos os nossos cartões, os do dinheiro e os que dizem quem somos, o do cidadãos e o do contribuinte. Para o cerimonial dos devoristas ser perfeito, em vez de um pavilhão em Almada deveriam reunir-se na antiga sede do BPN, na rua Marquês de Fronteira, a grande obra dos devoristas, que hoje são oligarcas impolutos. Mas atrás de uma grande fortuna há sempre um crime. A frase é atribuída de Balzac, e convém recordá-la, porque estes crimes não passam no Correio da Manhã.

O suplemento «Dinheiro Vivo», do Diário de Notícias de 6 de Maio de 2019 apresentava um resumo da situação que está a ser comemorada, como um passo para impor uma ideologia que promova a sua ascensão política ao centro das decisões do Estado e de, a partir dele, ao poder de saque sobre as riquezas nacionais. Os devoristas do 25 de Novembro pretendem celebrar a reconquista da banca e do poder de obrigar o Estado a pagar os riscos dos negócios especulativos, de tornar o negócio da banca sem riscos e com alta rentabilidade. A Banca, é a Banca, estúpidos que se celebra. estamos exatamente no mesmo ponto que levou o fundador da família a confessar o segredo do poder: ‘’Deixem-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importa quem faz as suas leis’’.

Elementos retirados do suplemento «Dinheiro Vivo», do Diário de Notícias. As ajudas do Estado aos bancos portugueses custaram aos contribuintes quase 10% do produto interno bruto, que em 2018 estava nos 201 mil milhões de euros. Em vez de financiar a criação de riqueza do país, a banca nacional tem sido um sorvedouro de dinheiro dos portugueses, numa fatura que não cessa de aumentar. São 17 mil milhões de euros. A fatura foi emitida no fim do ano passado (2018) pelo Tribunal de Contas, detalhando o custo de cada banco alvo de intervenção do Estado na última década. Se acrescentarmos o mais recente pedido de “ajuda” do Novo Banco, a fatura deverá este ano (2019) ultrapassar os 18 mil milhões de euros. Trocando por miúdos, cada português já contribuiu assim com 1.800 euros para ajudar a salvar a banca. No Orçamento do Estado para 2019, o governo inscreveu uma despesa de 850 milhões para ajudas à banca, mas o encargo tem tudo para ser maior, já que o Novo Banco vai pedir ao Fundo de Resolução, que é financiado pelo Estado e pelos bancos, mais 1.149 milhões de euros. No que toca a ajudar bancos em problemas, o nosso país não tem igual entre os seus parceiros europeus. Segundo dados do Eurostat analisados pelo Dinheiro Vivo, Portugal é o Estado com a fatura mais pesada da Europa a 28, registando ainda a segunda maior taxa de esforço relativamente ao produto interno bruto. Só no espaço de três anos, entre 2014 e 2017, os contribuintes portugueses pagaram 12,8 mil milhões de euros em apoios ao setor financeiro, com uma taxa de esforço equivalente a 6,6% do PIB. Portugal gastou mais dinheiro em ajudas à banca do que Itália, uma economia oito vezes maior do que a nossa e que, com 10,5 mil milhões de euros, aparece em segundo neste pouco desejado ranking europeu.

As estrelas do devorismo resultante do 25 de Novembro de 1975 não foram, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, nem frequentadores do Bar Tamila, nem militares contratados dos Comandos, nem sequer residentes da Quinta da Marinha, nem mesmo cónegos na Sé de Braga, foram o Banco Português de Negócios, o BPN sem fundo, e o Novo Banco. Não foram Eanes nem Jaime Neves, foram Cavaco Silva e Oliveira e Costa, entre outros. O BPN foi o banco do núcleo duro dos devoristas, vale muito mais do que o Regimento de Comandos. O caso BPN refere-se a um conjunto de manobras típicas das ações de assalto sem dor, corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influências, e que conduziram ao objetivo de levar o banco à nacionalização, isto é, a colocar na conta do Estado os prejuízos resultantes do saque. Ao BPN estavam ligados ex-membros dos devoristas reunidos no X Governo Constitucional, chefiado por Cavaco Silva, como Dias Loureiro, José Oliveira e Costa, Duarte Lima e Miguel Cadilhe. Entre as organizações envolvidas encontram-se, além do BPN, a Sociedade Lusa de Negócios e o Banco Insular. O BPN teve até à sua venda pelo governo PSD/PP chefiado por Passos Coelho ao BIC um custo para o Estado Português de 7 mil milhões de Euros. Não foi dinheiro deitado ao mar. Foi comido pelos devoristas que, como parece evidente, têm bons motivos para celebrar. E a maioria lá estava em Almada, lavadinhos e passados a ferro.

O BANIF seria uma das outras realizações dos devoristas de Novembro. O Banco Internacional do Funchal, de Horácio Roque, herdeiro da Caixa Económica do Funchal e com raízes em Angola, surge numa reportagem da revista Sábado como uma máquina onde foram lavados 1,4 mil milhões de euros dos negócios da elite angolana e com extensões ao escândalo Lava Jato do Brasil. Um banco que acabaria por ser intervencionado pelo Estado português, que o vendeu ao Santander no final de 2015 por 150 milhões de euros, apesar de a operação ter envolvido um apoio total de 2,4 mil milhões de euros por parte dos cofres do Estado. Dinheiro que foi parar aos bolsos de alguém que tem boas razões para celebrar o 25 de Novembro.

O nome seguinte na lista de motivos celebratórios do 25 de Novembro é o do BES/Novo Banco, alvo de uma medida de resolução em Agosto de 2014, apoiado pelo então governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, um quadro da área do PSD, quando o Governo decidiu dividir o antigo Banco Espírito Santo numa parte má e numa parte boa, que ficou com o nome de Novo Banco. Desde então o banco outrora liderado por Ricardo Salgado, custou aos cofres do Estado 4,6 mil milhões de euros, valor que deverá aumentar com o «saneamento» do Novo Banco, entretanto comprado pelo fundo norte-americano Lone Star. Uma prática recorrente nos sistemas de oligarquia, a parte boa fica para os oligarcas, a parte má para o comum das gentes.

Na lista de prejuízos o caso mais desastroso para o erário público acaba por ser o do BANIF, como admitiu Mário Centeno, antigo ministro das finanças e atual governador do Banco de Portugal, que em declarações ao Financial Times revelou que, tendo em conta que o BANIF era apenas o sétimo maior banco português, “foi provavelmente o mais dispendioso resgate de um banco na Europa”.

Num resumo que devemos aos devoristas: a reorganização dos bancos após a reprivatização resultante do 25 de Novembro eliminou todos os bancos anteriores, o Banco Português do Atlântico, o Pinto&Sottomayor, Pinto Magalhães, Fonsecas&Burnay, entre outros mais pequenos e eliminou pelo menos dez mil postos de trabalho. No caso do BPN, o mais antigo deste rol, o peso para as contas públicas tem-se prolongado no tempo e não dá mostras de ter chegado ao fim. Segundo o Tribunal de Contas, a fatura da nacionalização do Banco Português de Negócios, em proveito dos acionistas, não tem parado de crescer, mesmo tendo em conta a venda e a criação de sociedades estatais que acabaram por ficar com os ativos da instituição que foi liderada por José Oliveira Costa.

O BPN, o Banco Português de Negócios fez de Portugal um banco de negócios para os devoristas. O BPN é o paradigma do 25 de Novembro de 1975 e da nova classe no poder. No final de 2017, o saldo acumulado das receitas e despesas orçamentais decorrentes da nacionalização e reprivatização do BPN e da constituição e funcionamento das sociedades-veículo Parups, Parvalorem e Parparticipadas ascendia a 4.095 milhões de euros, revelou o parecer do Tribunal de Contas. Aliás, os juízes do Tribunal de Contas admitem que a conta do BPN poderá chegar perto dos 6 mil milhões de euros. Um buraco sem fundo, portanto. É este buraco que Moedas, um antigo alto funcionário do maior banco de investimentos do mundo, o Goldman Sachs e os neoliberais querem celebrar, em nome da liberdade e da democracia! E lá o vimos na Caçada da Ajuda a pendurar uma coroa de flores em memória de militares mortos por uma qualquer causa que não seria, com certeza, a de produzir Moedas! E ficamos por aqui na celebração? Em 25 de Novembro de 2023, celebramos 17 mil milhões de euros engolidos pelos devoristas. mas há ainda as privatizações!

Nos últimos vinte anos, os governos do devorismo, do bloco de interesses vencedor do 25 de Novembro de 1975, decidiram privatizar as mais importantes empresas, empresas estratégicas, à cabeça, a Eletricidade de Portugal (EDP) e as redes nacionais de energia (REN). Estas empresas foram privatizadas em 2011 e tiveram a triste fama de serem maiores privatizações do ano na Europa. Durante 2012, 2013 e 2014, dos devoristas dos governos liderados por Passos Coelho (agora erigido em homem providencial) Portugal ocupou o primeiro lugar no número de vendas a nível europeu e a justificativa política foi a superioridade da gestão privada, combinada com a pressão das instituições europeias para reduzir o déficit e a dívida. Entre 1994 e 1998 a EDP registou mais de dois mil milhões de euros em lucros, em outubro de 2000 o Estado vendeu 20% das ações da EDP, mas apenas 10% da venda permaneceu em Portugal, cerca de 70% das ações foram comprados na Inglaterra e nos Estados Unidos. Entre 2004 e 2009 a EDP entregou aos acionistas em dividendos mais de mil milhões de euros, apesar de acumular uma dívida gigantesca equivalente a cerca de 9% do produto interno bruto português. Em 2015 a EDP continuava no topo da remuneração de acionistas e gestores e a dívida manteve-se aos níveis dos dez anos anteriores. As privatizações da EDP e da REN causaram polémica quando o Ministério Público identificou sinais de tráfico de influências, manipulação de preços e tráfego de informação privilegiada em 2012. Ninguém foi julgado. Em 2011, o presidente da empresa chinesa encarregada de dirigir a compra da EDP (Three Gorges) considerou que a compra era barata e no ano seguinte foi promovido ao comitê central do Partido Comunista Chinês e nomeado vice-governador de uma província chinesa. Durante esse processo surgiram mais irregularidades, a Associação Transparência e Integridade registou que na comissão eventual para o acompanhamento das medidas do programa havia deputados com interesses diretos em empresas envolvidas em privatizações. O Tribunal de Contas reuniu-se apenas com a comissão de acompanhamento da privatização da EDP quando o negócio já estava fechado, e as nomeações para os órgãos sociais da EDP pelo acionista chinês causaram perturbação (um deles, Rocha Vieira, foi o orador principal na celebração do 25 de Novembro na Câmara Municipal de Lisboa!). A EDP foi a empresa que mais dividendos entregou aos acionistas entre 2008 e 2015 (4,4 mil milhões de euros). A maior parte desses lucros resultou das rendas excessivas pagas pelo Estado. A empresa Redes Energéticas Nacionais (REN) integrou o grupo Energias de Portugal (EDP) até 1994, quando foi constituída como uma empresa pública autónoma com a propriedade de redes de transporte de energia importadas e produzidas em Portugal. O Estado deteve a administração da empresa até 2014, quando as últimas ações da empresa foram vendidas e passaram para o controlo chinês. A TAP foi outra importante empresa privatizada. O processo foi objeto de investigação pela Procuradoria-Geral da República devido a suspeitas de corrupção e tráfico de influência. Também sem consequências. Em 2015 foi anunciada a venda da companhia à Atlantic Gateway, e um ano depois, em 2016, o governo anunciou que está em processo de recuperação de 50% do capital, através de um processo de reprivatização da empresa. A empresa Aeroportos de Portugal (ANA), também foi privatizada em 2012, e vendida à Vinci (uma empresa de construção civil francesa) por 3 mil milhões de Euros.

Este é o retrato do resultado do 25 de Novembro de 1975 que os devoristas, a fação dos negócios da grande frente conservadora está a comemorar como ato de preparação para nova vaga de assalto, agora aos fundos PRR.

É um retrato contabilístico que esquece ganhos políticos e sociais? Não esquece, apenas lembra o que deliberadamente tem sido ocultado. Os ganhos têm sido devidamente celebrados: são apresentados como os benefícios da democracia. Mas foi com um regime democrático que o saque aos bens públicos foi efetuado! E esse facto devia fazer-nos refletir, e a todos os europeus, sobre a qualidade desta democracia. Em que medida a nossa liberdade de expressão de vontade em eleições determina as decisões que permitem a acumulação de riqueza nas mãos de grupos organizados e fora de controlo democrático? Como surgem o BPN e o Novo Banco no regime democrático? Como surgem PPP para autoestradas, pontes e hospitais? Como surgem as administrações dos órgãos de manipulação da opinião pública? Quem controla os cambões entre as grandes cadeias de distribuição de onde saem os preços dos produtos essenciais? Quem controla o aparelho judicial que seleciona os seus alvos?

A grande questão do regime democrático é a tradução da vontade dos cidadãos em atos que determinam a vida da polis. É sobre essa tradução que devíamos estar a discutir. Devíamos, neste 25 de Novembro, como em todos, e nos 25 de Abril refletir como os devoristas chegaram ao poder e não a celebrar o modo como chegaram.

A frase atribuída a Churchill de que a democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros, é uma falácia. Cai bem, mas não é verdade. É um logro. A democracia inglesa foi sempre e é ainda hoje o regime de maior sucesso mundial baseado no princípio da servidão voluntária. Basta ler a história de Inglaterra, da sua Grande Revolução, a biografia de Winston Churchill e do fundador da família, no século dezoito, John Churchill, primeiro duque de Marlborough.

A propósito aproximam-se eleições e há o PRR!

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Os Devoristas de Novembro

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 25/11/2023)

A imagem é um cartoon de Bordalo Pinheiro

O que comemora quem comemora o 25 de Novembro de 1975 em 2023 e quem o comemora e com que finalidade?

O 25 de Novembro tem o «Documento dos Nove» como carta constitucional. Constituiu o máximo denominador comum das forças que se opunham a uma revolução, no sentido de rutura com a hierarquia de valores num dado modo de produção,, de distribuição de riqueza e de representação política . O seu objetivo declarado foi o estabelecimento da Ordem e Liberdade. Ordem é uma palavra agregadora de militantes conservadores, avessos a mudanças, a não ser as do tempo. Tal como Liberdade, quando, como era o caso, surge associada ao perigo da ditadura comunista. Os conceitos de Ordem e a Liberdade na Quinta da Marinha, nos arredores de Lisboa e na Foz do Douro, são muito diferentes dos conceitos de Ordem e Liberdade no bairro de Chelas e da Quinta do Conde, na região de Lisboa, ou nos bairros das Fontaínhas, ou do Aleixo, no Porto.

A ação militar do 25 de Novembro é, se analisada à luz crua dos factos, um ataque aos quartéis da Calçada da Ajuda, a meio quilómetro do Palácio de Belém, realizado por uma formação de militares contratados para o efeito, veteranos da guerra colonial, sob o comando direto de Jaime Neves. Entretanto a Força Aérea transferira as suas aeronaves e pilotos para a base da NATO, na Cortegaça, retirara os oficiais paraquedistas da sua unidade de Tancos e provocara os seus sargentos passando-os aos Exército, cortando-lhes o vencimento e a alimentação. Foi assim criada a causus belli do 25 de Novembro, com a ida de delegações de sargentos paraquedistas a bases aéreas que não tinham nem aviões nem pilotos, do mesmo modo que os comandos atacaram uma unidade que se mantinha no seu quartel, às ordens do Presidente da República, que se encontrava em Belém, numa situação dúbia de detido à vista, mas formalmente em funções!

Este é um resumo dos factos, nada de empolgante. Importa perceber o que está por detrás da aparentemente estapafúrdia proposta do engenheiro Moedas, presidente da Câmara de Lisboa de celebrar condignamente o 25 de Novembro! Quem impôs a sua ordem e a sua liberdade e quem lucrou com o 25 de Novembro e tem razões para celebrar a data. O engenheiro Moedas é, nas palavras de Ricardo Salgado, um tipo que as personalidades como as do tempo Dono Disto Tudo põem a funcionar por sua conta. É um homem por conta. Não se lembrou de celebrar o 25 de Novembro por um arrobo de consciência cívica, para celebrar a Liberdade!

Como dizia José Silva Carvalho, ministro das finanças de um dos governos saídos da guerra entre absolutistas e liberais, do vintismo: «Não se consolidam revoluções políticas sem serem acompanhadas de alterações profundas no estado social, e, entre os elementos de que este se compõe, o mais importante é a divisão e a distribuição da propriedade territorial.»

O que estava em causa em 25 de Novembro de 1975 era exatamente a divisão e a distribuição das propriedades nas mãos do Estado, resultante da nacionalização da banca em 11 de Março de 1975, a alavanca em que assenta o poder de determinar a acumulação da riqueza e a hierarquia social.

O 25 de Novembro de 1975 e os tempos que se lhe seguiram replicam os processos de regeneração política, económica e social após períodos de agitação social do que foi designado por revolução liberal de 1820 e o aproveitamento então feito por uma nova classe da venda dos bens nacionais resultantes da incorporação dos bens da Igreja, da família real e parte dos da Coroa, os chamados bens de mão-morta. Da venda em hasta pública da enorme riqueza móvel e imóvel disse Alexandre Herculano: «Essa enorme riqueza caiu nas mãos de homens opulentos. Em muitos casos foi o rico proprietário que conglobou o nos seus extensos prédios vários prédios nacionais. Assim se anularam os mais importantes resultados que se deviam ter retirado da reivindicação parcial dos bens da Coroa para o património público e da extinção das ordens religiosas.» Os principais beneficiários de transferência da propriedade para os capitalistas foram nobilitados pelo vintismo — condes, viscondes, barões — que deram origem à frase de «foge cão que te fazem barão, mas para onde se me fazem visconde», aos quais se devem juntar os banqueiros, com a fundação do Banco de Lisboa, primeiro banco português, em 1821, que se unirá à Companhia Confiança para fundar o Banco de Portugal, o Banco Comercial do Porto em 1831, a entrada no negócio da banca de Henrique Burnay, dos irmãos Fonseca, entre outros que sobreviverão até ao 11 de Março de 1975 e que, com exceção dos Espirito Santo, desaparecerão às mãos da nova classe que criou os novos bancos… os devoristas de Novembro, os do Banco Português de Negócios, os que substituíram Cupertino de Miranda desmembrando o seu Banco Português do Atlântico, o maior banco comercial português, que apareceram depois do 25 de Novembro à frente dos BPN, BANIF, BPI, BCP, BPP…

A constelação de proprietários, bancários e políticos que no século dezanove tomaram o Estado como um bem particular recebeu o pejorativo nome de Devoristas, cuja definição reproduzo de um historiador espanhol, por ser mais colorido: «Devorismo (fue el término peyorativo para describir el régimen político que se estableció en Portugal después de las Guerras Liberales , particularmente durante el período del 24 de septiembre de 1834 al 9 de septiembre de 1836… Tenía la intención de transmitir una sensación de codicia sin principios, por la cual los principales políticos gastaban fondos públicos en abundancia para asegurar ganancias personales para ellos o sus asociados. El término fue acuñado después de que se redactó una ley el 15 de abril de 1835, que preveía la venta de bienes nacionales y bienes de la Iglesia Católica , y facilitaba su disposición entre los principales miembros del partido liberal.»

Os promotores da ideia de celebrar o 25 de Novembro como uma grande data nacional são os atuais devoristas. Ou são os devoristas do atual regime. Embora os devoristas do regime se tenham desenvolvido no que tem sido designado o «arco da governação», eles tipificam particularmente o cavaquismo e a sua fase ascensional. E têm na maioria o Selo de Garantia do banco Goldman Sachs, caso de Moedas, mas também de Durão Barroso, ou de Arnault, do falecido António Borges…

O 25 de Novembro que os seus herdeiros, ou porta-estandartes, pretendem celebrar é o 25 de Novembro da lei 46/77 de 8 de Julho, que considerava que a iniciativa económica privada, enquanto instrumento do progresso coletivo e se podia exercer livremente, nos quadros definidos pela Constituição, pela lei e pelo Plano, embora ainda vedasse a empresas privadas a atividade bancária e seguradora, o acesso à produção, transporte e distribuição da energia elétrica e gás para consumo público, comunicações por via postal, telefónica e telegráfica, transportes regulares aéreos e ferroviários, exploração de portos marítimos e aeroportos, indústria de armamento, Indústria de refinação de petróleos; petroquímica de base; siderurgia; adubos e cimentos. A lei Lei 88-A/97, de 25 de Julho revoga a lei 46/77 e todas as atividades que estavam vedadas passam a ser passiveis de exploração privada quando concessionadas. A banca seria desnacionalizada em 1983.

Os Devoristas venceram. São hoje senadores da Nação e os filhos e netos são neoliberais de sucesso na banca e nos negócios especulativos. Aparecem nas revistas dos famosos e a comentar a atualidade nas TV’s em lições de catequese para pobres de espirito.

Para os devoristas, Portugal é uma marca (Allgarve) e um mercado. Os cidadãos são consumidores. A coroa de glória dos devoristas do 25 de Novembro são as Parcerias Público-Privadas, não foi o assalto ao quartel da Ajuda.

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