Alternância e bloco central. Duas faces de uma má moeda.

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/02/2015)

         Daniel Oliveira

                        Daniel Oliveira

Perante sondagens que dão menos de um terço dos votos a toda a direita nacional, o que corresponderia à sua maior derrota em toda a história da democracia portuguesa, Pedro Passos Coelho pede maioria absoluta. Não lhe condeno a ousadia, apesar dele saber tão bem como todos nós que se trata de uma miragem. Uma miragem que ele próprio só poderia tornar real se passasse a pasta a outro que reconstruísse a direita nacional. Mais: caso Pedro Passos Coelho ficasse em primeiro, nem ao governo de bloco central poderia aceder, já que esse é o único interdito que todos sabemos existir. O PS ainda não colocou completamente de lado uma aliança com o PSD. Mas uma aliança com Passos Coelho partiria de forma irremediável o PS em bocados e seria o primeiro passo para o transformar no PASOK português. Em resumo, de uma forma ou de outra, o atual primeiro-ministro tem os dias contados. No entanto, compreende-se o seu apelo. Houve alguém que lhe deu espaço para isso. E esse alguém foi António Costa.

Já aqui escrevi que o problema de António Costa é achar que pode vencer as eleições fazendo o que sempre foi feito: não dizer muito, tentar ficar bem em todos os cenários e deixar que o quem governa se afunde. Na realidade, pode. Mas o resultado que vai conquistar será tão à tangente que estaria destinado a um bloco central, numa aliança com um PSD dirigido por um qualquer líder de transição. A não ser que, claro, à esquerda do PS haja alguém com força política para fazer a maioria. Força política que seria cobrada ao PS para clarificar o que Costa quer deixar obscuro. Até ver, essa força ainda não existe.

Os portugueses sabem o que não querem. Mas, tal como a maioria dos atores políticos, não têm a certeza do que querem. Estarão a olhar, os mais atentos, para o que se passa na Grécia. Não tanto para lhe seguir o exemplo, mas mais para ter uma ideia dos limites de ação que a Europa impõe. Apesar deste ser um raciocínio excessivamente temeroso, porque os limites serão tanto menores quanto mais governos anti-austeridade existirem, compreende-se a cautela. O que temos pela frente, pelo menos se quisermos fazer diferente do que Passos fez e mais do que Costa se compromete a fazer, é um campo minado.

A condicionar tudo, temos o pagamento inviável de uma dívida que já vai nos 129% do PIB. A nossa situação, é verdade, não apresenta o dramatismo da situação grega, que tem de amortizar 22 mil e quinhentos milhões de euros até ao final de 2015, com faturas pesadas já em maio e em junho. O nosso calendário, pelo menos em 2015, é menos severo. Lá para 2017 as coisas apertam mais. Temos acesso aos mercados a juros mais baixos. Não para nós, não devido à nossa estratégia, mas para todos. Mas é bom não nos iludirmos. A nossa dívida é, a médio e a longo prazo, totalmente insustentável. E, caso não se encontrem soluções na Grécia que nos favoreçam, teremos problemas graves de liquidez num futuro não distante. Infelizmente o governo português parece ser, por razões eleitorais, uma obstáculo a essa solução.

Alguém acredita que o caderno de encargos para o próximo governo será conseguido por uma mera alternância no poder, de quem vai até às eleições sem se comprometer com nada, ou com um governo de bloco central?

As contas foram feitas e refeitas. A conjugação dos vários fatores necessários para garantir a sustentabilidade da nossa dívida é virtualmente impossível: crescimento que não conhecemos desde que entrámos no euro, taxas de juro baixas, saldos orçamentais primários que exigem cortes que põem em causa o crescimento. Se acrescentarmos as metas delirantes do Tratado Orçamental, então estamos no domínio da fantasia absoluta. Para tudo o que se queira fazer com o objetivo de tirar o País da crise é preciso o mínimo de respiração orçamental. É mesmo indispensável renegociar a sua dívida para diminuir as despesas em juros. Essa renegociação pode e deve acontecer de forma multilateral. E essa é a primeira prioridade de qualquer governo: criar pontes com aliados europeus que este governo se dedica a hostilizar. Mas temos de nos preparar para as dificuldades gregas e saber que podemos ter de ser os próximos a estar mais ou menos sozinhos. Se damos algum valor ao futuro deste país, baixar os braços não é alternativa.

Entretanto, um novo governo tem de tratar das pessoas. Tem, à nossa dimensão, de ter a mesma prioridade que o governo do Syriza decidiu para si mesmo: de tratar dos problemas sociais mais graves. A prioridade das prioridades deve ser acudir às centenas de milhares de desempregados que vivem sem qualquer apoio social e encontrar soluções para as dívidas privadas – à banca e ao Estado – de muitas famílias que pura e simplesmente deixaram de conseguir pagar. E garantir o básico a quem ficou na miséria, como a habitação, a água, a energia e os transportes públicos. E travar a destruição do Serviço Nacional de Saúde e da Escola Pública. Tudo isto custa dinheiro. Há onde cortar e conseguir dinheiro, mas a evasão fiscal não tem, em Portugal, a dimensão que tem na Grécia. Há redistribuição de custos, mas voltamos sempre ao mesmo: precisamos de parte do dinheiro que gastamos em juros.

Tem de responder às razões profundas para a crónica desigualdade social do país, elemento fundamental para o nosso atraso económico. Isso faz-se nas políticas laborais, no reforço de um Estado Social mais eficaz, em políticas redistributivas (com especial prioridade ao aumento faseado do Salário Mínimo Nacional) e com medidas fiscais que aumentem a justiça e a equidade dos sistema. Tem de apostar em políticas de crescimento que o obrigam a moderar as restrições orçamentais e a aliviar os trabalhadores da pressão fiscal e salarial em que agora vivem. A economia portuguesa precisa de mercado interno.

Tem de travar os disparates feitos por este governo. Reverter as leis laborais, em especial a destruição da contratação coletiva. Combater a precariedade que torna as leis laborais numa fantasia. Travar as privatizações que não tenham sido concluídas – nesta matéria penso que se deve ser mais ambicioso do que o Syriza -, sobretudo a da água e fazer uma auditoria ao rigor legal com que todas foram feitas.

Mas um novo governo tem de aproveitar este momento histórico para mudar problemas estruturais do País. Na realidade, tem de ter aquilo a que agora se gosta de chamar “ímpeto reformista”. Mas no sentido inverso ao de Passos Coelho. A esquerda tem de levar a cabo uma verdadeira reforma do Estado, capaz de o tornar mais eficaz, democrático e racional. Uma parte nem sempre fácil para o espaço político a que pertenço. Não por gostar da irracionalidade, mas por haver naturais resistências a algumas mudanças que resultam em oposições populares ou sindicais com as quais este espaço político, que nunca ocupou posições de governo, não está preparado para lidar. Ainda assim, acredito que muitas das reformas são possíveis dentro de um espírito negocial que tem faltado aos sucessivos governos (e, por vezes, a alguns sindicatos). Negociar não é sinal de fraqueza, é sinal de inteligência.

Mas na reforma do Estado há outra guerra bem mais difícil, que envolve, como temos visto em sucessivos escândalos, atores bem mais poderosos. Uma luta para a qual é o PS que está totalmente impreparado: libertar o Estado dos interesses privados, combater os fenómenos de corrupção que minam a confiança dos cidadãos na democracia e desmontar as redes de interesses empresariais que, graças ao capitalismo rentista nacional, sugam os magros recursos públicos. Quem não conseguir começar este combate com o mínimo de resultados visíveis estará condenado aos olhos dos portugueses.

Este é o resumo do caderno de encargos para o próximo governo. Renegociar as condições do pagamento de uma dívida para ter recursos para mais do que a gestão da nossa agonia. Combater, com políticas salariais, laborais e fiscais, a nossa crónica desigualdade social. Responder às emergências sociais mais importantes, com especial atenção para os desempregados sem apoios e para as famílias endividadas. Reverter as alterações deste governo às leis laborais. Travar o processo de privatizações e a destruição dos serviços públicos. Começar uma verdadeira reforma do Estado e iniciar um combate sem quartel à captura do Estado por interesses privados. Alguém acredita que isto será conseguido por uma mera alternância no poder, de quem vai até às eleições sem se comprometer com nada, ou com um governo de bloco central? Só um abanão no sistema político, que seja consequente e não se limite a querer somar descontentes para ter mais deputados, pode fazer a diferença. O bloco central e a alternância não são duas coisas diferentes. São duas formas de continuarmos bloqueados.

Um pensamento sobre “Alternância e bloco central. Duas faces de uma má moeda.

  1. Daniel, a única coisa q o syriza conseguiu foi tempo. O memorandum mantem-se. As privatizações mantêm-se. a troika mantem-se, embora com outro nome. Uma conquista do syriza foi mudar o nome à troika q passou a chamar-se “as 3 instituições”. Não tarda q o povo abandone as suas expectativas face a um governo q não tem referências ideológicas de luta anti capitalista.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.