Os Espirito Santo, Otelo e os 4 pilares do regime

(Carlos Matos Gomes, 31/07/2021)

O regime em que ainda vivemos assenta em quatro pilares fundadores: os Espirito Santo (representados pelo atual patriarca Ricardo Salgado), Otelo, Mário Soares e Eanes. Os Espirito Santo eram os banqueiros do regime de Salazar (não os únicos, mas os principais); Otelo foi o comandante da operação que derrubou o regime de Salazar (Marcelo Caetano não passou de um cuidador de tratamentos paliativos) e deixou o povo entrar na história; Eanes comandou o 25 de Novembro de 75, que abriu as portas ao regresso dos banqueiros e do seu sistema de criação de moeda, tarefa fundamental para a existência do atual regime de democracia liberal, um retorno de que Mário Soares politicamente se encarregou e apadrinhou.

O novo regime pós 25 de Novembro reestruturou o sistema financeiro português, aproveitando a reversão das nacionalizações de Março de 1975, varrendo os banqueiros da “velha guarda”, para integrar o capital nacional no sistema financeiro internacional e na dependência do espanhol, criando um mercado ibérico. Levou na enxurrada desde Champalimaud (Banco Sottomayor) a Cupertino de Miranda (BPA), os mais representativos desta classe. Foram substituídos por um banco da Opus Dei (Jardim Gonçalves — Milleninum/BCP, vindo de Espanha) e Maçonaria (BPI/Santos Silva). Do antigo regime, restou a família Espirito Santo, respaldada pelas ligações aos Rothschild e Rockfeller, à banca francesa e americana e aos interesses em Angola. (Era importante fazer a história do desaparecimento dos Banco Português do Atlântico e do Sottomayor.)

Na banca, o Grupo Espirito Santo era e foi o elemento perturbador desta redistribuição de cartas. Sobreviveu devido à sua dimensão, à articulação entre finança e os setores produtivos (indústria, imobiliário, agricultura) e aos investimentos em Angola, um conjugação considerada pecaminosa pelos mestres da banca internacional, mas que se manteve durante 40 anos, ao fim dos quais, finalmente, foi derrubado, ou “resolvido”, curiosamente pelo governo amigo de banqueiros, o de Passos Coelho e por um governador afeto, Carlos Costa.

É a esta luz — da existência de um acerto de contas — que julgo deve dever ser interpretado o coro que desde há dias se levantou contra Ricardo (Espirito Santo) Salgado, a propósito das férias na Sardenha, tal como o que regougou contra Otelo, aproveitando a sua morte. Não há nesta aparente indignação qualquer réstia de elementos de ordem moral, nem ética, nem humanitária. Os coristas conviveram sempre muito bem com ditadura e a violência de que acusam Otelo e com a corrupção e a ostentação de que acusam Ricardo Salgado. Alguns foram mesmo e simultaneamente confessos integralistas (Deus, Pátria e Autoridade), terroristas praticantes, cúmplices e beneficiários do sistema de negócios, de lavagens de dinheiro, de offshores, de festas e férias de Ricardo Salgado, seus devedores, seus pedintes, ou seus moços de recados.

Não existe um vestígio de boas intenções neste clamor de carpideiras dos jornais e televisões contratadas para empolarem os eventuais crimes de Otelo (julgados e absolvidos) e os de Ricardo Salgado (a julgar numa eternidade). Estão a cumprir um papel num guião que não pode ser outro que não seja o de destruir este regime, imperfeito, é certo, mas que ainda assim funciona com pesos e contrapesos.

A verdade é que, com ou sem teoria da conspiração, está em marcha um plano para impor uma nova distribuição de poderes no que se designou como o Ocidente, filho da Revolução Francesa, que garanta a sobrevivência das minorias privilegiadas nos tempos difíceis que é fácil adivinhar que se aproximam, com escassez de recursos e alterações dramáticas nos ecossistemas. Uma campanha de grande envergadura e que tem como estrela mais visível o americano Steve Bannon. Pode parecer ficção científica, é claro.

Entretanto Otelo deixou a sua subversiva memória de liberdade e de participação popular, que é necessário apagar, e Ricardo Salgado mantem os seus segredos, que lhe garantem férias na Sardenha, mas há muita gente que gostaria de o ver também em cinzas e não de calças de linho e polo de marca exclusiva. Ele afirma que tem esquecimentos. É um seguro de vida, um aviso de que podem existir lembranças seletivas.

A moral desta história pode ser irónica: devermos a defesa do regime de democracia liberal que teve por empreiteiros duas personalidades tão distintas como Eanes e Mário Soares à família Espirito Santo, os grandes banqueiros do Estado Novo e à semente libertária deixada por Otelo Saraiva de Carvalho, o revolucionário adepto do poder popular e da democracia direta!

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Bater em mortos

(Daniel Oliveira, in Expresso, 17/07/2020)

Daniel Oliveira

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Em princípio, um colunista não se cita. Mas tem de ser. Em 2005, notícias publicadas no Expresso envolvendo o BES irritaram Ricardo Salgado, que mandou retirar a publicidade. Chegado há pouco tempo a este jornal, escrevi o que repeti vezes sem conta: “Nos jogos de poder, o Espírito Santo está sempre entre nós. Talvez todos fiquem finalmente a saber quem manda neste país.” Um mês depois chamava a atenção para a promiscuidade entre o novo ministro Manuel Pinho e o BES, seu anterior patrão. Salgado, o banqueiro intocável, foi tema recorrente das minhas crónicas (não estive sozinho, mas pouco acompanhado). Em 2010, António Mexia dizia na página do “Compromisso Portugal” que os portugueses tinham de “assumir sacrifícios”. Escrevi: “Fez a sua vida profissional à boleia da política e do Estado e quer menos Estado. Faz-se pagar como os 200 que mais recebem nos EUA e exige sacrifí­cios. […] São estes homens, transformados pela imprensa em oráculos da Nação, que nos dão lições de competitividade, meritocracia e estoicismo. Falam de cátedra. Mas não sabem do que falam.” Gostava de afrontar o poder de Mexia e Salgado quando um ainda andava de braço dado com o atual dono do “Observador” e outro ainda pagava campanhas a todo o arco do poder. Estavam longe de ter caído em desgraça.

Há uns dias, José Gomes Ferreira disse, na SIC, que Carlos Alexandre era criticado porque havia agências de comunicação e advogados de defesa a fazer o seu trabalho. O jornalista Luís Rosa, do “Observador”, acompanhou: porque criticam Carlos Alexandre e nunca Ivo Rosa? Como estou no lote dos que criticaram as medidas de coação contra Mexia e critico com frequência Carlos Alexandre, não vou assobiar para o lado. Começo por esclarecer que só falo com agências de comunicação para marcar entrevistas e que recebi um e-mail anódino de um advogado ligado ao processo da EDP, que não conheço, depois de ter escrito sobre o assunto. Ainda nem respondi. Não sou impressionável pela lisonja nem pressionável pela ameaça. Vantagens de ser um radical mal-encarado e com longo currículo de inimizades. As críticas que faço a Carlos Alexandre são ditadas pelo escrutínio a qualquer poder. Estou livre para o fazer porque, não investigando estes casos como Luís Rosa investiga, não criei relações de dependência com ninguém. Se investigasse, teria de gerir a relação com juiz, MP e advogados de defesa. Porque o jornalismo cruza fontes. Não depende apenas de uma, tomando as suas dores e atirando sobre os restantes.

Nada me liga a Carlos Alexandre ou Ivo Rosa. Nem os conheço. Tenho a minha opinião, vivo bem com a dos outros e gosto pouco de passar a cúmplice dos que sempre denunciei por não gostar do modus operandi de Carlos Alexandre. Não aceito essa chantagem.

Uso da mesma liberdade que usei com Mexia e Salgado quando o pecado era criticá-los. Mas presto mais atenção a quem tem poder do que a quem já o perdeu. E também gosto de afrontar o poder do novo intocável, Carlos Alexandre. Se resisto a superbanqueiros e supergestores, também resisto a superjuízes. Nunca fui dos corajosos que batem em mortos. 

Tão livre como Gomes Ferreira, repito que um juiz justiceiro não nos serve. Serve-nos um país onde a banca não manda em políticos, os monopólios não são privados e os processos não morrem em manchetes oferecidas por magistrados.


Os três macacos sábios

(José Pacheco Pereira, in Público, 18/07/2020)

Se há defeito de carácter que infelizmente se repete em Portugal, vez após vez, sem culpa nem remorso, é a adulação dos poderosos seguida pelo seu escárnio público quando deixam de ser poderosos. Todos os que tinham a cerviz bem dobrada, a boca bem calada, a vénia pronta, o tom untuoso, a mão estendida para o pequeno ou grande favor, o silêncio oportunista, correm para a imensa fila, de pedras na mão, para abjurar o anterior senhor. Já vi isto muitas vezes. Já escrevi isto muitas vezes. Suspeito de que não será a última.

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Um caso exemplar foi Sócrates, em que se contava pelos dedos de uma mão aqueles que percebiam bem de mais o que ele estava a fazer e a multidão de sicofantas e aproveitadores que lhe servia de barreira contra tudo aquilo que o podia afectar. Alguns desses foram depois profissionais do atirar da pedra, muitos na política, a começar pelo PSD, e muitos na comunicação social. Mas o vento virou e foram logo para a fila do arremesso. O remake actual desta conduta cívica exemplar passa-se hoje com Ricardo Salgado e o BES, só que com a gravidade de esquecimentos e fugas à responsabilidade que nos custaram milhares de milhões de euros e, diferentemente do caso Sócrates, este passa-se na alta finança e não na baixa política.

Comecemos pelo primeiro esquecimento. Salgado e a família Espírito Santo começaram por ser um dos heróis do anti-PREC. Lembram-se, os grandes empreendedores que, espoliados dos seus bens pelas nacionalizações gonçalvistas, tiveram que fugir para a o Brasil, de onde regressaram por cima, heróis do capital, com a capacidade de reconstruir o que o PREC lhes tinha tirado? O O Independente, adorado pelos nossos jornalistas como modelo, desenvolveu pela pena de Paulo Portas a tese de que havia dois “dinheiros” em Portugal: o “velho dinheiro”, com pergaminhos e pedigree, e o “novo dinheiro”, dos novos-ricos que tinham ganho dinheiro de forma obscura e pelas ligações ao PSD e ao PS, a canalha sem modos. O O Independente considerava intocável o “velho dinheiro” (com o enorme preconceito pequeno-burguês de Portas, que não tinha nascido na nobreza nem na família certa), gente que sabia comer à mesa e vestia nos melhores alfaiates de Londres, e os da “meia branca”, que não se sabiam comportar, eram provincianos e toscos.

Esta apreciação só começou a mudar muito mais tarde, quando o longo período de governação do PS mostrou as cumplicidades de Salgado com o poder socialista. Esta também foi uma das razões por que Passos Coelho lhe disse que não, esquecendo-se as pessoas que, depois disso, o BES pôde ir de novo ao mercado, com uma emissão validada pelo Presidente, pelo regulador, pelo governador do Banco de Portugal e por alguns comentadores… Isto da cronologia é uma maçada.

O segundo esquecimento é pior do que um esquecimento, é uma cumplicidade. As pessoas comuns não fazem a ideia da enorme quantidade de informação que o círculo de confiança da elite portuguesa – quem, na verdade, manda no país – obtém quase como respira. Circulando de conselhos de administração para lugares políticos, de escritórios de advocacia de negócios para consultoras financeiras, ou pura e simplesmente falando com os seus pares dentro desse círculo de confiança, tudo o que é relevante lhes chega aos ouvidos. Numa rede politicamente transversal, em que, para além da informação privilegiada, o poder de veto de pessoas é o mais importante para manter intacto o poder, essas pessoas não podem alegar que “não sabiam”. E, se tivermos em conta a endogamia de meios pequenos como é o caso de Portugal, as elites bancárias que circulam em meios semelhantes e/ou muito próximos, que vão das ilhas Virgens ao Panamá, aos offshores, aos bancos suíços e ingleses, aos negócios portugueses, nem que fosse por razões de competição, não podiam desconhecer as manobras do BES.

É por isso que, pura e simplesmente, não acredito – não por fé, mas por razão – que o BES e Salgado pudessem fazer tudo de que são acusados sem que tal fosse, pelo menos em traços largos, conhecido, a começar pelos seus pares na banca e, por maioria de razão, do Banco de Portugal. E, das duas, uma: ou esse tipo de práticas era mais comum do que hoje se faz crer singularizando o BES, ou uma conspiração corporativa de silêncio permitiu a continuada violação da lei pelo BES, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Ou Salgado e o BES mantinham as protecções dadas ou compradas e ainda não tinham caído politicamente.

O festival de hipocrisia a que hoje se assiste, publicitado por muitos jornalistas económicos (salvo raras excepções) que estiveram também debaixo da asa do BES, não é apenas deprimente, mas é também perigoso. É a melhor garantia de que tudo se pode repetir, com outros protagonistas e outros métodos, mas com o mesmo mecanismo de ganância e silêncio. Até porque há um aspecto que não tenho espaço para referir aqui e fica para outra altura: não se cai na justiça antes de se cair politicamente.

Bom, os macaquinhos japoneses, esses nunca vão ficar desempregados.