(João Gomes, in Facebook, 09/12/2025)


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Há quem diga que Portugal vive eternamente entre duas margens: a margem do défice e a margem do sacrifício. Mas Bruxelas, sempre criativa nos seus exercícios orçamentais, decidiu acrescentar uma terceira: a margem da generosidade forçada. Agora, pede a Portugal – não, perdão, exige – que assine uma garantia de 3,3 mil milhões de euros para um empréstimo destinado a manter viva uma guerra que já nem os Estados Unidos têm grande entusiasmo em financiar.
É admirável. No mesmo país onde um enfermeiro precisa de três empregos para sobreviver, onde um professor passa metade da vida em concursos que parecem piadas mal contadas, e onde os pensionistas recebem aumentos que mal compram dois sacos de arroz por mês, descobre-se que, afinal, há milhares de milhões para cativar. Basta Bruxelas estalar os dedos – ou citar o “interesse europeu” – e a carteira portuguesa abre-se mais depressa do que o SNS fecha urgências ao fim de semana.
Chamam-lhe “garantia”, como quem diz que não custa nada, que é só assinar ali e confiar que tudo correrá bem. Ora, todos sabemos que quando nos pedem uma garantia desse tamanho não é para comprar uma torradeira. É para alimentar uma fogueira geopolítica que já queimou orçamentos, vidas, diplomacias e paciências. Uma fogueira tão voraz que nem Washington, mestre em inventar guerras e financiá-las, quer continuar a atirar lenha.
Mas Portugal, sempre pronto a ser o melhor aluno da sala, vai sorrir enquanto assina o cheque invisível. Afinal, dizem-nos, “não sai do défice”. Pois claro – como também não sai do défice a eterna sobrecarga no SNS, o abandono da habitação social, os salários mínimos que tentam, com algum esforço, ser salários aceitáveis, ou as pensões que se arrastam no calvário da inflação.
É uma maravilha da engenharia política: não há dinheiro para garantir acesso à saúde, mas há para garantir um empréstimo que pode – só pode – transformar-se numa dívida real. Não há fundos para tirar famílias da precariedade, mas há para prometer cobertura caso um Estado estrangeiro deixe de pagar o que deve. Não há recursos para programas sociais estruturais, mas há para financiar uma guerra que nos chega apenas através de boletins, reuniões e comunicados cheios de pose moral.
E, ironicamente, tudo isto acontece enquanto nos dizem para apertar o cinto. Cortes na saúde, contenção nas pensões, ajustes laborais que cheiram a retrocesso – mas, lá está, no “interesse europeu”, a carteira abre-se como se Portugal fosse a Noruega com sol.
A verdade é que esta operação financeira é como pedir ao vizinho pobre que seja fiador de uma mansão em ruínas. Se tudo correr bem, não paga nada. Se correr mal… bem, sempre se pode aumentar mais um imposto, congelar mais um serviço, ou pedir aos trabalhadores – já habituados a sacrifícios – que compreendam mais uma inevitabilidade.
Enquanto isso, Bruxelas agradece, acena, e segue para a próxima reunião, onde provavelmente discutirá a falta de convergência social na Europa. Ironia das ironias.
No fim, sobra-nos um país onde os problemas sociais são tratados como irritações secundárias, enquanto os milhares de milhões – que não existem para hospitais, casas ou reformados – aparecem milagrosamente quando se fala em guerra. Uma guerra que não é nossa, mas cujo peso, de uma forma ou de outra, acaba sempre por cair no mesmo sítio: nos ombros dos portugueses.
Milhares de milhões para queimar.
E nós? Nós ficamos com as cinzas.


