O perigo iminente da dividendocracia 

(Francisco Louçã, in Expresso, 28/04/2018)

LOUCA3

 

Agora os números confirmam o meu receio, que quem lê esta coluna já conhece e me pode ter levado a mal. Parece que se chama a isto racio­nalidade, a que alguns meios científicos atribuem mesmo poderes divinatórios e omniscientes. Então, a fábula ia assim: as administrações das empresas, escolhidas e reeleitas pela assembleia geral, usam o seu melhor critério e a sua mais racional informação para a decisão mais estratégica, a que orienta o pagamento de dividendos aos acionistas, e a soma de todas essas decisões em mercado livre e com agentes motivados pelo seu benefício próprio conduz à felicidade geral. Em Portugal, isso quer dizer este ano que, tendo o produto de toda a economia aumentado 2,5%, os dividendos nas principais empresas aumentam em 20%, para mais de dois mil milhões de euros.

Dizem alguns analistas que este bodo aos acionistas exprime o receio de uma recuperação lenta e mais vale pássaro na mão do que a voar. Ingenuidade. Esta utilização dos lucros das empresas representa antes uma escolha social em prejuízo do investimento. Se os dividendos esgotam ou até superam os resultados, as empresas são forçadas a reduzir as suas reservas para os pagarem e, se querem investir, terão de o fazer recorrendo a dívida, uma das maleitas da economia portuguesa. Pouco capital próprio é a consequência de excesso de dividendos generosos. Muita dívida e custos financeiros vulneráveis é a consequência da consequência.

Este retrato é cristalino no caso do PSI20. Algumas destas empresas reduziram os resultados e aumentaram os dividendos: é o caso da Jerónimo Martins, que entrega todo o seu lucro aos acionistas, como a Novabase ou a F. Ramada. Há empresas que pagam dividendos mesmo com prejuízos, como a Sonae Capital. Outras que pagam mais em dividendos do que o que obtiveram em lucros, como os CTT ou a NOS. Outras que pagam três quartos dos lucros (Galp), dois terços (Altri), metade (Sonae SGPS e Sonaecom) ou um terço (Amorim, que tem menos lucros do que no ano anterior, mas paga mais dividendos), tudo segundo uma investigação do “Jornal de Negócios”.

Há uma interpretação simplista que diz que os administradores se limitam deste modo a melhorar as suas possibilidades de serem reeleitos, levando à assembleia geral propostas agradáveis para os acionistas. Pode ser. Mas estamos no tempo em que as empresas cultivam a imagem de inovação, em que o Governo elogia o investimento, em que os programas de financiamento favorecem a criação de capacidade produtiva e mesmo do emprego.

Assim, ao contrário, estes números demonstram mais do que uma operação de sedução, indicam a visão de uma economia extrativa, em que a empresa é uma mina, o trabalho é um filão e o investimento é um direito passado a uma renda futura. Com este PSI20, Portugal não precisa de inimigos.


O teu crápula é pior do que o meu 

Escreveu Paulo Rangel um mapa da União Europeia para acusar os socialistas de conviverem com gente de muito má catadura. Atento, não esconde os factos, a começar por aqueles que poluem a reunião do seu próprio grupo no Parlamento de Estrasburgo: a Hungria do seu colega de partido europeu, Viktor Orban (na foto), é um susto e, acrescenta, a Polónia, com um governo de extrema-direita, está numa situação “muito alarmante” (“Público”, 24 abril). Mas o que lhe interessa é mostrar que alguns dos que criticam estes parentescos têm esqueletos no armário, ou seja, que têm razão, mas não têm autoridade. É uma forma curiosa de ver as coisas.

Regista Rangel que, dos seis governos liderados por gente do Partido Socialista Europeu, três estão a contas com suspeitas, ou acusações, ou mesmo condenações por malfeitorias várias e não ligeiras. São eles os governos de Malta, da Roménia e da Eslováquia. O assassínio de jornalistas ou os ataques à independência do poder judiciário conduzem a uma situação em que “a liberdade de imprensa está sequestrada numa teia nebulosa de conexões a organizações criminais e mafiosas”, ainda segundo o eurodeputado do PSD. Poderia dizer mais. Poderia ter lembrado que, quando os levantamentos das primaveras árabes derrubaram os governos ditatoriais da Tunísia e do Egito, os partidos que se encontravam no poder eram da Internacional Socia­lista. Mas talvez baste a atualidade imediata.

Ora, o argumento é ao mesmo tempo preocupante e cândido. Preocupante será, porque se refere a ministros demitidos, a investigações em curso, a acusações fortes, atuações violentas destes governos. Mas serve candidamente para um propósito, afirmar que “o problema é muito mais profundo e muito mais complexo do que a simples ‘diabolização’ de Viktor Orban”, o que soa a algum relativismo. É de lembrar que Orban era o discípulo preferido de Kohl, o poderoso chanceler alemão, e chegou ao poder com proteção e pergaminhos.

O autor explica depois o que pensa, que este diabolismo partilhado entre o seu companheiro de partido e os tais socialistas se radica em atitudes e culturas comuns de violência antidemocrática, por exemplo contra os refugiados, que exprimiriam uma “fissura entre o Ocidente e o Leste europeu”. É então a geografia e a história que os condena e irmana, o que de algum modo alivia a parceria que uns e outros, direita e socialistas, estabelecem com tais personagens, que aceitariam resignados. O teu crápula é pior do que o meu, que também não é grande coisa, mas cá vamos vivendo.

A teoria tem encanto mas não é suficiente para explicar a realidade. De facto, a Áustria não está no Leste europeu e foi onde um partido da direita clássica se aliou a um partido de extrema-direita. E a União Europeia não é determinada pelo Leste europeu nem pelos extravagantes socialistas suspeitos de mafiosos e, apesar disso, foram os mais garbosos dos democratas ocidentais que assinaram o acordo com a Turquia, pagando-lhe para reter os refugiados. O problema talvez esteja também na democracia liberal, mesmo em Bruxelas e Berlim, a ver bem as coisas.


A visita do ministro que diz que nos salvou 

Yanis Varoufakis é um personagem simpático. É uma vítima, é bom não o esquecer: no seu curto ministério, tentou evitar que a Grécia caísse no abismo da dívida. As lições que concluiu desse episódio são instrutivas, por vezes mesmo divertidas, como a descrição das reuniões com Schauble. É certo que não quis preparar alternativas: o seu plano B era uma charada sem medidas concretas e não quis ouvir ninguém nem fazer nada até ser tarde demais. Mas aprendeu com esse tormento. A experiência demonstrou-lhe, como explicou em Lisboa, que é impossível que o euro continue igual, mesmo que pense que o seu fim nos remeteria para a véspera da guerra como nos anos 30.

Não é muito claro o que deduz desse trapézio de impossibilidades. Esta dupla negativa levou a uma macronização acelerada de alguns varoufakistas, deslumbrados com esse novo Napoleão que intimou os diferentes países a realizarem até junho deste ano uma convenção, para se alinharem com as suas esplendorosas ideias. Ora, não há o menor vislumbre de que algum Estado se submeta a uma promessa vinda de eleições francesas e, portanto, ninguém mexe uma palha. Hamon, aliado de Varoufakis, veio à sua cola mostrar todo o desprezo do mundo por Macron. Fim da linha para a hipótese de alguém reformar o euro.

Varoufakis mostrou também a sua faceta mais histriónica, ao anunciar que foi ele quem permitiu a geringonça portuguesa. Tudo compreensível, é campanha eleitoral, ninguém leva a mal. Mais estranho é anunciar uma “lista transnacional”, uma fantasia, dado que a lei europeia não a permite. Mascarar a compreensível cooperação entre partidos com uma plataforma comum como se fosse uma única “lista transnacional” é só um pequeno engodo.

A escola e a norma do mercado

(Por António Guerreiro, in Público, 09/02/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Bem podem os críticos do ranking das escolas erguer publicamente os seus argumentos contra uma hierarquização obtusa que poderia figurar como um exemplo de idiotia da nossa época. Estarão sempre em desvantagem porque o exercício é excitante, funciona como um jogo e satisfaz uma pulsão escatológica infantil. E quando se passa para o plano da legitimação racional, o modelo do ranking aplicado às escolas está protegido pelo princípio supremo do mercado: a concorrência. No nosso tempo, ela é uma norma global, imposta a todas as actividades como solução universal para melhorar todos os serviços e para promover um aperfeiçoamento progressivo do indivíduo. A concorrência e a competição exaltam a ideia de mérito e, através de uma operação fraudulenta, fazem dele uma figura do poder chamada “meritocracia”.

Mérito e meritocracia não são a mesma coisa. O desenvolvimento de qualidades e competências individuais (inatas ou alcançadas através do estudo, da disciplina e do esforço) que levam ao sucesso é, e sempre foi, digno de apreço. Chamamos-lhe mérito. A meritocracia é uma coisa diferente: é um instrumento político e de engenharia social, ao serviço de um projecto de selecção de poucos através da exclusão de muitos.

Atribui-se geralmente a um sociólogo e político inglês, Michael Young (1915-2002), a paternidade da palavra “meritocracia”, que surge como um significante-mestre num romance satírico que ele publicou em 1958, com este título: The Rise of Meritocracy. Nesse romance, um sociólogo narrador situado no ano de 2033 conta e comenta o extraordinário progresso conseguido no seu país ao longo dos últimos cinquenta anos, graças à superação das velhas ideologias igualitárias e graças ao triunfo da meritocracia.

A intervenção no campo da educação e das instituições escolares tinha desempenhado um papel crucial na grande transformação: primeiro, as escolas tinham simplesmente seguido a economia na luta pelos mercados, mas a certo ponto uma nova política tinha feito da escola o lugar de experimentação de estratégias mais eficazes e sistemáticas de separação dos inteligentes face aos estúpidos, um processo que depois se impôs com sucesso a outros sectores.

E, na fase mais avançada deste processo, as indústrias começaram a aplicar medidas selectivas com base no modelo da escola. No fim, até o exército tinha aprendido a lição escolar. O romance de M. Young é uma utopia negativa. E o seu autor cunhou a palavra “meritocracia” com uma evidente intenção crítica. Mas ela foi reciclada e passou a ter um significado plenamente positivo. E o processo descrito no romance para construir uma escola apta a transformar uma aristocracia de nascimento numa aristocracia de engenho parece ter inspirado a campanha dos rankings, que chega sempre à meia-noite, como o Pai Natal. Tal como no romance de M. Young, a escola “democrática” é assaltada pela lógica do clube selectivo que funciona por cooptação.

A concorrência e a competição promovidas pelo ranking à imagem da norma do mercado tornam-se um factor importante da reprodução social. A estrutura social das escolas é cada vez mais afectada pelas estratégias de distinção das famílias. O ranking, no fundo, simula um mercado escolar que verdadeiramente não existe.

E se existe como um quase-mercado, ele não é fruto de uma lógica espontânea, não se faz naturalmente por obra das “leis imanentes” do capitalismo (como pretendem os partidários da lógica do mercado aplicada ao campo escolar), mas de uma construção política. E essa construção tem no ranking das escolas uma poderosa ferramenta.

 

Não é pós-verdade é pró-mentira

(Por Estátua de Sal, 21/12/2016)

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A Federação Europeia dos Transportes e Ambiente acusa as marcas de indicarem consumos falsos com base em testes de laboratório. A conclusão é de um estudo da Federação Europeia dos Transportes e Ambiente (FETA). As marcas manipulam os dados e mentem sobre o consumo dos automóveis, sendo cada vez maior a diferença entre o consumo de combustível indicado pelo fabricante e a realidade em estrada….

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A palavra do ano dizem que é “pós-verdade”, referindo-se às declarações públicas de políticos que são consabidamente falsas mas que, ainda assim, são repetidas não implicando perda de popularidade junto dos eleitorados, antes pelo contrário.

Mas eu acho que o termo não é muito correto. Devia antes dizer-se que vivemos num mundo de pró-mentira. A mentira é da indústria, dos políticos, dos bancos, dos jornalistas. Está institucionalizada, e dá lucros chorudos, e não há penalizações, como se vê por esta notícia. Mais uma aldrabice da indústria automóvel que só pode mentir com a conivência dos governos. Onde andam os reguladores e as instituições públicas de controle do sector?

As sociedades humanas só podem sobreviver se houver um espírito gregário de colaboração entre os seus membros. Quando a mentira impera há um custo económico acrescido que deriva do facto de toda a acção em conjunto ter que ser escrutinada previamente. Quando a mentira impera a confiança no outro esboroa-se e não há colaboração sem custos e ressalvas.

Depois digam que não há crescimento económico. Pudera, quando a rede de interdependências se esfrangalha ou enfraquece, o trabalho colectivo e os ganhos de grupo caem igualmente.

Os neoliberais teimam em esquecer que os aspectos institucionais do capitalismo são críticos para que os “benfazejos” mercados funcionem. Mas sem valores, ética e princípios, não há instituições que operem eficazmente. E sem estas, é a selva. E na selva não reinam os mercados. Na selva é o reino do Tarzan, o homem-macaco.