Bons ventos

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 16/01/2020)

Alexandre Abreu

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Não é preciso recuarmos muito para recordarmos um tempo em que a geringonça era objecto da admiração e inveja da generalidade dos partidos sociais-democratas europeus, incluindo o PSOE em Espanha. E ainda é preciso recuarmos menos para recordarmos como António Costa se referiu ao exemplo espanhol em tom de alerta durante a campanha para as eleições legislativas de outubro passado, apelando ao voto no PS para evitar um impasse negocial semelhante ao que então se vivia em Espanha entre o PSOE e o Unidas Podemos.

Estas recordações têm algo de irónico quando consideramos que em Espanha acaba de ser inaugurada uma solução governativa mais progressista do que foi a geringonça – com o Unidas Podemos no governo e um programa de governo bastante avançado -, ao passo que, em Portugal, o mesmo PS que antes dava lições internacionais sobre a “solução portuguesa” apressou-se entretanto a arrancar pela raiz qualquer veleidade de reedição dessa mesma solução.

Esta inversão de posições não é necessariamente fácil de explicar. Afinal de contas, a maioria apenas relativa do PSOE nas cortes espanholas não é fundamentalmente diferente da posição com que o Partido Socialista saiu das recentes eleições em Portugal. Em contrapartida, claro, faz bastante diferença que em Espanha as forças à esquerda do PSOE estejam no essencial reunidas num único partido, após a união entre Esquerda Unida e Podemos em 2016, e sobretudo faz diferença que a direita espanhola, na tríplice encarnação constituída por Partido Popular, Ciudadanos e Vox, seja bastante mais forte, mais ameaçadora e mais agressiva do que a direita portuguesa.

Quaisquer que sejam as explicações, não há dúvida que a solução governativa espanhola é hoje, do ponto de vista da esquerda, bem mais interessante do que a portuguesa. Para além da Vice-Presidência do governo, o Unidas Podemos detém as pastas ministeriais dos Assuntos Sociais (Pablo Iglesias), Trabalho, Igualdade, Ensino Superior (com Manuel Castells) e Consumo (Alberto Garzón, que, como assinalou há dias a revista norte-americana Jacobin, tem a importância simbólica adicional de ser o primeiro dirigente declaradamente comunista a chegar ao governo em Espanha desde o derrube da Segunda República em 1939).

No que toca à substância da política e das políticas, o acordo de governo de 50 páginas agora assinado prevê o fim da criminalização dos protestos (revogação da “lei mordaça”), a revisão da legislação laboral mais liberalizante e regressiva, o aumento da progressividade da fiscalidade tanto para as empresas como para os indivíduos, todo um capítulo de políticas feministas, o reforço dos apoios sociais, um pacote de medidas para promover o direito à habitação, a eliminação das taxas moderadoras na saúde, a continuação do aumento do salário mínimo e a busca de uma solução política para a questão da Catalunha, entre muitas outras coisas.

É um programa de governo social-democrata que não escapa aos constrangimentos decorrentes das regras orçamentais de Bruxelas e dos encargos associados a uma dívida pública que também em Espanha não anda longe de 100% do PIB, mas é um programa política e socialmente avançado em muitos domínios, seguramente bem mais avançado do que a forma como o PSOE governaria sozinho.

Estou certo, aliás, que para uma maioria do eleitorado (que não dos dirigentes) do PS português esse é um aspecto algo trágico da eutanásia da geringonça promovida pelo seu partido: eles próprios terão noção de que a dependência face aos parceiros à esquerda foi o que puxou pelo melhor da governação na legislatura anterior, da evolução do salário mínimo e das pensões à tarifa social na electricidade, da redução dos preços dos passes nos transportes à reposição da progressividade no IRS, da lei de bases na saúde à integração dos precários do Estado. Como terão noção da falta que fazem os avanços nos domínios em que o PS mais resistiu às propostas de Bloco e PCP, especialmente a revisão da legislação laboral e o reforço do investimento público.

Por agora, é de Espanha que sopram ventos mais progressistas. O novo governo espanhol enfrentará o combate sem tréguas de uma direita profundamente reacionária e as inevitáveis dificuldades de entendimento entre partidos com origens e matrizes ideológicas muito distintas. Também por isso é especialmente importante que esta solução se mostre estável e alcance os resultados a que se propõe no seu programa. Pode ser que daqui a algum tempo Portugal esteja em condições de aprender com a “solução espanhola”.

A Igreja católica espanhola

(Carlos Esperança, 12/01/2020)

Pedro Sanchez toma posse

Filha do papa Pio XI, que concedeu à sedição de Franco o carácter de Cruzada, contra a República, é a Igreja que manteve silêncio perante o genocídio que o ditador praticou, depois de ter ganhado a guerra.

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A Igreja que goza de pingues contribuições do Estado, isenções de impostos e, até há pouco, do direito à apropriação de bens públicos, é a Igreja que não tolera a democracia, humilha a mulher e esconjura os direitos humanos.

Os clérigos são ainda, na sua maioria, filhos da falange e de pai incógnito, guerrilheiros da extrema-direita e terroristas ideológicos. São talibãs romanos, com colar ao pescoço e batina sebenta, a pedir a Deus que derrube o Governo, mantenha a mulher submissa e consinta aos padres o direito de decidir sobre a sua sexualidade.

A Igreja que João Paulo 2 e Bento 16 abasteceram de cardeais reacionários, bispos ultramontanos e, de defuntos pouco recomendáveis, fizeram um ror de santos, continua a ser o alfobre onde germina a extrema-direita e nascem, como cogumelos, quadros para o VOX, saudosistas de Franco e falangistas fora de prazo.

A tomada de posse do novo primeiro-ministro, Pedro Sánchez, sem bíblia e crucifixo, deixou aquele bando de parasitas de Deus a espumar de raiva, a uivar imprecações, a ruminar vinganças, e a pedir ao seu Deus que amaldiçoe estes governantes, derrube o governo e faça ajoelhar a Espanha aos seus pés.

O cristo-fascismo está vivo na horda de clérigos saudosos da ditadura e da Reforma, a sonharem com a Inquisição e os autos-de-fé, enquanto rezam o breviário e, em êxtase, relembram as bênçãos que, em gozo místico, lançavam aos republicanos, nas praças de touros, antes de serem fuzilados.

É desta fauna clerical que se alimenta a contrarrevolução em Espanha, que só a pertença à União Europeia impede de porem em marcha.

Foi pena que a CEE retirasse dos conselhos matrimoniais a recomendação aos homens para, no dia em que quisessem ter sexo, deixassem dormir a sesta às esposas.

Que choldra ignóbil!


(Sobre o tema, seguir os links abaixo.)

https://www.lavozdegalicia.es/…/00031578578141232785201.htm…

https://www.elindependiente.com/…/la-conferencia-episcopa…/…

https://www.publico.es/…/conferencia-episcopal-curso-premat…

Diz que é uma espécie de “frente progressista”

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 21/05/2019)

Francisco Louçã

(Mas que grande imbróglio. Há dois Costas, o Costa cá dentro para consumo interno e o Costa lá fora, para consumo externo?! Fico na dúvida: qual deles é o Mr. Hyde e qual deles é o Dr. Jekyll? 🙂

Comentário da Estátua, 21/05/2019)


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Se procurar na comunicação social portuguesa, dificilmente encontrará uma referência à “frente progressista” que Costa terá proposto a Macron para o próximo Parlamento Europeu. Não deixa de ser surpreendente. Os arautos do “nós somos Europa” escondem meticulosamente este imbróglio de alianças com que dividem a sua própria família política e que os parece levar para terra incógnita. As eleições devem ser um “referendo” ao Governo, resume Carlos César, mas apresentar aos crédulos eleitores um plano para a União Europeia, isso já parece estar fora de cogitação pelos seus mais ardentes defensores. Mas olhe que merecia.

Uma recente insinuação pública sobre esta “frente” terá sido a mensagem que o primeiro-ministro português enviou a um comício eleitoral do partido de Macron, em que sugere que “as forças progressistas (se) devem unir para permitir a mudança necessária”. Qual mudança, isso logo se verá. A fórmula até poderia ser interpretada como um rendilhado diplomático mas, interrogado sobre o assunto, Costa enviou à Lusa uma nota em que explica que, no seu entender, “a Europa precisa de uma grande frente progressista” e está “empenhado em ajudar a construir as pontes necessárias”. O encontro desta segunda-feira entre Macron e Costa em Paris confirma este vaivém para uma prometida convergência. Tudo desejos e boas intenções?

Ao contrário da discrição com que o assunto é tratado neste cantinho à beira-mar plantado, a imprensa francesa diz que a preparação do casamento já vai em juras solenes e aliança no dedo. Garance Pineau, um dos chefes do empreendimento de Macron, diplomata e responsável pelas consultas com outros partidos, veio a Lisboa e registou que o PS está “muito interessado” na “frente”. As mensagens emitidas do Largo do Rato confirmam-no. O Partido Socialista Europeu esclareceu seraficamente que “não está incomodado” com esta iniciativa. Ela parece ambiciosa, pretendendo juntar alguns dos socialistas (que tinham 185 deputados, mas estão em perda) com os eleitos de Macron e dos partidos seus aliados (ninguém sabe quantos serão), que por sua vez prometeram integrar uma aliança com os liberais (atualmente 69 deputados) para enfrentar a direita europeia do PPE (que tem agora 216 deputados, mas divididos entre os merkelianos e a extrema-direita do Grupo de Visegrado).

Ora, o projeto é duvidoso pelo menos por três razões. A primeira é que se trata em todo o caso de uma inversão de rumo, pois implicaria que Macron e Costa procurassem vencer o PPE de Merkel e deixassem de buscar a sua complacência para entendimentos do dia a dia. Havendo uma coligação governamental na Alemanha entre a CDU e os social-democratas, esse putativo afastamento parece atrevimento. A segunda é que chamar a isto “frente progressista” é uma bizarria. Os liberais, que já assinaram com Macron um protocolo que curiosamente declarava que pretende “romper com o bipartidismo” europeu entre os socialistas e a direita merkeliana, são conduzidos por Mark Rutte, o primeiro-ministro, e representam o tradicional programa neoliberal da direita. Seria mais fácil vê-los numa associação com Passos Coelho do que com Costa, pelo que chamar a isto “progressista” é em qualquer caso um floreado extravagante. A terceira razão é que esta frente divide os socialistas. Estes já foram destroçados em França pelo sucesso inicial de Macron e pode até admitir-se que Costa despreze os seus camaradas locais. Mas em Espanha isto é um problema, porque Macron se aliou ao Ciudadanos, e não vejo como possa haver um grupo europeu que tenha simultaneamente o PSOE, que está no Governo, e esse partido de direita, na oposição, sendo, por sua vez, aliado da extrema-direita na Andaluzia. É uma salganhada impossível, o que significa que, se Macron leva os seus, o PSOE fica de fora.

Assim, a “frente progressista” pode vir a ser uma frente (juntando partidos tão diferentes mas afastando uma parte dos socialistas), mas duvido que seja progressista (os liberais defenderam arduamente sanções contra Portugal e é de esperar que voltem a fazer o mesmo na primeira oportunidade) e, sobretudo, que configure uma alternativa razoável para a União Europeia. A não ser que o programa neoliberal à Rutte e Macron seja o novo oásis. Só que isso não se pode dizer em Portugal, pois não? Alguém se poderia lembrar de perguntar se esta aliança em Bruxelas não é o contrário do que promete o Governo em Lisboa, que por isso mesmo quer ser plebiscitado no meio da santa ignorância sobre estas aventuras casamenteiras. Entretanto, em Portugal o PS continua a repetir a promessa de um “novo contrato social europeu”. Mas isso vai ser com os liberais? Será que houve milagre da reconfiguração das almas e Macron deixou de ser o presidente dos milionários, Renzi o homem do ataque à segurança social, Rivera o nacionalista espanholista e Rutte o arauto dos mercados?

Como dizia Tyrion Lannister no último episódio do “Game of Thrones”, “não há nada no mundo mais poderoso do que uma boa história. Nada a pode travar. Nenhum inimigo a pode vencer”.

A questão é que, neste caso, a história da “frente progressista” não é boa, não é nova e nem sequer sei se chega a ser uma história, pois já aterra com um cadastro demasiado pesado. Talvez seja simplesmente a prova da incoerência dos seus inventores, reduzidos à manobra por falta de um projeto apresentável. Por alguma razão a escondem meticulosamente dos eleitores.