Espanha: um partido a mais à direita, uma possível “geringonça” à esquerda e o elefante sentado na sala

(Daniel OLiveira, in Expresso Diário, 29/04/2019)

Daniel Oliveira

A estratégia de radicalização do PP, apostando tudo no confronto com o independentismo catalão e exacerbando o “espanholismo” como cimento da direita, na esperança de fazer esquecer a sua governação e os casos de corrupção, teve o efeito oposto ao desejado. Legitimou o discurso da extrema-direita, que acabou por se conseguir impor com facilidade, e deixou o centro disponível para o Ciudadanos e o PSOE. O PP teve o pior resultado desde 1977, de muito longe. Esta é a verdadeira notícia destas eleições. O PP passa de 33% para 16,7% e de 137 para 66 deputados. Metade, nos dois casos.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Apesar de ainda liderar o campo da direita, o PP fica entalado entre a direita liberal (Ciudadanos) e a direita conservadora e autoritária (Vox). Não há espaço para os três. Com mais 6% do que a Vox e apenas mais 1% do que os Ciudadanos, não é certo quem morrerá na próxima década. Com uma agravante: ao contrário do Ciudadanos, o Partido Popular deixou de ser nacional. Ficou com um deputado na Catalunha e nenhum no País Basco. Ele é um símbolo do maior problema de Espanha. Certo é que o PP entrará numa crise profundíssima.

Como os votos do PP estavam a saldo e o centro ficou vazio, o Ciudadanos conseguiu afirmar-se, pisando cada vez mais os calcanhares dos populares. Passou de 13,1% para 15,8% e de 32 para 57 deputados. A sua subida é a mais extraordinária. Sobretudo quando pensamos que o Ciudadanos nasceu como partido local há 13 anos mas só é nacional há muito pouco tempo. Só que esta vitória não chega para Albert Rivera. O líder do Ciudadanos queria liderar a direita, e não o conseguiu. E queria determinar a governação, e tudo indica que não o conseguirá. Apesar da resposta de Pedro Sánchez ao grito dos socialistas “Con Rivera no!” ter sido a promessa de que não haveria cordões sanitários, eles vão mesmo existir.

Os 10,3% do Vox provocaram suspiro de alívio em Espanha e na Europa. Como havia quem previsse 70 deputados, os 24 deputados foram recebidos como se fossem quase uma derrota. Está muitíssimo longe disso. A forma como todos se concentram na relação entre as expectativas e os resultados faz perder o foco. É a primeira vez que uma força de extrema-direita entra no congresso de Espanha. E entra logo no campeonato dos grandes. Sobre as responsabilidades do PP neste resultado, deixo para outro texto desta semana. Fica só a lição: o preço de mimetizar a extrema-direita é ficar a perder com a cópia e dar força ao original.

À esquerda vive-se um momento decisivo. O PSOE passou de 22,7% para 28,7% e de 85 para 123 deputados. É, sem qualquer margem para dúvidas, o grande vitorioso da noite. E essa vitória acontece com Pedro Sánchez, associado, não sei se com exagero, à ala esquerda do partido. Mas Sánchez está perante um dilema. Albert Rivera, líder dos Ciudadanos, prometeu que não governaria com os socialistas. Pedro Sánchez prometeu que não governaria com os independentistas. Algum deles vai mentir e acho que terá de ser Sánchez, até porque Rivera voltou a mostrar-se indisponível para um entendimento. Se Rivera apoiasse um governo do PSOE fixaria a oportunidade de liderar a oposição de direita. Deixaria espaço para o PP ficar na oposição. A possibilidade que sobra é uma espécie de “geringonça” espanhola. Semelhante à que durou nestes últimos tempos, mas com necessidade de acordos. O bom resultado de 123 deputados permite-lhe liderar o processo. Coisa que não podia fazer quando tinha 85.

A egotripe permanente de Pablo Iglesias, a dificílima gestão da questão catalã, onde as posições de quem fica entre orgulhos nacionais que se digladiam são sempre difíceis, tiveram importância para um péssimo resultado do Unidas Podemos. Mas o voto útil no PSOE parece-me ser a principal razão para uma passagem de 21,1% para 14,3% e de 71 para 42 deputados. Apesar da derrota ser expressiva, é, mais uma vez, importante ter alguma perspetiva. O Podemos nasceu depois de muitos anos de profundíssima crise da esquerda à esquerda dos socialistas. Só em 1979 e 1996 este espaço ultrapassou, por muito pouco, a barreira dos 10%. E desde então até 2015 andou sempre próximo dos 5%. Foram duas décadas de irrelevância. E o Podemos parece ter chegado para ficar com resultados sempre superiores ao que esta esquerda alguma vez conseguiu na história da democracia espanhola. E pode chegar agora, mais depressa do que chegaram o Bloco de Esquerda e o PCP, ao teste fundamental: o que fará para influenciar o poder. A “geringonça” foi sempre vista, na esquerda espanhola, como um exemplo que poderia ser seguido. Tal não aconteceu porque PSOE e Podemos tinham um peso eleitoral semelhante e isso não permitia uma liderança clara. Poderá acontecer agora.

O problema do PSOE não é o Unidas Podemos. Apesar de poder haver uma crise no partido à esquerda, a postura do Podemos na campanha foi a disponibilidade para governar ou contribuir para que se governe. A questão são mesmo os nacionalistas. Nessa área, nem tudo foram más notícias para Sánchez. A vitória da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC, que consegue 15 deputados, o dobro do Juntos por Catalunha, nacionalistas de centro-direita) dá espaço para um entendimento com os catalães e, claro, com o PNV basco. Mas é até possível que se consigam fazer acordos com outros pequenos partidos autonomistas mais moderados. Segundo as contas que fiz, nacionalistas navarros e bascos de centro-direita, “Compromís” valenciano, autonomistas da Cantábria e autonomistas canarinos chegam para fazer uma maioria com PSOE e Podemos. Não sei a especificidade de alguns destes partidos.

Seja como for, a questão das nacionalidades continuará a ser uma pedra no sapato da esquerda: como falar com um partido que tem o seu verdadeiro líder preso por motivos políticos? O resultado do PP no País Basco e na Catalunha mostram bem que qualquer governo que queira ser verdadeiramente nacional tem de abrir pontes de diálogo. Por mais cómodo que seja, fugir desta questão é continuar a deixar a bomba-relógio armada. Veremos se também os nacionalistas catalães têm a inteligência de aproveitar este momento.

Estas eleições marcam três novidades que terão de se confirmar. A primeira é que passaram a existir três partidos grandes ou médios de direita e há um que está a mais. Entre o liberalismo económico de centro-direita do Ciudadanos e o ultraconservadorismo nacionalista da extrema-direita do Vox, o PP terá de escolher que espaço quer ocupar. Continua a ser o mais forte da direita, mas não é hegemónico em relação aos restantes. Qual deles morrerá? O PP entrará em crise profunda, deixando o Ciudadanos a liderar a oposição? O Ciudadanos ficará mesmo na oposição? O Vox conseguirá afirmar-se como herdeiro, depois dos populares, de uma tradição franquista que nunca foi apenas marginal?

A segunda novidade é que o PSOE tem condições para replicar a solução política portuguesa. Se o Ciudadanos mantiver a sua posição de não governar com os socialistas, apostando em aproveitar a crise do PP para liderar a oposição, os acordos terão mesmo de ser com o Unidos Podemos. Ou o primeiro governo de coligação em Espanha, ou uma “geringonça”. Não como até agora, mas com um programa político que teria de ser negociado. Seria também um enorme teste ao Podemos que poderia dificultar a sua já tão difícil vida interna. Sobretudo com um líder fragilizado depois de uma grande queda eleitoral, por efeito do voto útil e por muitas culpas próprias. Mas o fim da disputa entre os dois partidos pela liderança da esquerda torna o entendimento mais fácil.

A terceira novidade não é novidade nenhuma. É o elefante na sala que foi determinante para muito do que aconteceu nestas eleições: a relação com a Catalunha e as restantes nacionalidades. Ela é ainda mais importante para o PSOE do que para o PP. Primeiro, porque a sensibilidade dos socialistas catalães ou bascos é muito diferente da sensibilidade da direita espanholista. Depois, porque Sánchez não governará sem partidos autonomistas e nacionalistas (mesmo que possa dispensar os independentistas). O enfrentamento intransigente de Rajoy teve três efeitos: reforçou independentistas, deu força à extrema-direita espanholista e desfez o PP, tornando-o num partido muito menos nacional. Que o PSOE aprenda com a lição e comece, como Zapatero, a fazer o caminho para que a Espanha seja na lei o que é de facto: um Estado plurinacional. Só assim terá a paz para pensar em tudo o que resto que precisa.

A hecatombe no PP, o novo papel do Ciudadanos, a chegada do Vox, uma maioria de esquerda obrigada a resolver o problema das nacionalidades e o desafio que um Podemos fragilizado tem pela frente não vão apenas determinar o novo ciclo político. Marcarão uma nova fase da política espanhola em que o fim bipartidarismo está definitivamente confirmado.


Viva Espanha! Arriba Pedro Sánchez!

(Carlos Esperança, 18/06/2018)

caidos

O governo do PSOE terá vida difícil, mas sobra-lhe ânimo para a decência democrática e o civismo republicano, sob a circunstância monárquica.

Pedro Sánchez surpreendeu ao formar governo com mais governantes do sexo feminino do que do masculino, com mulheres de grande competência profissional e currículo exemplar, para surpreender de novo com a maior operação humanitária de sempre para acolher os refugiados a que alguns países se negaram e outros fizeram vista grossa

Agora, propõe-se executar a proposta do seu partido, aprovada em 2017, de trasladar os restos mortais de Franco, do Vale dos Caídos, onde permanece há 42 anos, por decisão do próprio ditador, um duradouro insulto à democracia, com a conivência de uma direita que primeiro alegava as feridas que podia abrir e, depois, a inutilidade de lembrar um assunto esquecido, para perpetuar as honras ao opressor fascista.

Hoje mesmo, a comissão executiva do PSOE, a que preside Pedro Sánchez, propõe ao Governo a elaboração da lei que inclui trasladar o genocida e alterar o significado do local onde a sua presença e as honras de que goza constituem uma afronta às centenas de milhares de vítimas do maior genocida ibérico da História.

El País referia ontem, citando fontes do Governo e do PSOE, que “O presidente, Pedro Sánchez, quer ir ‘passo a passo’ cumprindo compromissos adquiridos nos anos de oposição do PSOE; atender petições das associações de vítimas do franquismo e assumir as recomendações da ONU sobre o Vale dos Caídos, as valas comuns ou uma comissão da verdade”.

A proposta de trasladar os restos do ditador «fazia parte da proposta de reforma integral da lei de memória histórica que Sánchez apresentou em dezembro num lugar simbólico, o chamado “paredón de España”, em Paterna, onde se crê que foram fuziladas cerca de 2.000 pessoas».

Quando ressoam ainda as palavras então proferidas por Pedro Sánchez, “Ignorando um passado incómodo não se pode construir um futuro confortável”, resta a possível oposição da Igreja, mas não é crível que ainda tenha força para manter a defesa do criminoso de que foi cúmplice.

Finalmente, os 33.487 mortos, de ambos os lados, que ali se encontram ficarão libertos da presença dominante e simbólica que perpetuava o carácter fascista do monumento que atesta uma das mais cruentas guerras civis europeias e a demente e continuada vingança dos vencedores. Os assassinados vêem-se livres do maior dos assassinos.

Viva Espanha, laica, livre e democrática!

Esto no es una geringonça

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/06/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Não há qualquer debate sobre a legitimidade constitucional para Pedro Sánchez formar um Governo em Espanha com o apoio expresso de 84 deputados em 350. Em sistemas parlamentares basta que a maioria dos deputados não inviabilize uma solução para ela ser legítima. Porque é na maioria dos deputados, que representa a maioria dos eleitores, que repousa legitimidade do Governo. Também Rajoy governou estes últimos anos sem o apoio expresso da maioria do Parlamento (e, por isso, sem a maioria do país) e isso não foi considerado um problema. Um partido ser menos minoritário do que outro não lhe dá mais legitimidade para governar. O que conta é o que passa e não passa no Parlamento.

Já tivemos esse debate por cá: uma eleição legislativa não é uma corrida para ver quem fica à frente, até porque isso depende da dispersão de partidos e de votos (em Portugal, a liderança da direita resultava de uma coligação), é uma forma de escolhermos deputados que formam ou não maiorias. Um Governo liderado pelo partido mais votado que conta com a oposição da maioria do Parlamento não é mais legitimo que um Governo liderado pelo segundo partido mais votado que conta com o apoio da maioria do Parlamento. É menos legítimo. E a verdade é que Pedro Sánchez tem a maioria que agora faltou a Rajoy.

Também deixo claro que não lamento nem por um segundo a partida de Mariano Rajoy, um líder complacente com a corrupção, autoritário (como se tem visto na gestão da questão catalã) e responsável por uma das maiores crises sociais que a Espanha já conheceu. Se há quem possa ser responsabilizado pela implosão do sistema político do Estado espanhol e pelo perigo de desintegração que enfrenta ele é Mariano Rajoy, o pior presidente de Governo que a democracia espanhola já conheceu. Mas isto não chega para fazer uma análise política.

Tem havido, por cá e até em Espanha, muitas comparações entre o novo Governo de Pedro Sánchez, a que a direita chamou de Frankenstein, e o de António Costa, a que a direita chamou de geringonça. Apesar das aparências, o paralelismo é forçado. A primeira diferença é que um nasceu logo a seguir às eleições, depois do chumbo da solução apresentada por Passos Coelho, outro surge dois anos depois. Se Sánchez tivesse conseguido, como tentou, chegar a um acordo de Governo com o Podemos e os nacionalistas para formar um Governo maioritário logo em 2016, tudo seria diferente. Mas não teve poder interno para o fazer e foi afastado da liderança pelos barões do partido, regressando em 2017 pelo voto dos militantes.

A diferença entre os dois casos não é de legitimidade constitucional ou política, é do significado desta chegada ao poder. Quando Costa se propôs formar Governo fê-lo em nome de programa político para quatro anos. Para isso, teve de assinar acordos com os partidos à sua esquerda. Havia um propósito que dizia respeito à maioria dos portugueses que votou naqueles três partidos: reverter as medidas de Passos Coelho e da troika. Ou seja, aquela maioria parlamentar foi construída em nome de um objetivo político.

Nada disto acontece com Pedro Sánchez. Tendo falhado a construção desta maioria parlamentar em 2016, ela surge agora como requentada. Não há, ao contrário de Portugal, qualquer acordo com os partidos que acabaram por viabilizar esta solução. E, por isso, não há qualquer proposta política que a ela possa ser associada.

O Governo Frankenstein é uma versão muito empobrecida do Governo da geringonça que já foi, ele próprio, um produto frágil. E é por isso que a geringonça se propôs governar por quatro anos e pelo menos reverter o que a direita tinha feito, enquanto o Frankenstein não deseja mais do que preparar a campanha eleitoral do PSOE e governará com o orçamento de Rajoy. As coisas serem feitas só em nome do poder ou também em nome da política faz toda a diferença.