(Por Júlio Marques Mota, in a Viagem dos Argonautas, 19/02/2023)
Meu caro Mário
Brindou-me amável e ironicamente com alguns adjetivos curiosos, mas os meus amigos, e os que o não são também, já me adjetivaram de tantas formas que as suas palavras de ontem estavam simplesmente carregadas de adjetivos para mim já habituais. Mas há uma pergunta sua e uma respostam minha que não são banais….
Peçam a um economista escolhido ao acaso que vos indique um exemplo de sucesso entre os países da zona euro. Com grande probabilidade falará da Irlanda, cujo PIB é hoje quase o dobro do que era antes da crise (o português é quase igual). A seguir perguntem-lhe sobre os motivos desse sucesso. Dirá, com certeza, que os irlandeses aceitaram fazer as reformas estruturais necessárias para dar a volta à crise, aceitando cortes drásticos nos salários e mantendo os impostos sobre as empresas a níveis mínimos. Uma história de sucesso, portanto. Isto é, mais ou menos.
É expectável que o bom desempenho das economias beneficie quem governa. Não é isso que tem acontecido na Irlanda. Nas últimas eleições legislativas antes da crise, em 2007, o Fianna Fáil e o Fine Gael, os dois partidos que governaram o país nos últimos cem anos, somaram 68,9% dos votos. No passado dia 8 de Fevereiro ambos tiveram menos votos que o Sinn Féin (uma formação de esquerda, que não participa num governo desde há um século) e juntos não foram além de 43,1%.
Com tanta conversa sobre o Brexit e o futuro da fronteira entre as duas Irlandas, é fácil acreditar que o resultado das eleições se explica por factores políticos circunstanciais. Mas não é o caso. Diz quem acompanhou de perto a campanha que o Sinn Féin deve o seu sucesso mais a uma impaciência dos eleitores jovens em relação às questões económicas e sociais (baixo crescimento dos salários, preços da habitação, desigualdades de rendimento e de riqueza, etc.) do que a um ressurgimento do velho republicanismo irlandês.
O caso da Irlanda chama mais uma vez a atenção para um facto que muitos economistas insistem em ignorar: as opções económicas dos governos têm quase sempre consequências políticas. Há economistas que julgam que este não é um problema seu – que à “ciência sombria” cabe apenas analisar as condições para uma afectação eficiente dos recursos, sendo função dos políticos levar em consideração outro tipo de objectivos. Mas não é só a economia que é um problema político – também a política pode ser um problema económico.
Medidas que parecem justificáveis com base numa análise económica de custos e benefícios directos podem ter consequências políticas que afectam a eficiência económica futura. Seja pela instabilidade social que geram (a qual desincentiva o investimento privado), pelo reforço da posição dominante de certos grupos em sectores específicos (que retira eficiência ao funcionamento dos mercados), pelo aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos (que afecta os níveis de procura agregada e de endividamento privado), ou por outros resultados que originam, as decisões económicas têm consequências políticas que retroagem no desempenho económico.
A preocupação com as consequências políticas das decisões económicas é hoje comum entre aqueles que estudam o desenvolvimento dos países. Por exemplo, Daron Acemoglu e James Robinson apresentam uma lista extensa de decisões que foram recomendadas pelos economistas ao longo dos tempos e cujas consequências políticas prejudicaram o desempenho económico dos países que as adoptaram. Os exemplos incluem: a redução do poder dos sindicatos, que conduziu ao reforço da posição dominante de grandes empregadores em vários países; a rápida privatização de empresas públicas, que deu origem a uma classe de oligarcas com poder para determinar a má regulação dos mercados em que actuam (no leste europeu e não só); a liberalização de preços e de taxas de câmbio, que frequentemente se traduziu numa degradação drástica do poder de compra das populações, resultando em instabilidade social e política prolongada (em vários países africanos e não só); entre outros.
As conclusões de Acemoglu e Robinson são claras: reformas económicas que são implementadas sem ter em conta as suas consequências políticas, em vez de promoverem a eficiência económica, podem reduzi-la significativamente.
Por estas e outras razões, os economistas deveriam ter uma sólida formação em ciência política (e noutras ciências sociais, incluindo a história), da mesma forma que os cientistas políticos precisam de saber de economia (já que boa parte da luta pelo poder se faz pelo acesso a recursos materiais). Já foi assim no passado. Talvez um dia volte a ser.
(Este texto já o publiquei há poucas horas mas foi bloqueado no meu Facebook!!. Parece que há quem não goste da Estátua e das suas divulgações e partilhas. Assim, dupliquei o texto para o tentar colocar de novo no Facebook. Bloquear um texto sobre economia com um convite para um seminário de economia é ridículo. Mas os censores, sempre foram trogloditas!!
Estátua de Sal, 31/01/2019)
Numa visita à London School of Economics no final de 2008, pouco tempo depois da eclosão da crise financeira, a Rainha de Inglaterra perguntou com alguma candura: “Como é que ninguém viu que estávamos a caminho de uma crise?”. Na realidade, a ideia de que estava a ter lugar uma acumulação insustentável de endividamento privado, cuja deflação traria consigo provavelmente uma recessão profunda, havia sido identificada e discutida por alguns. Era sobretudo no núcleo central da ciência económica, dominada pela teoria dos mercados eficientes, pela hipótese das escolhas racionais, pela abordagem dedutiva e pelo afastamento face à realidade política, institucional e histórica concreta, que dominava um “falhanço da imaginação colectiva” que tornara inimaginável a Grande Recessão.
Este confronto da Economia com a realidade das suas insuficiências não provocou rupturas paradigmáticas ou alterações de fundo. Em muitos contextos, acentuou-se até o estreitamento disciplinar desde essa altura. Mas a crise veio tornar especialmente evidente que a economia, uma ciência jovem com um conhecimento muito imperfeito do sistema complexo que constitui o seu objecto, não pode dar-se ao luxo de dispensar o pluralismo. Se quer ter esperanças de ser relevante e contribuir para o conhecimento e actuação sobre a realidade, deve cultivar e combinar as abordagens indutiva e dedutiva, a formulação de modelos abstractos e a análise dos contextos politicos e institucionais concretos, os métodos qualitativos e quantitativos, e o diálogo permanente com a história, a geografia, a sociologia e as outras ciências sociais.
Para procurar assegurar isto mesmo, inclusive ao nível da reconfiguração dos curricula universitários, surgiram nos últimos anos em Portugal várias iniciativas. Algumas das mais interessantes, como o Colectivo Economia Sem Muros, a partir da Nova-SBE, ou o Colectivo Economia Plural, a partir do ISEG, têm sido promovidas por estudantes – naturalmente, os primeiros interessados em assegurar a relevância da sua própria formação. E foi também neste contexto que germinou a criação da Associação Portuguesa de Economia Política, fundada em Janeiro de 2017 com o objectivo de promover o pluralismo e o pensamento crítico no estudo dos processos económicos, que são processos sociais ancorados em contextos concretos.
Como afirma a Declaração de Princípios desta Associação, a Economia Política pretende contrariar o estreitamento téorico e metodológico e entender as economias na sua complexidade e especificidade institucional, histórica e geográfica. Para isso, articula os esforços não apenas de membros que são nominalmente economistas, mas de muitos outros – geógrafos, sociólogos, cientistas políticos e outros – que se interessam pelos fenómenos e processos económicos e pelas dimensões da produção e reprodução material das sociedades. Tem vindo a crescer, contando actualmente com várias centenas de membros, e a organizar seminários, escolas de verão e inverno e outras actividades destinadas aos seus membros e à sociedade em geral.
Amanhã (6.ª feira) e Sábado (1 e 2 de Fevereiro), na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, terá lugar o 2.º Encontro Anual de Economia Política organizado por esta Associação, subordinado ao tema “Democracia, Desenvolvimento, Desigualdade”. Contará com mais de uma centena de comunicações em sessões plenárias e painéis sobre sobre temas tão diversos como a economia política do trabalho, políticas públicas, desenvolvimento e direitos humanos, financeirização e crescimento, entre muitos outros. E com certeza contará com muitos debates francos e interessantes.